2019/06/21

E a Andaluzia aqui tão perto...

Centro Andaluz del Flamenco
Na nossa mais recente visita a Andaluzia, tivemos tempo para conhecer alguns dos lugares míticos da história do país vizinho e escutar novas vozes do Flamenco. Em ambos os casos, um prazer renovado, como já vem sendo habitual.
Comecemos pelo fim, o Flamenco, ex-libris por excelência da comunidade andaluza.
Quando, há cerca de um ano, tentámos visitar o "Centro Andaluz del Flamenco", em Jerez de La Frontera, uma das cidades-cadinho do "cante" onde, em 1958, foi criada a 1ª "Catedra de Flamencologia" de Espanha, não foi possível fazê-lo. Era sábado e o palácio, que alberga o Centro, estava encerrado. Prometemos voltar e, desta feita, com resultado positivo.
Desde que foi criada, a "Catedra de Flamencologia" já conheceu diferentes localizações: primeiro, no imponente Alcazár da cidade, depois, num dos edifícios da bodega "Tio Pepe", outro dos "ex-libris" citadinos e, actualmente, no "Centro", da qual é parte integrante. De acordo com as informações recolhidas, virá a fazer parte da futura "cidade de Flamenco", idealizada e construída pelo Turismo local e regional, em parceria com o Ministério de Cultura espanhol. Coisa para dois anos, disse-nos, em tom de confidência, a secretária de serviço...
O palácio de Pemartin, que teria tido como última proprietária D. Antonia de Villavicencia (1770-1780), é uma sólida construção do século XVIII, onde se combinam vários estilos. De realçar o pátio interior, em estilo barroco-rocócó, de forma rectângular, ladeado por arcos, por cima dos quais, há uma galeria, que corre ao longo de toda a superfície. O tecto, envidraçado, permite a entrada da luz natural, realçando a beleza e equilíbrio do edifício, uma jóia arquitectónica. No primeiro andar, dispõe de um pequeno auditório, com balcão, onde são projectados, em sessões contínuas, dois documentários sobre a história (10') e sobre os principais "palos" flamencos (25'). Elucidativos e pedagógicos que bastem, para iniciados, mas não só. Cá fora, no "hall" de entrada e em todos os corredores, fotografias e pinturas alusivas ao Flamenco, assim como adereços próprios da "arte" (trajes, leques, castanholas, sapatos, pentes...). Finalmente, o "prato forte" da visita, o Centro de Documentação, dividido por várias salas, às quais é possível aceder sem qualquer protocolo especial. Nelas, pudemos admirar a extensa colecção de publicações, constituida por mais de 5.500 volumes, para além dos postos de escuta, onde é possível visionar mais de 15.000 gravações discográficas, vídeos, arquivo gráfico e publicações digitalizadas, de que dispõe o Centro. Existem, ainda, 1200 arquivos de música impresa. Um verdadeiro "templo", para os aficcionados. Prometemos voltar, com mais tempo e, nessa altura, com um objectivo concreto em vista. Argumentos, não faltarão.
Após a teoria, restava a prática: O flamenco ao vivo. Em Sevilha, anunciavam-se dois concertos imperdíveis.. O primeiro, de Rocío Marquez e o segundo, de El Niño de Elche. Lá fomos, esperançados em conseguir entradas, coisa sempre difícil quando se trata de nomes consagrados.
O primeiro recital (gratuito) era organizado pela Tertulia Flamenca de Enseñantes "Calixto Sánchez Marín", um grupo de aficcionados militantes da "arte", que reune, regularmente, para ouvir e falar de Flamenco. O encontro teve lugar no auditório do Instituto Martínez Montañés, uma escola técnica superior sevilhana. Sala à cunha, para ouvir Rocío Marquez (voz) acompanhada por Manuel Herrera (toque), um virtuoso professor do Conservatório.
Ainda que jovem, Rocío (1985), tem já uma longa carreira e diversos albuns publicados. Originária de Huelva,  cedo se impôs nos concursos locais e nacionais, tendo vindo a afirmar-se como uma das mais seguras e rigorosas intérpretes da nova geração do "cante". Dona de uma técnica vocal irreprensível e de um conhecimento profundo dos diversos estilos (palos) flamencos, é nos fandangos e nas bulerias, as suas imagens de marca, que tem ganho maior reconhecimento. Ao contrário da maior parte das "cantaoras", a sua voz não é grave e "arranhada", como as de origem cigana. Pelo contrário, é límpida e tem uma dicção perfeita, com predomínio das notas agudas. Da mesma forma  que a célebre bebida, "primeiro estranha-se, depois entranha-se". Uma revelação, pelo menos para mim, que nunca a tinha escutado ao vivo. De recital, destaque para o reportório do seu último album, intitulado "Visto En El Jueves" (2019), considerado, pela crítica do país vizinho, o seu melhor trabalho à data. Depois de Tavira, onde actuou no passado Verão, Rocío Marquez volta a Portugal, para actuar a 21 e 22 de Junho, em Albergaria-a-Velha e Sever do Vouga, respectivamente, integrada no "Festim" (Festival de Músicas do Mundo). Uma oportunidade a não perder.
Resta falar de El Niño de Elche (1985), que conhecíamos de actuações anteriores, a primeira da última Bienal de Flamenco e, a segunda, no mítico teatro Lope de Vega, ambas em Sevilha.
Sobre El Niño, que passou no Teatro da Trindade em Lisboa, na passada semana, já quase tudo foi dito. Do pior e do melhor. Um iconoclasta, destruidor de mitos e desconstrutor de géneros, os quais manuseia com a maior das facilidades: do flamenco, puro e duro às canções de ida-e-volta; do bolero às "cumbias" colombianas; da "bomba" porto-riquenha ao hard-rock; do batuque afro à batida "tecno", sempre acompanhado por um naipe de excelentes músicos, El Niño, ama-se ou odeia-se. Os puristas detestam-no e os seguidores não perdem uma actuação. Lá estavam todos (talvez mil, talvez um pouco mais), na apresentação do seu último trabalho, intitulado "Colombiana", este ano editado e já à venda em Espanha. Um turbilhão, que começou com a alocução "É bom estar aqui, porque aqui está a assistência mais inteligente de Sevilha". A provocação estava lançada e os fans adoraram. Seguiram-se duas horas de concerto, onde o cantor passou em revista os temas de "Colombiana", uma inflexão de 180 graus em relação ao seu último e polémico disco "Antologia del Cante Flameco Heterodoxo" (2017) que deixou os puristas de "orelhas a arder". Desta vez, a provocação, saíu do território sagrado do Flamenco andaluz, para centrar-se nas influências e ritmos do Caribe, uma das explicações (nas palavras do autor) para compreender o género. Para mim, que sou suspeito, "um disco e peras". Ver e ouvir El Niño de Elche, tornou-se, agora, uma obrigação.      
       
 

1 comentário:

Amílcar Vasques-Dias disse...

Fantástico, Rui! És mesmo bom a escrever sobre os temas teus (e nossos...!) preferidos!
Parabéns, e obrigado! Um abraço grande.
Amílcar e Helena