2020/03/26

Duas semanas noutra cidade (3): Fronteiras, Espanha e Pandemia

Foto Brunoticias

Após uma semana de espera, o segundo telefonema do Consulado Português em Sevilha. O interlocutor, simpático, começa por perguntar se já "regressei" a Portugal. Dada a resposta negativa, informa que os serviços consulares (leia-se MNE) não conseguiram reunir os 20 passageiros necessários, que justificasse o aluguer de um autocarro para um repatriamento colectivo. Pragmático, passou às alternativas existentes: apanhar um autocarro de carreira Sevilha-Ayamonte (15 euros) e, de lá, chamar um táxi que me leve a V.R. Sto. António (20 euros). A partir daí, tinha duas opções: comboio V. R. Sto. António-Lisboa (com mudança em Faro); ou autocarro, directo, até Lisboa. Outra opção (mais cara), seria alugar um carro com chauffeur, mais barato que um táxi, por um preço médio de 150 euros até à fronteira de V. Real. Acrescentou, que se trata de carros de luxo, agora a preço reduzido (!?), dada a escassez da procura. Perguntou-me qual a minha situação e se podia esperar em segurança. Respondi que sim. Realista, acrescentou: "nesse caso, deixe-se estar onde está, que está bem. Quanto mais viajar, maior o risco. De qualquer das formas, quando regressar, terá sempre de cumprir os 15 dias de quarentena, obrigatórios em Portugal." Na despedida, não deixou de sublinhar que eu tinha o seu número de telefone e que o Consulado estaria sempre à disposição para qualquer informação ou ajuda, se necessário...
Contas feitas, e na melhor das hipóteses, irei permanecer aqui até dia 11de Abril, quando o segundo período de quarentena no país terminar.
Com menos de 15 dias de quarentena (o primeiro período ainda não expirou), a situação em Espanha é de alarme generalizado. O país atravessa uma crise sanitária sem precedentes e as estruturas de acolhimento estão à beira do colapso. É o caso de Madrid (o mais grave) onde os hospitais públicos não têm meios humanos e materiais, para receber todos os infectados. O governo fez um apelo aos hospitais privados, alguns dos quais já disponibilizaram alas inteiras para tratamento dos mais necessitados e encomendou 14 milhões de euros em material sanitário. O pessoal médico começa a acusar o esforço titânico a que tem estado submetido e o contacto com os infectados já provocou as primeiras baixas que, nalguns centros, são da ordem dos 20% entre os médicos e enfermeiros! Os meios necessários (camas, máscaras, respiradores, kits de teste, desinfectantes) são manifestamente insuficientes para as proporções desta epidemia e os apelos ao governo são, por isso, constantes. Afinal, os médicos estão na primeira linha do combate e serão os primeiros infectados. São eles os heróis, nos dias que passam. Diariamente, a população de Sevilha, assoma às janelas pelas 20h. para agradecer com uma salva de palmas a dedicação demonstrada. Minutos impressionantes.
Nem tudo são palmas, no entanto. Também há "caçaroladas". A primeira, contra o rei Filipe VI, durante o discurso onde este animava o país, e que coincidiu com anúncio onde renunciava à herança do seu pai, por manifesta corrupção; a segunda, contra o governo, por ter decretado o prolongamento do estado de calamidade pública, agora reforçado com medidas austeras de circulação e multas pesadas para quem não obedecer. Os transportes públicos foram reduzidos a metade e a entrada nos únicos estabelecimentos abertos (supermercados e farmácias) é feita a conta-gotas, com filas de pessoas que guardam distância entre si. Pesem as medidas tomadas, o número de mortos não pára de aumentar. À hora de escrever este texto, o Worldometer (OMS) registava um total de 56 197 infectados e 4145 mortes em Espanha, o 4% país com mais infectados a nível mundial, depois da China, USA e Itália. Uma catástrofe sem precedentes. A infecção já está em 196 países, apesar de alguns não publicarem estatísticas fiáveis.
Países com maior número de infecções (short list):
China: 81.285 (3.287 mortes)
USA: 74.388 (1.072)
Itália: 74.386 (7.503)
Espanha: 56.197 (4.145)
Alemanha: 41.519 (239)
Irão: 29.406 (2.234)
França: 25.233 (1.331)
Suiça: 11.712 (191)
UK: 9.849 (477)
Coreia do Sul: 9.241 (131)        
Holanda: 7.431 (434)    
Portugal, aparece em 15º lugar com 3.544 infectados e 60 mortes.
