2007/04/30

Um quadradinho de verde na aldeia de Telheiras

Ana Contumélias participou activamente numa experiência de intervenção cívica no bairro de Telheiras e resolveu, como ela escreve, contar a história. A coisa meteu a Associação de Residentes local (ART), a Escola, a Associação de Pais, o Jornal de Telheiras, instituições nas quais umas dezenas de moradores procuraram obter força para um seu projecto. Consistia tal projecto em «implementar, no bairro de Telheiras, em Lisboa, um clube de jardineiros/horticultores, com terreno suficiente para plantarem flores, vegetais, plantas diversas. Também para produzirem comunidade e estruturarem sociabilidades, afectos, convívios».
Dinamizadora desse grupo (segundo outros intervenientes na sessão de lançamento, nunca a ART teve tanto dinamismo como quando ela foi sua presidente), a autora, sendo socióloga, foi levada a interessar-se também pelo «significado sociológico do caso e a agir como investigadora».
O «objectivo de estudo que deu origem a este livro» foi «perceber de que forma uma acção colectiva, baseada num entendimento partilhado sobre o uso de uma parcela de território de um bairro -- no caso concreto, o bairro de Telheiras, em Lisboa -- pode ser entendida como uma aprendizagem ambiental».
Este livro situa-se definitivamente de fora da mainstream das cabeças pensantes e dos opinion makers, a qual se pauta pela realpolitik: «É no quadro de uma teoria da acção e do sujeito permitindo a utopia pragmática, o realismo utópico, que este trabalho académico se filia». "Fora de moda", como se vê, o que interessa a Ana Contumélias é saber «em que medida vivências ligadas ao território geram e activam identidades colectivas locais (...) resultantes do sentido de pertença, construídas através da apropriação quotidiana da cidade, do bairro, da praça ou do jardim». Há a consciência de que estamos «num tempo em que aprendemos a desconfiar das Grandes Utopias (...) mas se pressente que os espaços locais podem ser o lugar certo para o germinar das pequenas, mas mobilizadoras utopias».
A utopia confrontou-se com a realidade dos poderes e da burocracia. Tenho a convicção de que um dia «a noção de humanidade como um todo ganhará nova acuidade e sentido» e «o civismo tornar-se-á fundamentalmente um civismo ecológico»; mas eu vou esperar sentado, para não me cansar muito. É que estou convencido de que gestos como estes estão bem à frente do seu tempo.
Os habitantes mais antigos de Telheiras ainda dizem "vou a Lisboa", quando se deslocam ao centro da cidade e as dezenas de pessoas que se inscreveram como desejando ser jardineiros/horticultores ainda lá moram, em Telheiras.
Também ainda lá está, sem que a comunidade o utilize, o quadradinho verde, terreno passível de ser utilizado pelos "jardineiros/moradores de Telheiras". Surpresa seria se um dia eles ganhassem o direito de ali fazer hortas. A lógica de desenvolvimento da cidade é a do negócio imobiliário que não se compadece com utopias.
No entanto, como dizia Sartre em Maio de 1968 e Ana cita, é preciso "alargar o campo do possível"; estas acções, se outro efeito não tiverem, terão certamente o da experiência de intervenção cívica que conferem aos intervenientes.
Um dia iremos acordar ajoujados ao peso de uma cidade inumana em que nos habituámos a viver, e vamos querer vizinhos, e amigos, e fruição, e convívio; e exigiremos intervalos na sucessão de prédios para podermos cultivar as nossas hortas. Só nessa altura estaremos à altura de ser verdadeiros jardineiros ou horticultores.
A parte mesmo boa deste caso é o conforto que podemos retirar de saber que ainda existem pessoas como Ana Contumélias; pessoas com quem o futuro é possível.

Um quadradinho de verde na aldeia de Telheiras, de Ana Contumélias, Plátano Editora

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