2019/02/12

Honra e Vergonha


Flayed, Paula Rego

Desde o início deste ano, já foram mortas 9 mulheres e uma criança, pelos seus companheiros e ou pais das vítimas. Janeiro de 2019, passou a ser o segundo mês com maior número de vítimas de violência doméstica, em 14 anos. Duas vítimas por semana, causados por violência, neste caso violência de género, uma vez que as vítimas eram todas mulheres.
De acordo com os dados, relativos a 2018, publicados pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), foram registrados 26.439 denúncias, tendo sido condenados 1457 homens por crimes de violência doméstica, dos quais, apenas 603 usam "pulseiras electrónicas". Mais de 80% destas condenações dizem respeito a violência de género. A cada 20 minutos, há uma denúncia, a cada 3 dias há um assassínio. Em dois anos, o número de "casas abrigo" aumentou de 26, para mais do dobro, em todo o país. Nestas casas, residem mais de 3000 mulheres e crianças, que tiveram de abandonar os seus lares, devido às ameaças e maus tratos sofridos, enquanto a maior parte dos homens acusados, aguarda julgamento em liberdade, muitas vezes mantendo-se na própria casa, donde nunca chegaram a sair (!?).
Apesar de alguns avanços conseguidos - maior consciência da sociedade, maior número de denúncias, criação de unidades especializadas em atender este tipo de denúncias em postos da PSP e da GNR, maior número de condenações - o atavismo herdado de uma sociedade machista e patriacal como a portuguesa, continua a fazer escola. Se no "tempo da outra senhora", não se falava da violência caseira, seguindo o velho princípio de "entre homem e mulher não metas a colher" e quando os casos conhecidos eram normalmente associados ao ruralismo ignorante e a famílias destruturadas pelo alcoolismo e pelo desemprego, hoje sabemos que a violência de género é transversal a todas os grupos etários e sociais, pois tanto é maltratada a empregada doméstica como a advogada de sucesso.  Uma chaga social, que coloca Portugal em 11º lugar em 21 estados europeus, atrás de países como a Escócia, Holanda e Espanha ou à frente da Lituânia, Malta e Albânia, os últimos da lista.
As razões são reconhecidas pelos agentes sociais envolvidos. Poucos meios (financeiros e humanos), deformação deficiente das forças policiais (maioritariamente constituida por elementos do sexo masculino, que tendem a desvalorizar as queixas, sem provas físicas evidentes), uma mentalidade corporativa reinante entre magistrados e juízes (que, não raramente, utilizam o argumento jurídico para aligeirar as penas), advogados e psicoterapeutas imorais, que prolongam o sofrimento das vítimas com tentativas de "reconciliação" patéticas, que apenas contribuem para o escalar de situações incontroláveis, etc. Uma vergonha civilizacional, que está longe de terminar.
Ainda que todas estas razões sejam de considerar, é preciso ir mais longe e, como bem lembra esta semana o antropólogo José Gabriel Pereira Bastos (in "Público" de 11 de Fevereiro), na génese da violência de género, há um padrão que não se alterou. O antropólogo alerta para o pouco relevo, dado ao facto (frequente), do assassinato da mulher ser acompanhado do suicídio do assassino: "Trata-se de um padrão cultural com longa tradição. Há uns anos, no Alentejo, um vizinho meu, a caminhar para uma invalidez precoce, tentou matar a mulher disparando sobre ela a caçadeira e suicidando-se a seguir. A mulher sobreviveu. Outro vizinho fez questão de me informar depois que, no velório, o pai do assassino levantou a voz e afirmou com frontalidade desafiante: "O meu filho tinha a obrigação de confirmar que tinha morto a mulher antes de pôr fim à vida" (J.G. Pereira Bastos, ibidem).
Encontramos, pois aqui, resquícios de uma longa "tradição mediterrânica", descrita em clássicos da disciplina como "Honour And Shame" (J.G Peristiany), "Honour, Family and Patronage" (J.K. Campbell) ou, mais próximo de nós, "Ricos e Pobres no Alentejo" (José Cutileiro).
"O homem de honra não aguenta a perda da face, a humilhação pública, a desonra, que o obriga a reagir de acordo com as expectativas da comunidade que partilha estes valores. Não se trata de ciume, nem de amor frustrado. O que está em causa é a honra viril, o orgulho fálico" (J.G. Pereira de Bastos, ibidem).
É pois, este padrão de honra fálica, incutido ao assassino desde a infância, que é cultivado e partilhado por uma população que espera dele o acto final de se suicidar, após a morte da companheira, como única forma forma de recuperar a honra perdida da comunidade em que está inserido.
Como combater este flagelo?
Pereira Bastos não está optimista. Mas, avança algumas sugestões. Desde logo, através de acções de prevenção e combate radical a esta cultura de "honra e vergonha", transmitida de geração em geração, nos meios onde os criminosos estão inseridos. Depois, isolando-os e envergonhando-os onde eles são mais vulneráveis: na sua virilidade e machismo comportamental. É aqui que o papel dos homens pode ser fundamental. Para que estes, igualmente, se libertem e, dessa forma, sejam activamente solidários numa luta que é de todos. De mulheres e de homens.             
  


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