Entre 1992 e 2014, desapareceram quatro dos maiores nomes da "renovação flamenca", a geração surgida no panorama musical espanhol - após a queda do regime franquista - que rompeu com o denominado "flamenco operático" e outros estereótipos do género, popularizados através dos "tablaos" para consumo turístico. Camarón de La Isla (1950-1992), Enrique Morente (1942-2010) no "cante"; Antonio Gades (1936-2004) no "baile" e Paco de Lucia (1947-2014) no "toque", foram as figuras principais desta transição que contribuiu para a renovação do "cante jondo" e a sua projecção internacional. O género deixou de ser uma arte marginal (interpretada por ciganos) e desprezada durante a ditadura, para se afirmar nos circuitos musicais de renome, sendo hoje reconhecido pela Unesco, como Património Imaterial da Humanidade.
Um longo caminho, com mais de 200 anos, onde pontuam nomes como El Planeta, Silverio, Antonio Chacón, Manuel Torre, El Fosforito, Manolo Caracol, La Niña de Los Peines, Tomas Pavón, Antonio Mairena, Fernanda e Bernarda de Utrera, Carmen Amaya, Antonio Gades, Farruco, Ramón Montoya, Sabicas, Pepe Habichuela e tantos outros...
A vitalidade do Flamenco pode ser constatada nos inúmeros locais onde continua a praticar-se, sendo a cidade de Sevilha um bom exemplo desta popularidade. Para turistas apressados, "O Museu del Baile Flamenco" (com sessões contínuas diárias e um corpo de baile residente), situado a meio caminho entre o Centro e o Barrio de Santa Cruz, pode ser uma boa alternativa. Para os mais conhecedores, a "Casa de la Memoria" (Centro Cultural Flamenco) situada em pleno Centro (Calle Cuna), oferece sessões de flamenco tradicional, com actuações de "cante", "toque" e "baile" de muito boa qualidade. Foi lá que vimos a excelente "bailaora" La Choni e, mais recentemente, uma sessão dedicada ao "cante jondo", com Ana Real, David Bastidas e Marta "La Niña" (cante), Yolanda Osuna e Óscar de los Reyes (baile) e Raúl Cantizano (toque). Um programa para iniciados, com incursões polifónicas nas "saetas", "martinetes" e "soléas", de nível. Outra boa opção, é "CasaLa Teatro", um teatro de bolso (28 lugares), situada em pleno Mercado de Triana, no bairro do mesmo nome, junto à Ponte de Isabel II. Vimos lá um trio flamenco constituído por Carmen Lara, Celedonio Garrido e Sergio Gòmez, que valeu bem a visita.
Porque, em 22 de Junho, actuava Miguel Poveda na cidade, não resistimos ao apelo de um dos maiores nomes do Flamenco actual, que ali apresentou o seu último concerto "Enlorquecido", dedicado ao poeta andaluz Federico Garcia Lorca.
O concerto, esgotado com antecedência, teve lugar no auditório "Rocío Jurado" (inaugurado em 1991 para a Exposição Universal de Sevilha) que dispõe de 4000 lugares sentados. Pesem os preços algo exagerados e as deficientes condições de comodidade (cadeiras de plástico), o programa era aliciante e não defraudou as expectativas.
Poveda, velho conhecido do público português, tinha estreado duas destas canções no programa que apresentou aquando da sua última passagem pela Gulbenkian, no passado mês de Novembro. Desta vez, foram doze os poemas de Lorca escolhidos pelo cantor e musicados pelo pianista Joan Albert Amargós, os quais constituem a primeira parte do concerto. Excelentes músicos (13 pessoas em palco), entre os quais Amargós (no piano) e Jesús Guerrero (na guitarra), que também tinham acompanhado Poveda em Lisboa.
Entre os clássicos "Chapéu de Três Bicos" e "Sevilhanas del Siglo XVIII", tempo para novo reportório, com "No me Encontraron", "Alba", "El Silencio", ou o pictórico "Son de Negros en Cuba". Um concerto, misto de flamenco e rock sinfónico, onde o som (óptimo) era apoiado por imagens projectadas em fundo, que sublinhavam a dramaticidade das canções, numa simbiose perfeita entre as diversas técnicas multimédia utilizadas.
A segunda parte, deu-nos a ver o Poveda, cuja carreira acompanhamos há vinte anos. Flamenco puro e duro, onde as "saetas", as "soléas" e as "seguiriyas", foram interpretadas com a mestria de alguém que domina os "palos" básicos do Flamenco como poucos. Nos "encores", tempo ainda para homenagear Camarón e Morente, com uma interpretação épica do hino "La Leyenda del Tiempo". O concerto, que duraria duas horas, terminaria com as tradicionais "bulerías", cantadas e dançadas, por todos os músicos em palco. Um magistral Poveda, no auge da sua maturidade artística.
Sim, o Flamenco está vivo e recomenda-se!
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