Foi no local de encontro, antes do jogo com o Porto, junto às rulotes. Na adrenalina que prenuncia a entrada das equipas em campo, há abraços de amigos indiferentes ao barulho do gerador e ao gorduroso cheiro dos couratos, entremeado pelo de um ou outro clandestino charro.
Fui buscar uma rodada de imperiais, puxei da carteira e paguei. À coca, os carteiristas viram que ela voltou para o habitual bolso de trás das calças. No grupo de amigos era-lhes, no entanto, difícil dar o golpe. O erro fatal aconteceu quando um clamor percorreu a multidão: o Benfica sofrera o golo do Estrela. Desloquei-me um pouco da roda dos amigos para tentar ver na TV de uma das rulotes se era o primeiro golo do jogo. O homem de meia-idade que ia à minha frente (disfarçado de adepto, com cachecol e tudo) estacou subitamente, sem razão aparente e sei que foi nessa altura que um seu cúmplice me deu a palmada.
Dei pela ausência da carteira quando quis tirar o cartão para o mostrar à entrada do estádio. Quando me convenci de que não havia nada a fazer tomei um táxi e, macambúzio, regressei a casa para ver o jogo na TV, sem querer pensar no incidente. No intervalo do jogo telefonei para o banco a anular os cartões.
Dormi muito mal, pensando em quão nabo tinha sido e rogando pragas aos carteiristas, que me iriam obrigar a perder muitas horas a pedir novos documentos de identidade, carta de condução, cartões bancários, de saúde, etc..
No entanto, no dia seguinte de manhã cedo, recebi um telefonema de um senhor que me disse ter a minha carteira em sua posse. Contou-me então que deu por ela quando, a dada altura, meteu a mão ao bolso.
Os carteiristas, esvaziada a carteira apenas e tão-só do dinheiro que continha, correndo o risco de, apesar da sua perícia, serem apanhados ao fazê-lo, em vez de atirarem com a carteira para um caixote do lixo, puseram-na no bolso daquele senhor!
Pode ser que eu esteja a efabular e que este gesto tenha sido um reflexo de sobrevivência. Mas prefiro pensar que os carteiristas acharam que bem bastava o prejuízo que estavam a dar ao desconhecido ao palmar-lhe o dinheiro e resolveram fazer as coisas de modo a dar a menor chatice possível.
Levaram o profissionalismo ao seu mais alto nível. Pensaram no seu próximo.
Não inscritos, pela natureza marginal da sua actividade, são muito mais admiráveis que muitos ‘cidadãos exemplares’, dos normais, dos que resolvem os seus pequenos problemas e por aí se ficam. Ao correrem os riscos que correram para me devolverem a carteira, os carteiristas inscreveram-se como cidadãos.
Eu andava à procura de um acontecimento que me levasse a escrever coisas agradáveis, positivas. Longe estava de suspeitar que quem me iria dar esse motivo eram os tipos que me abafaram a carteira...
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