Se dúvidas houvesse sobre a verdadeira natureza do que está em jogo nesta discussão sobre as escutas divulgadas pelo "Sol", uma simples intervenção --feita ontem em tom de vítima ofendida e impotente-- da deputada socialista Isabel Oneto, na Comissão de Ética, Sociedade e Cultura da AR, veio clarificar tudo. Afirmava ela que "os jornalistas podem escrutinar e dizer o que pensam dos outros cidadãos e políticos, mas os deputados que aqui estão não podem dizer o que pensam dos jornalistas."
Não interessa se houve ou não pressões sobre a comunicação social, se houve ou não tentativas de usar o Estado para manobras obscuras por parte do Governo. Não interessa sequer que os políticos afectos ao governo tentem minimizar estes acontecimentos e que os da oposição os tentem exacerbar. Isso são problemas menores.
O que fica a descoberto aqui é o modo como os dignitários do regime democrático, que deviam ser os seus primeiros guardiões, encaram a sua função. Colocar a função jornalística no mesmo plano que a função política é um pecado indesculpável. Tolerá-lo-ia se viesse de um jornalista, nunca de um político.
Um jornalista não legisla, não aplica a lei, não gere dinheiros públicos, nem cobra impostos. O jornalista não está investido de nenhuma função pública. Os políticos funcionam de acordo com um programa sancionado pelos votos. O jornalista manufactura produtos de comunicação que eu tenho a liberdade de comprar ou não. Eu posso não comprar um jornal, mas tenho de pagar impostos. E quem os define são os políticos.
Os mecanismos de actuação e o espírito das funções são diametralmente diferentes. Os políticos não podem "dizer o que pensam" dos jornalistas porque a sua função não é dizer o que pensam. É outra. A lei é a matéria que perpassa tudo isto. Mas, as funções estão em lados operacionalmente contrários da lei. Um polícia não pode fazer apreciações sobre o ladrão. Actua segundo as leis que enquadram a sua função. O ladrão, por definição e por sua vez, tenta iludir a lei...
Se os políticos desatam a fazer notícias (como foi o caso do primeiro ministro, entre outros, em diversas ocasiões), ou se acham anormal e lamentam não o poderem fazer (como foi o caso da deputada citada), estão a demonstrar que não compreendem claramente as suas funções e temos então de nos questionar sobre que raio de ideia terão da sua função. Não chegámos à Madeira, nem à Venezuela...
O que todo este processo vem colocar a descoberto é que os políticos em Portugal (alguns, pelos menos, designadamente o primeiro ministro) jogam um jogo intolerável, aplicando um inaceitável estatuto de cidadãos comuns ao exercício das suas funções como cidadãos de excepção, mas revindicando o estatuto de cidadãos de excepção quando esses comportamentos de cidadão comum são julgados no quadro do exercício da sua função institucional.
Comportamentos mesquinhos e institucionalmente inaceitáveis, eis o que todo este processo revela e eis o que nos deve verdadeiramente preocupar. Esta gente está a mais na vida pública.
4 comentários:
Nem mais!
Pois, pois...tarde piaste, C. Augusto. De socráticos arrependidos está o inferno cheio, e depois, os ratos são os primeiros a fugir quando a coisa se afunda.
C. Augusto, só agora??
Escrevia eu este post e sensivelmente à mesma hora o ex-secretário de estado Arons de Carvalho vinha dar razão ao meu escrito. Ouvido na tal Comissão de Ética, Sociedade e Cultura da AR, o dirigente do PS vem, em tom de queixinha, "revelar" que Mário Crespo o terá tentado pressionar.
Nem me interessa saber em que circunstâncias e que motivos terão levado Crespo a fazer o que Carvalho diz que ele fez.
Interessaria mais ouvir da boca deste ex-governante o que ele fez face a uma tentativa daquilo que ele considerou ser pressão sobre um membro do governo.
A sensação que Arons de Carvalho deixa é a de que entende o exercício de um função pública como a apresentação de queixinhas, o despique infantil ou o anúncio de "revelações" para os media. Da sua acção não sobra mais do que isto.
E não passamos disto...
E viva o Mário Crespo!
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