2019/06/05

Taxi Driver (18)


Para onde?
- Para a Buraca, sff.
Quer ir pelo Monsanto, ou pela Radial Norte-Sul?
- Tanto faz, a esta hora já há pouco trânsito...
Eu pergunto sempre, pois há clientes mais esquisitos, uns querem ir por aqui, outros por ali...
- Acho muito bem. Não tenho preferência, deixo ao seu critério.
Então, vamos aqui pelo túnel do Marquês, está de acordo?
- De acordo.
Já vi que foi à Feira do Livro, não é verdade?
- É verdade, há que aproveitar depois das 21h., quando algumas editoras praticam 50% de desconto sobre o preço de venda dos editores...
Ah, sim? Não sabia...
- Pois, temos é que vir aqui à noite, o que nem sempre dá muito jeito...
E consegue ler tudo o que compra?
- Nunca se consegue ler tudo o que compramos, mas o "vício" é maior que a perna...
Eu já me deixei disso. É tudo uma falsificação...
- Uma falsificação? Não estou a perceber...
Sim, uma falsificação. Já não há livros e traduções como antigamente.
- Mas, está-se a referir a quê? À literatura, aos ensaios, aos autores estrangeiros?
Sabe, eu ando aqui na praça, mas já passei por isso tudo. O meu pai era livreiro e, quando era miúdo, passava os dias a ajudá-lo. Nessa altura, lia muito e conhecia aquela "maltinha" toda...
- Muito me conta...
Pois, li os clássicos todos: o "Principezinho" (o Principezinho!), o Mark Twain, o Charles Dickens, o Victor Hugo, o Émile Zola, o Kafka, o Camus, o Steinbeck, o Hemingway...não falhava um!
- Óptimo. Mas, porque é que diz que isto agora é tudo uma falsificação?
Porque já não há traduções como antigamente. Quando leio traduções novas dos livros antigos, vejo muitos termos adulterados, que não estavam nas traduções da Ulisseia e dos Livros do Brasil, por exemplo...as novas editoras reeditam os livros, mas não traduzem dos originais. Traduzem e adaptam de outras versões.
- Não me diga...
É como lhe digo. E isto não é só a minha opinião. Muitos escritores, que frequentavam a livraria do meu pai, também o diziam. Havia lá uma tertúlia, onde iam o Luiz Pacheco, o Herberto Hélder, o José Santos, o "Cabeça de Vaca", boa gente, que sabia da poda...Nunca ouviu falar do "Solar dos Galegos"?
- Sim, conheci muito bem. Cheguei a lá ir nos anos setenta e oitenta e até conheci o Luiz Pacheco, na Cervejaria Trindade, que era ali ao lado.
Pois, o grande Pacheco. Nunca o compreenderam, mas ele era genial, sabe?...
- Tenho livros dele. Confirmo, tinha coisas geniais, pena ser tão destrambulhado...Cheguei a comprar-lhe aqueles livrinhos, cosidos com linha, que ele vendia na Trindade...     
Sim, para a cerveja, não era?...
- Era. Pedia-nos 20 "paus" e dáva-nos um livro em troca...
Eu sei muito bem a história dele. Eu sou o "miúdo" das histórias dele...o Milú...tá a ver?
- Não me diga!
Até lhe digo mais, ele era assim, porque herdou aquele carácter do pai. O pai era rico e, a dada altura, amantizou-se com a empregada lá de casa que, dizia, era "uma brasa"!
- Essa não sabia...
Pois, o pai fez um filho à criada e deserdou o Pacheco, que ficou na miséria. Mais tarde, para se vingar, ele fez o mesmo que o pai lhe tinha feito: Fez um filho à empregada (o Pedro, que mora em Setúbal) e, para sobreviver, começou a escrever. Primeiro, comprou uma máquina Remington, daquelas com o teclado Acert (está a ver?) e, depois, folhas de papel fininho e de papel químico e, assim, começou a fazer traduções e escrever cartas para pessoas analfabetas. Nessa altura, o analfabetismo era imenso, como sabe...
- Sim, para aí uns 30% da população, ou mais...
Exacto. Ou mais! Ora, foi dessa forma que o Pacheco ganhava a vida. Mas ele escrevia de tudo. Prosa, poesia, traduções, cartas, até documentos para as Finanças e para os Tribunais.
- Sim, sim, li a biografia e isso é conhecido.
Até lhe digo mais, naquele grupo da Tertúlia, eram todos bons, mas nem todos eram famosos. Famoso era o Herberto Hélder, mas algumas das suas histórias, não foram escritas por ele...ouvia-as do Pacheco e, depois, escrevi-as ele. Eu sei, que estava lá a ouvi-los...
- Muito me conta. Bons tempos, que não voltam mais...
Sim, anos setenta, oitenta, era eu um "puto". Por isso, é que não me entusiasmam estas literatices, está a perceber?
- Estou a ver. Mas, alguma coisa ficou. Graças aos livros, não é verdade?
É verdade, sim senhor. Bem, chegámos. Obrigado pela conversa e tenha uma boa noite.
- Igualmente.
 



 

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