2018/07/02

Na rota do Flamenco (4)

Reservámos para o fim do nosso curto périplo, a cidade de S. Fernando, vizinha de Cádiz, a capital da província do mesmo nome.
Situada à entrada do istmo, sobre o qual foi edificado o porto mais importante da Andaluzia, San Fernando - também conhecida por "La Isla" - é uma densa urbe de 97.000 habitantes, limitada a sul por uma extensa área de salinas e braços do mar, que é atravessada pelo Caño, o rio da cidade. 
Falar de Cádiz e de S. Fernando, é falar de duas das mais emblemáticas cidades flamencas de Andaluzia. De Cádiz partiram (e chegaram) as conhecidas cantigas de "ida e volta", que haveriam de influenciar os "cantes aflamencados", de origem hispano-americana: as "guajiras", as "colombianas", as "habaneras", as "milongas", as "vidalitas" e as "rumbas".
Entre os flamencos notáveis, nascidos nesta província, destaque para Manuel de Falla (compositor) Paco de Lucia (guitarrista), Sara Baras (bailaora), os "cantaores" Niña Pastori, José Llerena Ramos "El Chato" e, o maior de todos, Camarón de La Isla.
José Monje Cruz, El Camarón (1950-1992) é hoje o maior legado do Flamenco na cidade. Logo à entrada, na Praça Juan Vargas, deparamos com o monumento em sua honra, uma estátua em bronze, da autoria de Antonio Mota, fundida em 1992 e recentemente decorada com letras garrafais vermelhas, por ocasião do 25º aniversário da sua morte. O departamento de turismo criou, inclusive, um trajecto (La ruta de Camarón de La Isla), assinalado no mapa da cidade: inclui a "Casa-Museu", situada na Calle Carmén, onde nasceu e viveu o cantor; a mítica "Venta de Vargas", a "peña" flamenca onde Camarón começou a cantar aos oito anos de idade; o monumento referido; a "Fragua de Camarón", onde ele aprendeu a profissão de ferreiro; o "Mausoléu de Camarón", situado no cemitério da cidade e a "Peña de Camarón", lugar tradicional do "cante". A marca "Camarón" é, de resto, visível na maior parte dos estabelecimentos e lojas de "souvenirs", desde os artefactos mais simples aos mais elaborados (canecas, cachecóis, t-shirts, porta-chaves, estatuetas, bustos, reproduções do mausoléu...).
Porque era sábado e a "siesta" é sagrada, tivemos de aguardar pelas cinco da tarde, para visitar a Casa-Museu, ex-libris da "ruta Camarón". Trata-se de uma casa renovada, construída sobre as ruínas do pátio, onde a família do cantor viveu com mais seis famílias, em divisões minúsculas, dispondo apenas de uma cozinha e lavabos comuns, num dos bairros mais pobres da cidade. Acontece que a casa estava fechada (!?). No posto de turismo da cidade, uma simpática funcionária, informou-nos que, com a crise, o "ayuntamento" não tinha dinheiro para destacar uma pessoa a tempo-inteiro para a função, pelo que o Museu só abria em dias de festa ou nos meses de Verão, durante os festivais de Flamenco. Depois de nos contar a história da família do cantor, cujos descendentes continuam a habitar a cidade, aconselhou-nos a visitar a igreja matriz, um austero local de culto, onde, de acordo com a "lenda", o cantor ia rezar junto do nazareno vestido de roxo à esquerda da porta principal. Lá fomos, não sem antes termos preenchido o livro de reclamações do posto de turismo, na esperança de poder visitar a Casa-Museu numa próxima excursão a bela cidade de S. Fernando.
A recompensa surgiria em Sevilha, dois dias mais tarde, quando assistimos ao documentário "Camarón: flamenco y revolución", uma longa-metragem de Alexis Morante, com guião de Raúl Santos, narrada por Juan Diego, conhecido actor sevilhano. O filme, realizado em 2017, foi este ano apresentado no festival de Málaga, tendo aí recebido os maiores elogios. Nele se conta a atribulada e fascinante vida do cantor, da qual não são omitidos os aspectos mais dramáticos (dependência de drogas e a ruptura com Paco de Lucia), num estilo moderno e inovador, onde o "flash-back" e as sequências de animação, alternam com imagens de arquivo, nem sempre em ordem cronológica, mas certamente fiéis ao homem que foi El Camarón, por muitos considerado o maior "cantaor" da história do Flamenco.     
(continua)

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