2019/08/16

Matérias Perigosas

A greve dos motoristas, que dura há cinco dias, parece ter entrado numa fase crítica.
Depois de um período alarmista, ampliado pela Comunicação Social, o governo aumentou os níveis esta semana, exigindo "serviços mínimos" e ameaçando com "requisição civil", todos os motoristas que se recusassem cumpri-los. Aparentemente, saíu-se bem.  A distribuição da gasolina foi-se efectuando sem grandes problemas, ainda que com apoio de militares e da GNR.  No primeiro dia da greve, 12 de Agosto, percorri a A23 entre Vilar Formoso e Torres Novas e a A1, entre Torres e Lisboa (mais de 400 km) e, no Fundão, onde meti gasolina, não havia qualquer carro em fila de espera na estação de combustíveis. Máximo permitido: 15 litros. So far so good.
Não consta que qualquer hospital, serviços de protecção civil, bombeiros ou aeroportos, tivessem falta de gasolina. À excepção do Algarve, onde a distribuição ainda é deficiente (também devido à população flutuante que, nesta altura do ano, aumenta exponencialmente), o nível de incumprimento situava-se nos 30%. No balanço provisório, diariamente feito pelo ministro do ambiente, este disse (ao 5º dia) que tudo estava a decorrer normalmente.
Entretanto, na comunicação social, nos fora e nas redes sociais, as opiniões, umas mais incendiárias que outras, surgiram em catadupa. De um modo geral todos - governo, oposição, patrões, motoristas, partidos políticos, sindicatos, jornalistas, comentadores - começam as suas intervenções por declarar que "a greve é um direito constitucional que assiste aos trabalhadores" para, depois, com maiores ou menores "nuances", acrescentarem: "mas, esta greve, é diferente e prejudica a população em geral". Os mais elaborados, chegam a afirmar que esta greve é de extrema-direita e serve interesses obscuros, quiça orquestrada por Steve Bannon (!?), o alter-ego de Trump que, a partir de Itália, se prepara para pôr a Europa a ferro e fogo. Quem sabe... Não devemos descartar nenhuma hipótese e, nos tempos que correm, uma greve, para mais de camionistas (lembram-se do Chile...) pode fazer cair um governo. Em véspera de eleições, este seria o momento ideal para destabilizar o PS, que vai à frente nas intenções de voto, pensam os arquitectos da conspiração. Logo, há que "parar o país", forma clássica de causar confusão e culpar o governo por tudo o que correr mal.
Acontece que o governo, que esteve bem até agora, não conseguiu parar a greve. O sindicato dos motoristas de matérias perigosas recusa-se suspendê-la e a organização patronal, a Antram, recusa-se negociar com o sindicato, enquanto este mantiver a greve. São cerca de 800 motoristas mobilizados, que fazem parte de um pequeno sindicato, criado em 2018. Das suas exigências, constam o aumento progressivo do ordenado-base (actualmente fixado em 630 euros), que passaria a integrar alguns dos subsídios pagos por fora (que não contam para o IRS) assim como a diminuição de horas-extra que, de acordo com o actual contrato colectivo de trabalho, podem chegar às 60 horas semanais. Ou seja, os motoristas de matérias perigosas exigem um ordenado líquido tributável de 900euros, ao longo dos próximos três anos, e menos horas de trabalho efectivo, o que faria disparar o ordenado ilíquido para cerca de 1500euros, exigências recusadas pela Antram.
Posto isto e porque as partes não negoceiam, a greve pode prolongar-se e, nesse caso, a rutura de "stocks" acontecerá mais cedo ou mais tarde, o que pode inverter a situação, actualmente favorável ao governo, cuja actuação tem sido elogiada pela maioria da população. É aqui que estamos e por isso esta fase é crítica.
Entretanto, os motoristas continuam a trabalhar oito horas por dia, o que lhes garante um vencimento-base, ainda que as horas cumpridas (serviços mínimos) não cheguem para assegurar as necessidades de distribuição. Ou seja, só cumprindo 11 ou 12 horas diárias, o conseguiriam fazer, com todos os riscos inerentes.
Dito de outra forma: o patronato paga parte do ordenado por "debaixo da mesa" aos motoristas, fugindo dessa forma à Segurança Social e ao Fisco e a Autoridade Tributária (que conhece a situação) nada faz para recuperar impostos que ascendem a 300 milhões de euros, de acordo com os cálculos publicados por estes dias. Grande negócio, que o governo (Finanças) ignora olimpicamente. 
Independentemente do que possamos pensar sobre as "intenções" desta greve (que alguns lamentam pelos inconvenientes provocados), a verdade é que não são conhecidas greves sem efeitos secundários, ou que não perturbem a produção. Esse é o seu fim último. Sempre foi assim e esta greve não é excepção. O que está mal, mas muito boa gente parece não querer ver, são as condições de trabalho e salário existentes que, de há muito tempo a esta parte, são praticados no sector. O governo é cumplice desta situação e a sua posição neste conflito, claramente ao lado da Antram, só confirma o lado que escolheu.

