2018/04/17

E o Brasil aqui tão perto...



Vimos, ouvimos e não queremos acreditar.
Há vinte quatro horas que o país assiste, incrédulo (falo por mim) a uma transmissão televisiva da SICn onde, a todas as horas, são emitidos diversos excertos de três interrogatórios, feitos pelo juiz de instrução Carlos Alexandre ao ex-ministro José Sócrates, no âmbito da "operação marquês", onde este é acusado de corrupção, lavagem de dinheiro e fuga ao fisco.
Não tenho qualquer simpatia por Sócrates e é-me completamente indiferente que seja condenado ou não, desde que as provas e métodos, usados na investigação, sejam credíveis.
Recordemos: a "operação Marquês", que dura há 4 anos, começou por ser uma investigação à situação financeira do ex-primeiro-ministro, quando este deixou o cargo e foi estudar para Paris, onde levava uma vida considerada "acima das suas possibilidades", num apartamento de luxo, supostamente propriedade do amigo Santos Silva (dono do grupo de construção Lena) que receberia e pagaria avultadas somas de dinheiro a Sócrates. Numa fase inicial, foram detidos e ouvidos quatro suspeitos de envolvimento neste alegado caso de lavagem de dinheiro (Carlos Silva, Sócrates, o advogado e o motorista), tendo Sócrates ficado preso preventivamente (Novembro de 2014) ao abrigo da lei (perigo de fuga, contacto com os restantes arguidos e perturbação do processo). Após dez meses de prisão preventiva, o ex-primeiro ministro foi posto em liberdade e aguarda, desde então (Setembro de 2015) pelo início do processo, que ainda continua em fase de instrução.
Entretanto, nos quatro anos que mediaram desde o início deste caso, o "foco" da acusação deixou de ser Santos Silva e o grupo Lena (considerado um "testa de ferro", usado na "lavagem" de dinheiro) e passou a estar centrado noutras personalidades e empresas (PT, TVI, BES, Empreendimento Vale do Lobo) alegadamente envolvidas num esquema de corrupção mais alargado, à frente do qual estaria Ricardo Salgado (BES) e fomentado durante o governo de Sócrates. Graças a este esquema, o ex-primeiro ministro teria recebido qualquer coisa como 36 milhões de euros de subornos, que serviriam para facilitar os negócios de Salgado.  
A "operação Marquês" transformou-se, assim, num "mega-processo", já que o juiz instrutor optou por juntar todos estes casos, aparentemente sem qualquer conexão, o que atrasou as diligências do MP e obrigou a sucessivos adiamentos na instauração do caso, que continua a aguardar uma data concreta para o início das audições. A data-limite, para a defesa dos arguidos "abrir" o processo, é agora o dia 3 de Setembro próximo e as audições em tribunal (dezenas de milhares de páginas e centenas de testemunhas arroladas) só deve iniciar-se em inícios de 2019.
Escusado será dizer que, apesar do "segredo de justiça" existente, já toda a gente conhece o conteúdo da acusação, colocada de forma cirúrgica  nos principais orgãos de comunicação social do país, com destaque para o "Correio da Manhã", "Expresso" e os canais televisivos CMTV e SICn.
Ou seja, mesmo muito antes da defesa de Sócrates ter acesso ao processo, já este era conhecido nos seus detalhes pela opinião pública.
Posto isto, resta saber se o "segredo de justiça" é algo que ainda valha a pena defender e, como só há uma possibilidade do processo ter chegado à comunicação social (através do MP), perguntar o que se pretende através desta prática, completamente ao arrepio de um estado de direito que se preze.
As imagens a que estamos a assistir nas últimas 24horas, são porventura o "último degrau" na devassa da vida de um cidadão acusado, independentemente dos crimes que possa ter cometido. É também, o "último degrau" na credibilidade da justiça portuguesa, que há muito perdeu qualquer neutralidade. Quando tal é possível (não nos lembramos de ter visto algo semelhante em Portugal, muito menos num processo tão complexo como este) vem-nos à memória o Brasil de "má memória", um país onde a arbitrariedade e o atropelo dos direitos civis já faz parte da paisagem de corrupção que atinge toda a sociedade. Ainda que Portugal não seja o Brasil, nem o juíz Alexandre tenha o poder de Moro (um juiz digno da Inquisição, que usa a "delação premiada", como "prova" de acusação), a verdade é que já estivemos mais longe. Porque estas as coisas estão todas ligadas, resta saber quem está interessado em que as imagens da SICn, sejam divulgadas. A acreditar na jornalista "responsável" (!?) pela divulgação destes interrogatórios, a direcção da estação televisiva ponderou e analisou profundamente o interesse público da "cacha", antes de torná-la pública. Imaginem, se o mesmo lhe acontecia a ela, ou a qualquer de nós?...
     

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