2019/03/13

Flamenco e Bandoleros em terras de Carmen (2)


Se há lugares mágicos, Ronda, a meio-caminho entre Sevilha e Málaga é, certamente, um deles. Já aconteceu a todos: chegamos a um sítio pela primeira vez e sentimos que podíamos lá viver. Ou morrer, para o caso tanto faz...
Foi essa sensação que sentimos, ao chegar pela primeira vez à praça principal da cidade, que desemboca na "puente nuevo" (construída no século XVIII) a ligação da parte moderna, vibrante de vida e comércio, à parte antiga, com os seus edifícios de origem românica e árabe. Ronda é também atravessada pelo rio Guadalevín, cujo caudal provocou uma fenda (El Tajo) com 120 metros de profundidade, o mais conhecido "ex-libris" da cidade. Olhando para baixo, é a vertigem. Olhando para o Sul, podemos avistar, no horizonte, a cordilheira que separa a planície da orla marítima. Marbella dista apenas 54km. Não é Xanadu, mas quase.  
Percebemos agora, melhor, a frase de Orson Welles, que passou longos períodos em Ronda e cujas cinzas permanecem, por seu desejo, na herdade do amigo e toureiro Ordoñez, situada a 6km da cidade: "A man does not belong to the place he was born in, but to the place he choose".
Welles não foi, no entanto, o único americano famoso a apaixonar-se por Ronda. Também Ernest Hemingway, que cobriu a guerra civil espanhola como "reporter", ao lado dos republicanos, voltava frequentemente a Espanha, para assistir às touradas, de que era aficcionado. Alguns dos seus mais famosos livros ("Por Quem os Sinos Dobram", "Death in the Afternoon", "The Dangerous Summer"), foram escritos em Ronda. A cidade não esqueceu a passagem destes dois ícones da cultura americana e retribuiu da melhor forma, honrando-os com bustos, que podem ser admirados no parque principal, ao lado da famosa praça de touros, uma das mais antigas e importantes de Espanha. Na praça, inaugurada em 1785, existe ainda um museu e uma escola de equitação, que recebe a visita de milhares de turistas diariamente. Todos os anos, em Setembro, realiza-se a famosa corrida "Goyesca" (única em Espanha) na qual os toureiros se apresentam vestidos com trajes de famosas pinturas de Goya. Foi aliás, nesta praça, que Francesco Rosi filmou as cenas finais de "Carmen" (1984), considerada uma das melhores adaptações cinematográficas da famosa ópera de Bizet. Por Ronda, se apaixonou o poeta austríaco Rainer Marie Rielke (1875-1926), que viveu na cidade entre 1912 e 1913. O hotel Reina Victoria, onde viveu, ainda existe, mas o quarto (208) foi completamente remodelado. Restam a secretária, a cadeira e um armário, que se encontram no "lobby" do hotel.
Na impossibilidade de tudo ver, em apenas dois dias, optámos pela Real Colegiata de Santa María Mayor, um imponente complexo, mandado construir pelos Reis Católicos, sobre as ruínas da antiga mesquita Mayor de La Medina, da qual ainda é possível admirar o Arco del Mirhab e parte do muro da mesma. Impressionante, é a nave central da igreja e os seus retábulos, para além de uma importante colecção de ícones ortodoxos, que podem ser admirados no primeiro andar. Subir ao telhado, através de uma íngreme escadaria em caracol, é um sacrifício compensador. Dele se avista toda a cidade e a planície em redor. Imperdível, o pôr-do-sol.
Imperdíveis são, ainda, os "baños árabes", em perfeito estado de conservação, que podem ser visitados diariamente. Trata-se de uma adaptação dos antigos banhos romanos, que constituem uma das heranças maiores da cultura muçulmana, quando Granada era o último reduto do Islão na Península Ibérica (Séc. XII-XV). Numa das salas, pode ser visto um filme sobre a técnica de construção dos banhos e o seu funcionamento.
Dada a sua localização, Ronda foi, durante um largo período da história (Séculos XVI-XIX), um refúgio para "bandoleros", assaltantes dos viajantes que ousavam atravessar as serras circundantes. Ainda que o fenómeno existisse noutras regiões de Espanha (e de Portugal), foi na Andaluzia que ele se manifestou com maior intensidade. Não é pois de admirar, que tivesse sido em Ronda, que abriu o primeiro, e único, museu espanhol dedicado à temática dos Bandoleros e Viajantes Românticos (uma espécie de "banditismo social", à imagem do nosso Zé do Telhado). Uma verdadeira "meca", para os estudiosos do tema, que dispõe de mais de 1400 objectos, entre livros, armas, vestuário, fotos e documentação original.
O Museu, dispõe de cinco salas, dedicadas a temas tão diversos como "Os Viajantes Românticos", "Viver o Banditismo", "Os Homens e os seus Nomes", "Aqueles que os perseguiam (Guardia Civil)" e "Armas e Testemunhos escritos", para além de uma sala onde são projectados filmes e uma loja de "souvenirs" e literatura especializada, já que o tema é estudado por académicos, que se reunem periodicamente em colóquios dedicados à matéria. Lá encontrámos os nomes e as relíquias dos mais famosos representantes do bandoleirismo: Los Niños de Écija, El Tempranillo, Diego Corrientes, Francisco Jiménez e Pazos Largos, o último "bandolero", falecido na prisão em 1934. Uma verdadeira preciosidade, este museu. 

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