2024/06/26

A hipocrisia, em episódios


O que se segue vem propósito deste vídeo, que chegou ao meu conhecimento através do meu companheiro de redacção, Rui Mota. 

Os russos acabam de ordenar a suspensāo da RTP e dos sites do Público, do Expresso e do Observador. Estamos em 2024.

Desde 2022 (Dois mil e vinte e dois!) que na terra da « liberdade de expressão » os canais russos RT e 1Russia estão bloqueados, por via do Regulamento UE 2022/350. A UE em estado de hipocrisia.

Não há ilusões: de cada lado deste conflito, os canais informativos difundem a informação que lhes interessa. Mas a terra da « liberdade de expressão » deveria, acho eu, dar o exemplo. Cada um de nós que decida. No caso português, aliás, liberdade de expressão é apontada, muito justamente, como uma das conquistas de Abril, depois de décadas de vergonhoso lápis azul. Eu, por mim, gostava de poder escolher as minhas fontes de informação, sem constragimentos. Sobretudo se estou a pagar por um serviço, como é a televisão por cabo. A sensação que dá é a de que os distribuidores de televisão de cabo se transformaram numa coisa a fazer lembrar aqueles restaurantes de prato único. Podes escolher desde que seja o prato do dia.

Ora, na RTP 3, ontem, a apresentadora de um dos serviços noticiosos questionava o correspondente da RTP na Rússia, um tal Evgueni Mouravitch. Perguntava ela, com ar pimpão, ao Evegueni: « Moscovo está a isolar os russos? » E o camarada Evgueni lá foi respondendo dizendo, entre outras coisas, que as pessoas têm medo das câmaras… A Rússia é um país em guerra, se calhar as câmaras não são aquilo que os russos mais temem neste momento. Mas o Evgueni inspira este temor, é sabido. 

Portugal, por outro lado, é um país que anda, há muito, apenas numa guerra sem quartel consigo próprio… Permitir ao povo português saber o que se passa no mundo, disponibilizando as ferramentas necessárias para averiguar a fundo todos os lados destes conflitos, que não são nossos, seria um dever elementar. Constitucional, diria até.

Conclusão do camarada Evgueni: a proibição do poderoso broadcaster, instituição a quem toda a comunidade internacional tira o chapéu, tal o seu peso no mundo mediático, que é a RTP, é « propaganda russa, ao estilo da URSS ». A proibição dos canais russos em Portugal é, por seu lado, perfeitamente legítima, certamente, uma ordem dos deuses, reunidos no Olimpo… Poderíamos perguntar, assim, da mesma forma, quem é que a UE quer então isolar, ao proibir a RT e a 1Russia. A RTP em estado de hipocrisia.

O camarada Evegueni fala de tudo isto, com ar grave, mas sofrido, mostrando umas olheiras que lhe conferem um ar apropriadamente amedrontado. Fala de tudo, incluindo das "enormes dificuldades" do seu esforçado trabalho, directo de Moscovo, sem que vejamos, porém, qualquer cano de espingarda apontado à sua cabeça ou um agente do KGB, por detrás dele a sabotar a emissão… E fá-lo há anos. O testemunho do camarada Evegueni está aqui. Aposto que o camarada Evegueni vai ter as suas credenciais renovadas.

Voltando ao vídeo...

Assange está livre. Celebrar a sua libertação passa por perceber a essência do que ele aqui refere. Estas palavras são um complemento do que refiro acima, relativamente à proibição de órgãos de informação, quer do lado da chamada “comunidade internacional” quer do lado da Rússia. Os objectivos são os mesmos, embora a UE, que apregoa outros valores, tenha sido pioneira na tomada desta medida. 

O exercício que nos pode levar a perceber melhor as causas dos diferentes confrontos e tentativas de confronto que ocorrem hoje por todo o mundo, não é fácil e esbarra, sobretudo, desde logo, nos imensos preconceitos que cada um de nós carrega. Se entrarmos nele com ideias feitas nunca chegaremos a qualquer conclusão útil. E tudo isto se agrava com a absolutamente intolerável e hipócrita sonegação das ferramentas. Portanto, ouvir estas palavras do Assange e celebrar, ao mesmo tempo, a sua libertação será sempre um acto de repugnante hipocrisia. 

A libertação de Assange foi fruto de uma intensa campanha dos povos do mundo. “As guerras são quase todas resultado das mentiras dos média”, diz ele. A falta de solidariedade desses média para com ele, ao longo destes anos explica muita coisa… 

1 comentário:

rui mota disse...

Bom "post" (tiraste-me as palavras da boca). Sim, o vídeo do Assange toca no essencial: as guerras só interessam aos poderosos (aqui não faço distinções entre o "Ocidente" e o "Oriente", o que quer que isso seja). Para que o clima de guerra "resulte", os "media" têm de cumprir uma função: a da lavagem cerebral permanente (brain wash) dos consumidores. Também eu fui impedido de ver canais russos nos canais de cabo, ainda que não entenda patavina do que dizem (como de resto, os russos, não devem entender nada de português). Só acredita quem quer. Entretanto, as vozes dissonantes, dentro de portas, são dispensadas pelas redacções de serviço (vide Carmo Afonso no "Público" de hoje). O caso Assange, para além de todas as histórias (umas mais recambolescas que outras) também é paradigmático nesse sentido: havia que dar um exemplo "justiceiro", para evitar que mais Assanges possam surgir no futuro. O "Império", como Roma, não perdoa a "traidores". Para a próxima, futuros Assanges vão pensar duas vezes antes de agir (essa é a mensagem).