2018/06/19

O eterno retorno do fascismo


Assistimos, nos dias que correm, a acontecimentos que julgávamos banidos da história da Humanidade, pelo menos daquela parte que considerávamos civilizada.
As imagens de milhares de migrantes que diariamente atravessam mares e fronteiras, correndo riscos que só podem ser justificados quando nada mais há a perder; ou de crianças apartadas dos seus pais, enquanto esperam pela deportação num qualquer barracão de uma fronteira norte-americana, são, para além da sua crueldade extrema, um exemplo paradigmático de regimes que, desprezando todas as regras civilizacionais e democráticas, se outorgam o direito de utilizar métodos que julgávamos banidos desde a 2ª guerra mundial. Não que, desde então, noutros países e latitudes, o autoritarismo, o racismo, a xenofobia e a discriminação, não se tenham manifestado, porventura com maior virulência e de forma brutal, como é próprio dos regimes ditatoriais, como sabemos.
O que espanta nos casos mais recentes (emigrantes africanos, abandonados pelo governo italiano e emigrantes latinos expulsos dos EUA) é estarmos perante acontecimentos passados em países e democracias sólidas, elas próprias construídas graças ao esforço e trabalho de milhões de migrantes ao longo de séculos.
Nada disto é, na realidade, novo, mas há um contexto que ajuda a explicar o aumento exponencial de tais atitudes em diversos países ao mesmo tempo.
É verdade que Trump nunca escondeu as suas intenções e anunciou-as vezes sem fim, durante a campanha eleitoral de 2016. Sempre disse que uma das suas primeiras medidas, seria a de construir um "muro", para impedir a entrada de imigrantes pela fronteira do Sul, ainda que tivesse desistido da ideia quando percebeu que o Congresso (republicanos incluídos) não estava disposto a pagar os biliões que custaria tal desvario. Da mesma forma, recuaria em outras tantas proclamações, cada qual mais disparatada do que a anterior, não porque não desejasse pô-las em prática, mas porque alguém mais "avisado" do seu gabinete, ou os próprios "checks and balances" que protegem o sistema democrático americano, o impediram.
O mesmo se passou em Itália, durante a campanha para as últimas eleições, que dariam a vitória aos partidos "Cinco Estrelas" (populista) e à "Liga Norte" (xenófobo e anti-imigração), que tendo feito campanhas anti-Europa e anti-sistema (o que quer que isso seja) desde sempre disseram ao que vinham. E ganharam. Como, de resto Trump (apesar de ter menos votos), ganhou.
Ou seja, apesar dos seus programas nacionalistas e reaccionários, conseguiram aliciar uma parte não negligenciável da população que (na falta de alternativas credíveis e descrentes das elites políticas tradicionais) optaram por votar em líderes populistas, cuja única mensagem era a recusa do "status-quo" e o ódio ao estrangeiro, bode expiatório de todos os males em sociedades com fortes componentes de imigração, ainda fortemente abaladas por uma crise económica e social, da qual não se refizeram.
O mesmo, de resto, está a passar-se na Europa "civilizada" (Hungria, Polónia, Áustria e Eslovénia) onde os respectivos governos, que incluem partidos de extrema-direita, já alteraram as constituições, advogam a diminuição dos direitos civis, querem o registo de minorias (ciganos, etc.) e a expulsão de estrangeiros ilegais. Também na Europa mais a Norte, em países onde governam coligações liberais, assiste-se com apreensão ao crescimento dos movimentos xenófobos e racistas, como é o caso de Le Pen (França), de Wilders (Holanda), ou o novo partido AfD (Alemanha).
O curioso em toda esta história, é que nenhum dos líderes dos partidos mencionados se reconhece nas práticas que caracterizam os partidos fascistas. Como bem nos lembra Rob Riemen, num seminal ensaio sobre a matéria, o fascismo novo, adapta-se aos tempos. Escreve o filósofo holandês: "Em 2004, o eminente historiador americano e especialista em história do fascismo, Robert O. Paxton, publicou a sua notável obra "The Anatomy of Fascism", onde sublinha que no século XXI nenhum fascista se designará a si próprio como tal. Os fascistas não são estúpidos e são mestres na arte da mentira. Os fascistas contemporâneos distinguem-se em parte pelo que dizem, ainda que seja importante o modo como actuam. À semelhança de Togliatti, Paxton afirma que o fascismo, devido à sua angustiante falta de ideias e ausência de valores universais, assumirá sempre a forma e as cores do seu tempo e da sua cultura. Assim, o fascismo na América será religioso e contra os negros, ao passo que na Europa Ocidental será laico e contra o Islão, na Europa de Leste, católico, ou ortodoxo e anti-semita. A técnica usada é a idêntica em toda a parte: um líder carismático, populista, para mobilizar as massas; o seu próprio grupo é sempre vítima (das crises, da elite ou dos estrangeiros); e o ressentimento orienta-se para um "inimigo". O fascismo não necessita de um partido democrático cujos membros sejam individualmente responsáveis; necessita de um líder  inspirador e autoritário ao qual se atribuem instintos superiores (as suas decisões não têm de ser justificadas), de um líder capaz de ser seguido e obedecido pelas massas. O contexto em que esta forma de política pode dominar é o de uma sociedade de massas afectada pela crise que ainda não aprendeu as lições do século XX" (Riemen, Rob: "O eterno retorno do fascismo", Bizâncio, 2012).
Só não percebe quem não quer.

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