2024/06/28

Assange

Agora que Julian Assange se encontra (aparentemente) a salvo, não faltarão longos e elogiosos artigos sobre a sua postura e resiliência, demonstradas ao longo de 12 anos de cativeiro que passou em Londres. Primeiro, na embaixada do Equador (7 anos) onde lhe concederam asilo político e, mais tarde, na prisão de alta segurança de Belmarsh (5 anos), onde aguardou o desfecho do processo de extradição instaurado pelos EUA.

Um longo caminho, seguido por milhões de cidadãos em todo o Mundo, ainda que as notícias tenham sido parcas e nem sempre veiculadas da mesma forma pelos media internacionais. Hoje, percebe-se melhor porquê: Assange, através da agência Wikileaks (da qual é co-fundador) tornou-se o whistleblower mais famoso do Mundo, ao denunciar os crimes de guerra praticados pelas tropas norte-americanas no Iraque e no Afeganistão, factos comprovados e nunca desmentidos, que os media oficiais, coniventes com a guerra em curso, não publicavam. Milhares de documentos e vídeos encriptados, obtidos pela Wikileaks e postos à disposição dos media interessados na sua publicação. 

A história, para quem não a conhece, descreve-se em poucas palavras. Conta-a o El Pais, na sua edição de 26 de Junho último, ao longo de quatro páginas, para guardar, sob o título: "Uma cave, milhares de papéis e horas de investigação":

"Alguns dos jornalistas que, em finais de 2010, trabalharam na maior filtragem de documentos, a que tinha tido acesso à data El Pais, nem sequer conheciam aquela cave situado no Piso -1, da sede do periódico em Madrid. No dia 1 de Novembro daquele ano, Julian Assange, tinha convidado o periódico a juntar-se ao The Guardian, The New York Times, Le Monde e Der Spiegel, numa macro investigação com milhares de telegramas diplomáticos norte-americanos. Três andares abaixo da redacção, foi posta em marcha uma equipa com dezenas de repórteres, muitos chegados com recados de responsabilidade de meio-mundo, sem saber com o que iam confrontar-se. Havia que trabalhar contra-relógio para descodificar  alguns dos segredos da política externa dos Estados Unidos, antes do dia 28 de Novembro, data da publicação. O que aí teve lugar, foi um esforço de colaboração entre jornalistas e meios internacionais, sem comparação. O fenómeno Wikileaks tinha chegado ao seu cume, "uma montanha na Flandres", para um tempo novo no jornalismo de filtros (leaks) e investigação. O material que a Wikileaks pôs a disposição destes títulos, foi tal que obrigou a estabelecer mecanismos para garantir a total confidencialidade do projecto. Ninguém, nem fora nem dentro daquela cave, podia saber do que se tratava. Os documentos, mais de 250.000 telegramas do Departamento de Estado, só podiam ser examinados naquele espaço e nunca ultrapassar as suas portas. A comunicação com a equipa de Assange, então com 39 anos, fazia-se através de mensagens encriptadas. Um método a que não estavam acostumadas, à época, algumas das redacções, mas que, 13 anos mais tarde, se aceita com toda a naturalidade". 

E o articulista (Óscar Gutiérrez) continua: "El Pais foi o último, dos cinco media implicados, a receber os papéis. O desafio, em apenas algumas semanas, foi gigantesco. A direcção do projecto necessitou de envolver uma equipa técnica para que aqueles milhares de arquivos em texto corrido, fossem digeríveis pelos jornalistas. Os responsáveis tiveram de lidar com as pressões e versões da parte invocada, a administração de Barak Obama. O portal da Wikileaks foi vítima de pirataria informática. Finalmente, um erro de distribuição transportou alguns exemplares da revista alemã Der Spiegel aos quiosques, antes de tempo. O lançamento, teve de ser antecipado. Às sete da tarde, a informação estava no ar: falava de espionagem, manobras ocultas e corrupção; de dirigentes como o russo Vladimir Putin, o venezuelano Hugo Chaves, o iraniano Mahmud Ahmadineyad, o francês Nicolas Sarkozy, o chinês Hu Jintao, o italiano Sílvio Berlusconi, a alemã Angela Merkel... Criou, por fim, outro precedente: pela primeira vez, uma exclusividade histórica era publicada na internet. A Rede era o "habitat" de Assange e foi aí que surgiram, pela primeira vez, muitos dos seus filtros" (ibidem).