11 comentários:

Carlos Alberto Augusto disse...

(1) "Independentemente do que possamos pensar sobre as "intenções" desta greve (que alguns lamentam pelos inconvenientes provocados), a verdade é que não são conhecidas greves sem efeitos secundários ou que deixem de perturbar a produção." Não são "inconvenientes", são privações de direitos de outrém. Estão em causa os artigos 9º, 19º, 44º e 57º da Constituição.

Carlos Alberto Augusto disse...

(2) Bem esteve o governo (não há margem para dúvida, por mais piruetas que se façam e carga ideológica que se atire para cima) em usar os poderes conferidos pelo artigo 58º. Esta greve cheira a esturro, não é mas do que uma acção tosca de RP, feita sabe-se lá por que razões e só tem um fim possível: a derrota dos ingénuos que foram no piar da "avis rara".

Carlos Alberto Augusto disse...

(3) Foram os próprios motoristas, com esta acção inútil e miseravelmente executada, os primeiros, com enorme leviandade, a negligenciar "as condições de trabalho e salário existentes que, de há muito tempo a esta parte, são praticados no sector" e a comprometerem seriamente o futuro da sua luta. Os dirigentes deste "sindicato" deviam ser levados a tribunal pelos motoristas!

Carlos Alberto Augusto disse...

(4) Uma nota também para a questão da "fraude fiscal". Não percebo muito bem os contornos desta coisa, mas os motoristas aceitaram ser pagos desta forma ou foram os patrões que lhes impuseram esta modalidade...? Na primeira oportunidade mudo para um carro eléctrico.

Rui Mota disse...

Os motoristas deste sector, não são piores ou melhores do que noutros sectores. Há de tudo, como na farmácia. Provavelmente, os salários estão todos viciados. Mas, se estão viciados, é pelos patrões, também, que não querem descontar IRC e IRS, como acontece em muitas profissões (hotelaria, restauração, recibos verdes, etc.) Ou seja, a exploração é "mato" em Portugal, mas toda a gente está preocupada com o "Pardal". Este é um oportunista e limita-se a "cavalgar a onda", sabe-se lá porquê...

Rui Mota disse...

...anda a falar do "pardal" e da extrema-direita (Bannon!) que estará por detrás disto tudo. Eu não descarto nada, mas, há provas? Ou os únicos argumentos são de que este governo é de "esquerda" e, por isso, todas as greves são de direita?...Esse é o argumento dos PS acéfalos e de alguns PCPs que gostariam de ter este sindicato na CGTP.

Rui Mota disse...

Os sindicatos já não são o que eram e, da mesma forma que houve greves "selvagens" nos sectores dos estivadores (Setúbal), nos enfermeiros e, agora, nos motoristas, tem na sua origem as más condições de trabalho e pagamento respectivo. Que apareçam personagens como a gaja da Ordem (Cavaco) e agora o Pardal, com uma agenda própria, é frequente neste caso de canflitos. Os trabalhadores devem estar conscientes disso e isolá-los, sem perder de vista os seus objectivos.

Rui Mota disse...

...devem isolá-los, sem perder de vista os seus objectivos de luta. Aconselho o artigo da Raquel-historiadora, no "Público" de quinta-feira, sobre esta questão. Aprende-se muito. Claro que foi cruxificada, pelos PCPs (que a odeiam, por ela ter escrito uma tese onde dizia que o PCP nunca quis a revolução em Portugal, o que é verdade) e pelo PS, que está no governo, e que diz mal de tudo que não possa controlar.

Rui Mota disse...

Para terminar: ninguém fala da Antram, que está encostada ao governo e é protegida por este, como tem sido bem claro nestes dias. É pena, pois estamos a falar de um governo, supostamente de esquerda e não se vê nada...

Carlos A. Augusto disse...

Os sindicatos já não são o que eram, é verdade. O sindicalismo de hoje é uma comédia, com honrosas excepções. Às máquinas trituradoras que são os sindicatos tradicionais, sucederam umas agremiações de gajos ainda piores, totalmente rendidos aos interesses aos quais se deviam opôr e, ainda por cima (e mais uma vez com hnorosas excepções), dirigidos por imbecis, amadores.

Carlos A. Augusto disse...

Por outro lado, a acusação de que o PS montou um "circo mediático" em volta disto é a prova da falta de nível destes dirigentes de pacotilha. Qual seria o governo que não aproveitaria uma prenda, caída assim tão do céu, como esta, da greve dos motoristas?