2012/04/30

Luto e luta

Acompanhei, com alguma curiosidade confesso, o evento que teve lugar ontem no Jardim de Inverno do S. Luiz, a propósito do falecimento de Miguel Portas. Um evento estranho. Um evento algo chocante.
O jornal i diz hoje que "Francisco Louçã não foi ontem o coordenador do Bloco de Esquerda. Paulo Portas também não foi o ministro do Estado e dos Negócios Estrangeiros. Nem sequer António Costa foi o presidente da câmara de Lisboa ou João Semedo o deputado bloquista. Ontem à tarde, no Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, em Lisboa, despiram os cargos que ocupam. Deixaram em casa as poses de políticos para lembrar o que Miguel Portas foi para todos eles enquanto esteve vivo."
É verdade, mas preferia o contrário. Preferia que os políticos deixassem as "poses" quando tratam de política, que fossem mais autênticos (como me pareceu que foram aqui, de facto) e menos teatrais quando tratam de assuntos que nos dizem respeito a todos. Que tivessem, sobretudo, a humildade de levar em linha de conta na sua conduta que, mais cedo ou mais tarde, vamo-nos todos juntar ao Miguel. E, perante a morte, irei sempre preferir ver mais "pose", menos holofotes e mais recolhimento, numa situação que é e será sempre do foro íntimo de cada um.
Porque as lágrimas dos políticos, ao vivo na televisão, são e serão sempre espectáculo, mesmo involuntário. Terão leituras políticas possíveis que vão trair, se não forem acompanhadas de actos políticos adequados e coerentes, a sua autenticidade. Se a morte de Miguel Portas tem essa componente política acho que ela tem de ser mantida para lá do luto e ficar reservada para a intimidade da análise histórica. Se não tem essa componente política, não merece exposição pública e, neste caso, estamos então perante um acto de puro exibicionismo.
Sei que o mundo não é, de facto, preto e branco como este meu retrato pode sugerir. Mas, isso não me impedirá de perguntar que raio de esquizofrenia colectiva é esta que despe sem pudor o luto, mas que, habilidosamente, cobre com roupa enganadora a luta? Parece-me que o mérito e a lição de Miguel Portas, a razão última do consenso que gera, foi, justamente, não ter feito isto.

2 comentários:

Rui Mota disse...

Curioso, este fenómeno "transversal" de elogios que "uniu" esquerda (extrema?) e direita (extrema?) na mesma homenagem. Mas, é positivo, porque me pareceram, de facto, sinceros: as palavras e os afectos.
Vamos sentir saudades do Miguel.

Carlos A. Augusto disse...

Sim, é justamente isso que faz confusão. Se, em torno do Miguel Portas é possível gerar consensos e afectos como estes, por que razão tudo o resto nos divide? Por que razão, por exemplo, o mesmo político que elogia os médicos e restante pessoal que tratou o irmão aprova medidas que dificultam a vida de outros doentes de cancro e não se comove com a sua morte?