2017/07/10

Do Estado de Graça à Lei de Murphy

Escrevemos, há menos de dois meses, que o nosso primeiro-ministro tinha "estrelinha de campeão". A razão era simples: no primeiro ano sob a sua liderança, os sucessos do governo, a nível politico, social e económico (tanto nacional, como internacional) eram inquestionáveis. Relembro: reembolso total ou parcial de salários, pensões e subsídios, cortados entre 2011 e 2015; recuperação das 35 horas semanais; recuperação de 4 feriados nacionais; controlo do "déficit", abaixo das exigências da União Europeia (2,1%); crescimento económico acima da média europeia (2%); redução da taxa de desemprego (9,8%); aumento das exportações (17%); saldo primário positivo (1,8); o melhor ano de sempre do turismo; pagamento antecipado de juros ao FMI, no valor de 1000 milhões de euros, etc... Como se esta "performance" não fosse, já de si, impressionante, Portugal viu o seu candidato (António Guterres) ser eleito secretário-geral da ONU; a equipa de futebol sagrar-se campeã da Europa; um intérprete português ganhar, pela primeira vez, um concurso da Eurovisão e, "last but not least", o país foi visitado pelo Papa, o que não sendo um feito directamente ligado a este governo, contribuiu para a visibilidade e notoriedade de um país reconhecido por ser um dos mais pacíficos e tolerantes do Mundo. Portugal está "in" e do estrangeiro só vinham elogios. Ou seja, o governo do PS, encontrava-se num verdadeiro "estado de graça", confirmado por todas as projecções eleitorais, que lhe dão mais de 40% nas intenções de voto. Perto da maioria absoluta, portanto...
O sucesso foi de tal ordem, que até o circunspecto Schauble, teve de reconhecer os méritos da política financeira do governo, ao comparar o ministro Mário Centeno ao "Ronaldo das Finanças"!
Ora, diz-nos a sabedoria popular, que da mesma forma que "não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe", o contrário não é menos verdadeiro. Era quase inevitável que, mais cedo ou mais tarde, esta sucessão de bons indicadores, fosse ensombrada por outros, menos positivos e, eventualmente, tão funestos, que poderiam fazer esquecer todo o resto.
Se tivéssemos de classificar os acontecimentos das últimas três semanas, provavelmente teríamos de apelidá-las de "mensis horribilis", tal a sucessão de factos negativos com que o país (todos nós) foi confrontado de uma só vez.
Registámos: incêndio de proporções gigantescas na zona de Pedrogão-Grande (64 mortos, 200 feridos, 500 habitações e mais de 100 empresas destruídas, 50.000 hectares ardidos - metade da área ardida em 2016), para além das perdas de material diverso, carros, gado, rebanhos e criação, pertencentes às vítimas. O maior furto de armamento em Portugal, à guarda num dos paióis da base de Tancos; demissão compulsiva dos 5 comandantes responsáveis pelos paióis; duas demissões de generais, em protesto contra a medida aplicada aos seus camaradas da base. Três demissões, de outros tantos secretários de estado, por terem aceitado bilhetes da patrocinadora da selecção nacional de futebol para assistirem aos jogos de Portugal em França; fraude e invalidação da prova final de exame de português deste ano, etc. Como se tudo isto não bastasse, António Costa iria de férias em pleno rescaldo do incêndio e estava ausente, aquando do roubo em Tancos.
"Quando as coisas têm de correr mal, tudo pode correr pior", deve ter pensado o primeiro-ministro. E se é verdade que ainda falta apurar muito do que se passou (as comissões de inquérito já foram constituidas e estão a trabalhar), não é menos verdade que, mais do que apontar culpas, há que apontar responsabilidades. Obviamente que a ministra do MAI não poderá ser "culpada" pelo "downburst" ou pelo raio que rachou o eucalipto e incendiou a pradaria, mas é certamente responsável pela coordenação do ministério que supostamente zela pela protecção civil e pelas forças no terreno, assim como dos contratos ruinosos que pagam sistemas inoperantes! Da mesma forma, que o ministro de defesa, não tem de saber quando são feitas rondas aos paióis e se existem buracos na rede da Base de Tancos, mas tem de dotar as forças militares de meios e pessoas que sejam responsáveis pela política seguida.
Ora o que todos estes factos - ainda que não tenham ligação entre si - vieram demonstrar, é a deficiente preparação e coordenação de múltiplos serviços e meios ao dispôr, que agora se acusam mutuamente, num passar culpas verdadeiramente deplorável.
Restam duas observações:
A primeira, diz respeito aos partidos da oposição (PSD/CDS), que não têm qualquer moral para criticar o actual governo, depois dos cortes e do regime de austeridade imposto durante os anos da "Troika", que vieram debilitar todo um sistema de protecção e defesa, já de si pouco funcional. É verdadeiramente extraordinário, que os maiores arautos do neoliberalismo, defensores de "menos estado, melhor estado", venham agora hipocritamente exigir mais responsabilidade ao estado, que eles foram os primeiros a desmantelar.
A segunda, diz respeito aos compromissos com o pagamento da dívida, nalguns casos superados pelo governo (PS) que, indubitavelmente, limitam a capacidade de investimento do estado, em serviços públicos tão essenciais como a protecção e a segurança, mas também a saúde, a educação ou a justiça, para citar três pilares do estado social. Também este governo parece estar "obcecado" pelo "déficit". Ora, como sabemos, o óptimo pode ser inimigo do bom. Querer, à viva força, diminuir o "déficit" para além do exigido (3%), como o fez o governo, pode agradar a Bruxelas e fazer de Portugal "o bom aluno da UE", mas não ajuda a combater melhor os fogos em Portugal.
Como bem observou um comentador da nossa praça, não podemos querer "ter sol na eira e chuva no nabal": ou pagamos a dívida, ou mantemos o estado social a funcionar. É assim.
Já sabemos o que quer a Troika. Resta saber o que quer o governo.
Esperemos que os recentes e tristes episódios, tenham sido um "turning point" na política de prevenção e planeamento dos gestores da coisa pública. De todos os governos. Para pior, já basta assim...

