2024/11/02

Ao Camilo Mortágua

Partiu ontem, o Camilo. Na despedida, alguns dos muitos amigos que cultivou ao longa da vida. Uma tarde para recordar, neste Outono chuvoso, em pleno Alentejo.

Em 1961, frequentava eu a Escola Secundária Veiga Beirão quando, num dos intervalos, os alunos foram surpreendidos por uma chuva de papéis que caiam do céu em catadupa. Apressei-me a apanhar um, antes que os contínuos os destruíssem na ânsia de "limpar" o pátio. Deve ter sido o primeiro panfleto que vi na vida. Relembro que tinha algo escrito contra o governo de então e exortava os portugueses a revoltarem-se. Guardei-o religiosamente (fruto proibido, é sempre o mais apetecido). Nessa noite mostrei-o ao meu pai que, depois de lê-lo, aconselhou-me a destruí-lo imediatamente, pois era perigoso ter papéis daqueles, em casa... Mais tarde, leria nos jornais que os panfletos tinham sido atirados de um avião da TAP, desviado por um comando armado que, nesse mesmo ano, tinha capturado o "Santa Maria", naquele que foi considerado o primeiro assalto a um navio, em pleno mar alto. Em ambas as operações, o Camilo estava presente. Como estaria presente noutras acções, então já em nome da LUAR, movimento ao qual aderiu em 1967.

Viria o conhecer o Camilo, em meados dos anos setenta, aquando da sua primeira visita a Amsterdão, no âmbito de uma sessão de esclarecimento, sobre a situação portuguesa pós-25 de Abril. A sessão decorreu numa Associação local e lembro-me de ele ter escolhido um canto da mesa, com as costas encostadas à parede. Dessa forma, dizia, sentia-se mais "protegido"...

Os encontros foram-se repetindo, em Portugal e no estrangeiro, em sessões organizadas em colaboração com a cooperativa Era Nova, por ele fundada e com a qual colaborámos diversas vezes na organização de digressões pelos Países-Baixos na década de oitenta.

Voltaria a encontrá-lo em 1992, quando preparava o meu regresso a Portugal e passei uma semana no Alvito para conhecer a cooperativa agrícola que o Camilo dirigia e na qual eu estava interessado. Por pouco não fui para lá trabalhar, apesar desse ser o desejo de ambos.

Reencontrava-o frequentemente, na Associação José Afonso, da qual era fundador e um dos seus animadores permanentes. Lembro-me das suas longas intervenções, não raramente sublinhadas por um sorriso cúmplice que a todos cativava. Um dinamizador nato, que não necessitava de discursos panfletários para expor as suas ideias. 

Deixa um enorme vazio e uma legião de amigos e admiradores que com ele conviveram. Mais do que revolucionário, foi um homem bom e vertical, o Camilo. Partiu ontem.

1 comentário:

eduarda disse...

Camilo! Ainda custa a pensar que já não estás entre nós.
Conheçi-o em casa do Zeca. Pessoa culta e com uma conversa e humor fora do habitual. Gostei de ter tido o privilégio de o conhecer.