2010/10/05

Atirar a toalha na questão presidencial

O antigo Presidente da República Ramalho Eanes diz que a gravidade da situação do País exige consensos entre os partidos. Ora aqui está uma frase, aparentemente inócua, que tem muito mais que se lhe diga. De repetida de forma ora automática, ora acéfala, esta ideia de que os partidos é que geram consensos acaba por ir fazendo "jurisprudência".
No meu entender, a situação do país —de há muito, não só de hoje— exige discussão e esclarecimento dos portugueses. Exige consenso, mas entre os portugueses. Que os partidos depois reflectirão, claro, mas que tem de emanar dos cidadãos. Uma das, senão mesmo a questão central da nossa democracia é este cheque em branco que os cidadãos concedem aos partidos. Que deu no que deu, como sabemos. A democracia não se esgota, como é sucessiva e inutilmente repetido por alguns, nas eleições, nem o nosso papel enquanto cidadãos acaba no momento em que conseguimos que alguém assuma o papel de nos representar politicamente. Este é um debate que urge fazer na sociedade portuguesa e que, naturalmente, não vai ser nunca promovido pelos partidos.
Há poucos dias o secretário-geral da CGTP defendeu a necessidade de aproveitar a eleição presidencial que se aproxima para um debate profundo sobre a situação do país, que inclui a perspectiva —correcta, no meu entender— da crítica do exercício do poder presidencial. Não posso concordar mais. Habituámo-nos a criticar o Governo, e em particular o Primeiro Ministro, pelos pecados da governação, mas esquecemo-nos frequentemente que o Presidente da República tem grossa percentagem de culpa no cartório e é co-responsável pelo estado a que as coisas chegaram. Não como sócio gerente, mas como silent partner. Negligenciámos avaliar o papel que esta figura tem nos acontecimentos nacionais.
O PR tem, mesmo numa interpretação light dos seus poderes constitucionais, muito mais poder de intervenção do que faz crer a interpretação oportunista que da Constituição fazem alguns parasitas da nossa vida política e, seguramente, muito mais do que aquele que o actual detentor do cargo evidencia. Por outro lado, o exercício deste cargo implica uma margem de assertividade que não tem sido de todo a tónica do mandato deste Presidente. O exercício da Presidência da República feito por Cavaco Silva faz-me lembrar um personagem do Jô Soares de há uns largos anos, conhecido pelo "não me comprometa"! E falo na versão light porque se formos para a versão com todos, o mandato deste Presidente é um fracasso total, na perspectiva do interesse nacional.
Na minha opinião, o desastre da governação do consulado Sócrates ocorre nesta matriz e nela tem também de ser enquadrado.
Ora, o que o comentário de Carvalho da Silva parece vir justamente pôr em destaque é a necessidade de não "arrumar" a questão das eleições presidenciais na secção dos "resolvidos" —aquela em que parece que a generalidade dos doutos comentadores e fazedores de opinião já encafuou a questão— e exigir mais! Partindo do princípio que as expressões "presidente de todos os portugueses" e "equidistânca dos partidos" não são vãs, é fácil concluir que há um terreno imenso onde a acção e a iniciativa do Presidente da República podem ter lugar e que estas não se esgotam no jogo de atirar pinos abaixo no bowling dos partidos. Devíamos ambicionar mais e o PR deveria ser um agente particularmente activo nesse desígnio.
Não vamos eleger o "monarca", figura decorativa, passiva e passada, como alguns desejam. Estamos noutra!
Falando de dificuldades de fazer uma comunicação decente do que está em jogo na presente situação política, teria sido mais últil que, em vez de chamar os partidos, como fez ultimamente, Cavaco Silva tivesse promovido uma discussão muito ampla e aprofundada sobre o que está verdadeiramente em causa. Há mil maneiras de o levar a cabo e não lhe faltariam decerto meios para o fazer. Falta-lhe, manifestamente, é o talento, a criatividade e a visão correcta de um verdadeiro estadista. Deve estar esgotado com as duas mil assinaturas que teve de apor nos diplomas todos que promulgou. Cãibra de escrivão, portanto.
E em resultado de tricas mesquinhas, ódios pessoais e interesses partidários inomináveis preparam-se todos para entregar de mão beijada, de novo, o cargo de Presidente da República a este homem.

1 comentário:

Rui Mota disse...

Não é de admirar que o Eanes tenha dito o que disse. Não foi ele que deu início aos governos de iniciativa presidencial (o famoso bloco central dos anos oitenta)?.
Do Cavaco não há nada a esperar. Tornou-se um segundo Américo Tomás. Como dizia o José Saramago, "é o rei da banalidade"...
A terceira questão, tem a ver com a cidadania, ou a falta dela. Esta é a questão mais grave. Estas coisas levam muito tempo a interiorizar.
Veja-se o analfabetismo: no início da República, os analfabetos estruturais eram 75%. Cem anos depois, os analfabetos funcionais ainda são 48%...
Como dizia o Almada, "todos os povos têm defeitos e qualidades. Coragem, portugueses: só vos faltam as qualidades".