 

            

5 comentários:

Carlos A. Augusto disse...

Nada é totalmente branco ou preto. É um exercício complicado esse de atribuir injustificadamente estrelinhas para depois as retirar. Na British Columbia (Canadá) está instalado um verdadeiro estado de sítio com os incêndios que ali deflagraram. Não parece que o Trudeau tenha perdido a estrelinha.
Apontemos o dedo às verdadeiras causas: a "primavera" passaada foi a mais quente em Portugal desde 1931. Observaram-se temperaturas recorde desde que há registos. Aqui há dias falou-se num estudo da Universidade de Melbourne que atribui, sem equívocos, a actual onda de calor na Europa à acção humana (https://pursuit.unimelb.edu.au/articles/the-human-fingerprint-on-europe-s-recent-heat). A onda de incêndios não tem mão divina, é o resultado de condições físicas que parecem inequívocas e que ultrapassam o poder deste ou de qualquer governo. Trump desligou os EUA dos tratados que sustentam a acção imediata e enérgica contra as alterações climatéricas. 100 empresas são responsáveis por 71% das emissões globais que determinam as mudaanças climatéricas (https://www.theguardian.com/sustainable-business/2017/jul/10/100-fossil-fuel-companies-investors-responsible-71-global-emissions-cdp-study-climate-change). Mudanças que justificam os incêndios. Quanto ao caso de Tancos, tivesse isto ocorrido há um ano e com Portugal na final do Euro não teria merecido atenção comparável. Com os clubes em início de época, envolvidos em estágios, algumas contratações oo Ronaldo a banhos e pouco mais, Tancos subiu a cacha. Ainda vamos ficar a saber que os roubos já vinham de há uma data de anos, talvez na vigência de outros responsáveis...
A ver.

rui mota disse...

