2010/11/07

Não estou a falar sozinho

Vinha no carro a falar sozinho. Falava alto. É coisa que me acontece amiúde (falar sozinho!), e, em  especial quando estou a guiar, falo alto.
De repente, "dou um prego" na gramática. Uma troca na ordem correcta dos pronomes, fruto do ruído constante proveniente deste português abrasileirado que enche o ar nos tempos que correm. Emendei-me a mim próprio (sempre em voz alta...), escandalizado com o meu próprio "prego".
Depois, comentei discretamente para mim mesmo (desta feita já não em voz alta...), que estava satisfeito. Norma é norma e, mesmo a falar sozinhos, temos de ser exigentes. A infalibilidade não existe, mas a sua procura permanente, mesmo quando se trata apenas de colocar na ordem um pronome que tentou meter-se na bicha à má fila, é uma dessas exigências elementares.
Não sou certamente a única pessoa no mundo sozinha e não sou, seguramente, o único a falar sozinho. Há por aí muita gente, hoje em dia, só e a falar sozinha. Conheço muitos. E não serei, certamente também, o único a impôr-se a si próprio padrões exigentes de vida e de obediência a valores, gramaticais e outros. Conheço também muitos.
Podemos e devemos questionar todos os valores e estar atentos, sobretudo, àqueles que afinal o não são. Mas, uma vez discutidos e firmados, a eles temos de nos submeter, humildemente e em nome da coerência. Em nome da ordem correcta do pronome ou de qualquer outra norma, temos de obedecer à regra livremente estabelecida. É a regra do jogo.
Como não serei certamente o único a pensar assim, sou de opinião que nos devíamos juntar para fazer passar esta mensagem. Inevitavelmente, ao lutar pela regra dos valores, ao discuti-los, ao questioná-los primeiro, e, finalmente, ao aceitar o seu primado, vamos obter de imediato um mapa simples que desenha com clareza a fronteira entre os que, de um lado, querem fazer isto e os que, do outro, o não querem. Podemos depois mais facilmente discutir o que fazer com estes e vamos também conseguir distinguir, com maior precisão, de que "valores" falam quando, eles próprios, falam de valores.
O debate político em Portugal está a este nível. É mais ou menos básico e rasteiro, mas é o que se pode arranjar.
Não estou a falar sozinho, pois não?

4 comentários:

AC disse...

Não, não está a falar sozinho. Como prova disso mesmo, deixe-me questioná-lo, com a melhor das vontades, acerca do que diz no seu excelente texto:

"Podemos e devemos questionar todos os valores e estar atentos, sobretudo, àqueles que afinal o não são. Mas, uma vez assumidos, temos de lhes obedecer e temos de nos submeter humildemente, em nome da ordem correcta do pronome ou de qualquer norma, gramatical ou outra, à sua regra."

E é aqui que o vou questionar. Uma coisa, apesar de assumida, não fica sujeita ao rigor eterno. É que a nossa visão das coisas pode mudar e, consequentemente, também a matriz das coisas assumidas. Em suma, assumamos as coisas, sim, mas sem dogmas.
Espero, sinceramente, que me tenha feito entender, pois escrevi isto com a melhor das intenções. Que, no cômputo geral do seu texto, que eu subscrevo quase por inteiro, é coisa mínima.

Abraço

Carlos A. Augusto disse...

Obrigado AC. Concordo em absoluto com a sua observação.
Notará que tive o cuidado de várias vezes fazer preceder as palavras firmar e obedecer das palavras questionar e discutir.
Notará igualmente que tudo isto se refere a valores, à sua existência, à sua ausência, ou à sua flutuação ao sabor das conveniências do momento.
Imagine um jogo de futebol em que as regras fossem mudadas enquanto o jogo decorre e não aceites e assumidas antes. Em que os jogadores fossem, por exemplo, obrigados a meio do jogo a usar botas sem pitons, depois de terem começado com pitons, sem terem podido trazer do balneário as botas agora exigidas. Ou um jogo em que fossem penalizados, porque estavam no local mais afastado do terreno, e a nova regra não lhes chegou aos ouvidos a tempo!
Não há muita diferença entre isto e o que se passa hoje neste jogo a que chamamos Portugal. Acho que as coisas estão a este nível (mesmo) primário. Comparado com isto, o futebol da Liga é um exemplo de virtuosismo...

Rui Mota disse...

O José Gil escrevia num recente artigo que os portugueses estão dominados pelo mêdo (um dos seus cavalos de batalha) e que, em tempos de crise, esse volta a ser o sentimento dominante. Entre a indignação e o conformismo optam pelo último, pois não sabem o dia de amanhã e já conhecem esta realidade. É verdade. Pelo menos tem sido essa a tendência. Quanto tempo pode um ser humano aguentar a falar sózinho?

Carlos A. Augusto disse...

Falar sozinho, concluo eu, não é lá coisa muito saudável... Daí o meu apelo. Este apelo é sério e para levar até às últimas consequências.