2010/12/07

A mulher de César

Júlio César proferiu a célebre frase "à mulher de César não basta ser honesta, é preciso parecer honesta." A diplomacia (e não só!) tem vivido sempre à sombra deste princípio. É a área da actividade humana onde os vestígios da barbárie mais se manifestam e é uma área onde a democracia nunca entrou. Com mais ou menos punhos de renda, em ambientes mais ou menos perfumados, mais à direita ou mais à esquerda, a diplomacia é um antro de cínicos, amorais. E são todos assim, como lembrava alguém ontem, muito candidamente, num programa da CNN sobre o tema do Wikileaks: do Vaticano à China, dos EUA à Venezuela.
Muitos dos que criticam a revelação dos "telegramas" americanos referem, como que a querer encerrar o argumento, que a única "vítima" destas revelações é a diplomacia norte-americana. Não foram revelados segredos dos Chineses ou dos Norte-Coreanos. Se assim fosse ainda vá lá...
É divertidíssimo ouvir estes defensores da institucionalização do cinismo e da mentira como ferramenta política. Até um surpreendentemente reaccionário e míope Miguel Sousa Tavares enveredou por esta via, ao criticar um artigo certeiro do Rui Tavares de ontem no Público sobre esta matéria.
Ora, a verdade é que o que está em causa neste caso não é, sobretudo, a bondade dos meios usados pelas diplomacias dos vários países, mas sim a sua utilização por quem prega moral a toda a hora e se arma em campeão da defesa da virtude mundial. Os EUA são as principais vítimas de todas estas revelações (veremos se assim é...)? Pois é bem feita, porque deveriam ser um exemplo. E, ao contrário do que disse o tirano Romano, à mulher de César não deve bastar parecer ser honesta. É preciso ser mesmo honesta! É este o problema. À "comunidade internacional" também não basta parecer honesta, é necessário que seja honesta. Só isso torna a "comunidade internacional" uma entidade legítima.
O que as revelações do Wikileaks parecem vir demonstrar —independentemente da própria bondade dos seus intentos...— é que os EUA parecem honestos, mas não são. Não estão sozinhos, claro, mas como querem muito parecer o que não são, ficaram com a careca também muito mais à mostra. O grito que se ouve nestas revelações é pela transparência e pela honestidade num sector que tresanda a opacidade e trafulhice. Não seria o facto de revelar telegramas da Coreia do Norte ou do Irão que tornaria as revelações da Wikileaks mais ou menos legítima. Estes países não são exemplos de virtude.
A conclusão é simples: a democracia, a transparência e a ética têm de chegar à diplomacia e às relações entre estados. Tem de chegar ao fim o tempo da diplomacia feita de sociedades secretas, em autogestão e em formato tablóide.

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