(Parcialmente) de acordo.Os fogos, causados pelas alterações do clima (aquecimento global) podem acontecer em muitos lados (Australia e Califórnia, são apenas dois exemplos), mas muitas das vezes os bombeiros desses países deixam "queimar" as matas (leia-se o "mato")como forma de regeneração da natureza. O número de vítimas é limitado. Portugal tornou-se um "case study"a nível europeu, tendo deixado arder mais de 1 milhão de hectares só na última década! Muito à frente de outros países mediterrânicos, como a Espanha, a França, a Itália ou a Grécia, com oscilações climatéricas semelhantes. Já este ano, arderam em Portugal, mais hectares do que em todos esses países juntos! Isto não é normal. Vai-se a ver e os erros já vêm de longe (o Capoula Santos diz que vem do tempo de Afonso Henriques!). Ou seja, como são todos culpados, ninguém é culpado! Ora a verdade é que continuam coisas por fazer, tão essencial como o cadastro de todos os terrenos privados a Norte do Tejo, foram extintos serviços essenciais como o Instituto Nacional da Floresta (que empregava o escol dos engenheiros sivicultores), os guardas florestais, os pastores, etc..para não falar na desertificsção acelerada do interior do país, fruto da emigração, decadência da agricultura, dos rebanhos (que contribuiam para a pastorícia, etc.). Esta é uma situação que já vem dos anos sessenta do século passado e não vale a pena disfarçar. Ninguém ataca o problema de fundo (a prevenção) e todos os governos, após o 25 de Abril, se concentraram no combate às chamas (à posteriori). Não sou eu que o digo: os jornais que leio, estão cheios de artigos de opinião de pessoas que sabem da poda. Eu mesmo pude constatar a incúria (leia-se laxismo) das terras (cultivadas ou não) na região do Barros, isto em 1979. Já lá vão 40 anos e nada mudou! Ora, esta é a questão central nestes desastres todos: a incompetência dos gestores da coisa pública (leia-se políticos) que não percebem nada dos assuntos e nunca foram ao terreno. O actual governo não é, infelizmente, muito diferente dos anteriores (basta lembrar que o actual ministro da Agricultura fez arte do governo PS de Sócrates (2005-2011) e está lá outra vez...O desaparecimento das armas (para além de ridículo) é outra prova do laxismo. "Laxismo e lassidão" (nas palavras do Sousa e Castro) característica principal de um povo que planeia pouco e "desenrasca" muito. Temos pena.

Carlos A. Augusto disse...

É absolutamente verdade tudo o que relatas, Rui e eu estou (plenamente) de acordo. O que a mim parece algo exagerado é começar a queimar o governo por não ter feito uma tarefa que, como bem lembras, deveria ter sido iniciada há décadas. Não há, por causa disso, desculpas para não fazer nada, não é isso que digo. O que acho é que o problema hoje é incomensuravelmente mais difícil de resolver do que há 40 anos e envolve hoje decisões políticas profundas que são cada vez mais complicadas de tomar. Não quer dizer, repito, que não se faça nada. Quer dizer apenas que é hoje mais difícil, para um governo que recorde-se, tinha uma tarefa complicadíssima para executar. Os problemas que o governo anterior colocou não desapareceram. Não desapareceu a fome, o desinvestimento, os rombos no aparelho do Estado. E aí o problema torna-se político. O nosso, quero dizer. COmo é que, em rigor, se poderia exigir ao actual governo que tivesse resolvido, a meio da legislatura, o incêndio provocado pelo Coelho e fizesse aa reformas da floresta que tardam há décadas? Como é que se plantam árvores "amigas do bombeiro" em 2 anos?!
Se me fizeres esta pergunta daqui a dois anos, eu posso já não ser tão condescendente, mas por agora não estou a ver...
Exactamente o mesmo se passa com as forças armadas e com as questões de segurança. Há décadas que deixámos de ver sentinelas às portas dos quartéis. Há décadas que o efectivo minguou. Qual a admiração se coisas como as de Tancos acontecem? Ou será que durante o tempo do Coelho não aconteceram porque ele fez as reformas necessárias...? E aconteceram agora porquê?

rui mota disse...

Claro. Todos sabemos disso. A minha principal crítica não é sequer a este governo - que espero, sinceramente, fique lá mais uns anitos. A critica, é à mentalidade nacional, que adia tudo para amanhã. Por exemplo: ouvi o ministro do planeamento e das infrastruturas (Pedro Marques), declarar que as obras de reconstrução das casas destruídas em Pedrogão, iam começar (ontem) e que os moradores avançariam com o dinheiro e depois o governo compensava-os (!?). O quê? Mas, estes gajos não têm vergonha na cara? Isto é de uma crueldade terrível!. Os pobres moradores, traumatizados depois de tudo o que perderam, ainda vão avançar com o dinheiro? Estas coisas tiram-me do sério. E não tem nada a ver com "esqerda" ou "direita". Tem a ver com incompetência: à esquerda e à direita.

Carlos A. Augusto disse...

Nesse aspecto (e noutros ;-)!!) dou-te razão. Há alguma crueldade no tratamento entre os portugueses. É um fenómeno estranho. Onde se verifica isso de forma mais nítida é na estrada. Há muita gente a guiar como se se quisesse vingar de um qualquer infortúnio que ele/ela, um seu antepassado ou mesmo um membro da espécie da qual evoluiu há milhões de anos, foi vítima! Há condutores que mais pareceem snipers à espreita numa qualquer cidade na Bósnia...