A partir daqui, a história, é conhecida. As sucessivas publicações Wikileaks, suportadas e filtradas com documentação comprometedora para diversos regimes do Mundo (em particular para o envolvimento dos Estados Unidos na guerra do Iraque e do Afeganistão, à revelia das leis internacionais), fizeram de Julian Assange o "inimigo a abater". Em Abril de 2010, sete meses antes de Assange ter compartilhado os documentos diplomáticos, a Web publicou o vídeo gravado por um helicóptero dos Estados Unidos, durante um ataque a Bagdad, no qual morreram 11 iraquianos entre os quais um fotógrafo da agência Reuters. Um ano depois desta notícia, o El Pais voltou a participar na divulgação de novos "filtros" do portal, desta vez mais de 700 ficheiros sobre a prisão de Guantánamo.              

"O trabalho, em 2010, destes cinco títulos com os telegramas do Departamento de Estado, disponibilizados pela Wikileaks, serviu, pelo menos, para duas coisas: em primeiro lugar, para abrir de novo a porta aos chamados whisteblowers ou "gargantas fundas", os informadores que, como a soldado Chelsea Manning (a origem desta macro-filtração) querem tornar públicas as actividades ilícitas da organização para a qual trabalham. A União Europeia aprovou precisamente uma directiva para protecção destas pessoas em finais de 2019; em segundo lugar, o Cablegate, lançou  uma nova era de jornalismo de colaboração entre grandes medias, que eram, a priori, competidores. A Manning seguiu-se, em 2013, Edward Snowden, ex-analista norte-americano da agência de espionagem NSA que filtrou informação sobre o programa de vigilância global dos EUA aos diários The Guardian e The Washington Post . Três anos mais tarde, outra aliança de media, publicou os chamados Panama Papers, a partir de documentos de uma firma de advogados do Panamá, especializada em paraísos fiscais. A análise desta investigação contou com a colaboração do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ na sua sigla inglesa). Em 2021, a ICIJ coordenou, com a colaboração de uma equipa do El Pais, juntamente com jornalistas de 17 países, a investigação de uma filtragem de 11,9 milhões de arquivos internos sobre fiscalidade opaca, os Pandora Papers, um dos melhores exemplos, até à data, deste novo panorama de filtragens e investigação com que a Wikileaks e Assange sacudiram o jornalismo naquele Novembro de 2010, a partir de uma cave de uma redação para o Mundo inteiro" (ibidem). 

Em todo este percurso, não faltaram detractores de Assange e dos seus métodos. Muitos jornalistas não gostavam dele e acusavam-no de ser um tipo antipático; depois, confrontados com notícias que não podiam desmentir, acusaram-no de não ser jornalista, mas apenas um "hacker" com acesso a servidores do estado e informação classificada; mais tarde, disseram que as suas informações punham em perigo as embaixadas e diplomatas dos países envolvidos; finalmente, e perante a evidência de factos (que nunca foram desmentidos) começaram os ataques ad-hominem, sobre uma pretensa misoginia e a violação de duas call-girls em Estocolmo, que lhe valeu uma acusação do tribunal sueco, o qual exigiu a sua presença naquele país para ser julgado. Assange não se recusou a depor perante o tribunal, mas recusou fazê-lo na Suécia, receando ser extraditado para os EUA, que também tinha pedido a sua captura. A própria Hillary Clinton, que perdeu as eleições contra Donald Trump, atribuía a sua derrota ao Wikileaks, por esta plataforma ter divulgado emails confidenciais do seu servidor em vésperas de eleições, um argumento que está por provar, já que a própria candidata não tinha o apoio unânime do partido democrata e muitos apoiantes preferirem Bernie Sanders, o outro candidato democrata. 

Voltando ao El Pais e a um artigo de Javier Moreno, director do jornal em 2010, quando se publicaram as informações baseadas nos telegramas filtrados por Wikileaks, com o título "Considerem-se avisados":

"Finalmente, o calvário do fundador do Wikileaks resulta em intimidação suficiente para os Assanges das próximas décadas. Limitará a investigação jornalística baseada em informação classificada. Quanto deixaremos de saber sobre o funcionamento do estado profundo? Em quem vamos delegar a fiscalização de tudo isto? No próprio estado e nas suas agências? Se as partes do estado que vemos e podemos examinar, raramente funcionam bem, porque havemos de supor que as que não vemos, funcionam? Se nas partes que observamos, se cometem abusos, como não suspeitar do que sucede naquelas em que não o fazemos? E esta última questão, mais do que aos jornalistas, afecta-os a todos, estimados leitores. Portanto, considerem-se avisados" (ibidem).

1 comentário:

Carlos Alberto Augusto disse...

Belo retrato o teu deste tenebroso processo Assange.
Resta, de facto, saber o que vai sobrar de tudo isto, ie, para que serviu todo este brutal sacrifício. Se alguma vez tudo isto vai ser devida e verdadeiramente valorizado.