2012/05/17

Inteligência e progresso



Platão criticou a escrita no Fedro. Porque, dizia, ela colocava o pensamento fora da sua sede natural, retirava-o da mente e dirigia-o para fora, para os apetrechos, artificiais e estranhos, dessa escrita. Ao fazê-lo, acrescentava ainda Platão, a escrita tornava também a mente preguiçosa porque enfraquecia os mecanismos da memória. Platão colocou felizmente as suas dúvidas por escrito, porque se assim não fosse não teríamos tido delas conhecimento...
Mas, não será esta a única debilidade do seus discurso. Longe estava Platão de imaginar que o pensamento escrito, condensado na literatura científica e filosófica e amalgamado ao longo da história, poderia vir um dia permitir a construção de máquinas —bem mais complexas que os simples implementos da escrita do seu tempo— comandadas... pelo pensamento.
Os jornais relatavam  ontem a criação de um braço robotizado que pode ser comandado pelo pensamento, à distância. Parece milagre, mas não é: foi obra de cientistas. É uma manifestação da inteligência humana que não pode deixar de deslumbrar. Mas, coloca também algumas interrogações, que vão para além do próprio objecto.
A consciência humana pode manifestar-se agora fora da mente. Com que fins? A que distância? Através de que corpos ou objectos?
É óbvio que a inteligência é capaz de feitos notáveis. Para o bem e para o mal. Apesar da evidência diária e dos esmagadores e aparentemente inelutáveis sinais de estupidez —também ela, ora consequente ora inconsequente— que nos chegam constantemente de todo o lado, a Humanidade lá vai progredindo qualquer coisita. Parece também, como me dizia a minha amiga AG, que a inteligência, quando colocada ao serviço do progresso, é, de facto, uma coisa extraordinária e esse é um factor que contribui sobremaneira para esse efeito de deslumbramento que esta invenção suscita.
Então por que diabo deixamos constantemente que a estupidez vença a inteligência? E por que razão permitimos que a inteligência maléfica triunfe? Qual a razão para a manifesta dificuldade que temos em  distinguir a inteligência que está ao serviço do progresso da que não está. Por que razão hesitamos em  premiar e proteger a primeira, mas não condenamos decididamente a segunda?
O que que nos impede de apreciar um qualquer acto de um indivíduo ou instituição, avaliando-o,  valorizando-o e distinguindo-o à luz deste princípio singelo: trata-se ou não de um acto de inteligência, ao serviço do progresso?

(Nota: a foto foi "picada" dos jornais, espero que, perante a importância do feito que documenta, com a indulgência do seu autor.)

3 comentários:

Anónimo disse...

Para mudar a "sorte" há quem opte por derreter cera às toneladas na companhia de centenas de milhar de semelhantes... qual Madame Tussauds dos pequeninos.
moz

Raul Henriques disse...

Só uma nota, marginal quanto à substância deste excelente artigo do Carlos, o qual manifesta preocupações que deviam ser de todos.
É sobre o que Platão escreve sobre a escrita, no que encontro uma sabedoria da qual nem o próprio Platão certamente se apercebia. Falo da afirmação de que a escrita «é algo exterior (éksothen)» (ao ser humano, supõe-se).
Com o desenvolvimento recente (vindo de há cerca de meio século) da linguística, ele mesmo derivado dos avanços tecnológicos, veio-se a saber que a linguagem está inscrita nos cérebros humanos, estando mesmo provado que determinadas as zonas do cérebro são sede das diversas competências da linguagem. Tudo indica que não há mais nenhum animal que possua tais capacidades, pelo que se pode dizer que é quase certo que esta é uma das características, senão a decisiva, que diferencia a espécie humana das outras espécies animais.
É por isso que não precisamos de ir à escola para aprender a falar.
Pelo contrário, a escrita necessita de aprendizagem escolar, sendo por isso, como profeticamente afirma Platão, exterior, adquirida; o que obviamente não lhe retira utilidade.
O conhecimento disto é importante como informação para quem quer discutir questões da ortografia. Este é um assunto de grande actualidade, face ao Acordo Ortográfico de 1990, ao qual tenho visto oposições tão inflamadas quanto desinformadas. Que se tenha bem presente: como bem parecia intuir Platão, ortografia não é língua!

Carlos A. Augusto disse...

"Ortografia não é língua!" Nem mais, Raul. Obrigado pelo teu comentário.