A registar, pela positiva, a redução do número de mortos na China e na Coreia do Sul, onde a epidemia foi considerada controlada (o que pode ser explicado pela disciplina e pelas austeras medidas militares de contenção e prevenção); o baixo-número de mortos na Alemanha (o que pode ser explicado pelo sistema de prevenção existente: 160 000 testes/dia - mais do que na Coreia do Sul) - o maior número de camas por habitante (8/26) e menos mortes de pessoas idosas.
A surpresa, surge do Reino Unido (o país que criou o National Health Service), da Suíça e da Holanda, países com bons sistemas de saúde. Se, no primeiro caso, uma das explicações poderá ter a ver com a descapitalização do NHS e a atitude negligente do governo neoliberal de Boris Johnson, que, para manter a economia a funcionar, autorizou a abertura do comércio, para além do razoável (deixando a porta aberta aos contactos sociais que ampliaram as infecções); já na Suíça e na Holanda, países pequenos com grande densidade populacional, a possibilidade de contágio é um factor de risco. Acresce que, em ambos os países, a descapitalização e consequente privatização dos serviços públicos, também se fazem sentir o que, de resto, é transversal à maioria dos países europeus.
Portugal, em termos relativos ainda pouco atingido, confronta-se com o mesmo problema: depois de uma década de desinvestimento no sector público (anos da Troika, com Passos Coelho e anos de estabilização com Costa) não recuperou os níveis anteriores a 2011. A privatização da saúde (50% do sector) aumentou o fosso entre os "have" e os "have not", com as consequências conhecidas. Com a curva dos infectados a aumentar (ainda que abaixo das projecções mais pessimistas), o sistema do SNS está em risco de implosão e o governo deve tomar medidas que defendam a população. Desde logo a nível sanitário (comprando material e obrigando os privados a disponibilizar instalações e testes para a população) e, simultaneamente, criando medidas temporárias de apoio a desempregados e empresas em dificuldade. Estamos num tempo de solidariedade. A economia, fica para depois.
Este é, de resto, o apelo de Sanchez (PSOE) e outros líderes europeus, que pediu um novo "Plano Marshall" para a Europa, ao que a presidente da Comissão (Von der Leyen) respondeu que a Comissão dispunha de meios suficientes para suster a crise (!?). Quanto à comissária da saúde europeia, parece perdida em combate, já que ninguém ouve falar dela...
No meio do caos organizado em que se transformou esta pandemia, não faltam as vozes da oposição, para quem tudo o que os governos fazem está mal feito. No caso espanhol, o líder do Vox (extrema-direita) secundado pelo PP (franquista), falam todos os dias das suas casas, onde estão refugiados em quarentena. Abascal (Vox) criticou o governo por autorizar manifestações feministas no dia 8 de Março que, na sua "perspectiva", teriam aumentado o risco de contágio (!?); ontem, voltou a manifestar-se, exigindo que os imigrantes ilegais pagassem todos os gastos se fossem atendidos em hospitais públicos (!?). Esqueceu-se de referir os milhares de imigrantes legais, que trabalham nas estufas andaluzas, sem máscaras e sem luvas, onde são explorados e vivem em condições deploráveis de salubridade.
Outro palerma, é um médico de Granada, que dá pelo nome de Jésus Candel e coloca vídeos na Net. Começou por elogiar os serviços médicos nos primeiros dias, para mudar o discurso à medida que faltava material e o hospital onde trabalha deixava de responder às necessidades. O homem pensou que tinha graça e fez das suas intervenções diárias, uma espécie de "stand-up comedy", onde injuriava tudo e todos, a começar pelo primeiro-ministro. A idiotice (um caso de insubordinação inqualificável) foi criticada por colegas de profissão e Joan Planas, um comentador que (num vídeo viral) exigiu a Candel que pedisse desculpa ao povo espanhol. Já esta semana, Candel retratou-se e veio mudar o discurso, agora com lágrimas nos olhos. O medo e o pânico não poupam ninguém, mesmo os mais parvos.
Esta é, provavelmente, a maior lição desta pandemia. Atinge tudo e todos: doentes e médicos, pobres e ricos, famosos e desconhecidos: do monarca de Mónaco ao príncipe Charles de Inglaterra; de Irene Montero (Podemos), ministra da Igualdade a Carmen Calvo (PSOE), vice-presidente do governo espanhol, que, hoje mesmo, teve alta do hospital onde se encontrava internada devido ao Coronavírus. Também o juíz Garzón, se encontra hospitalizado com dificuldades respiratórias.

(continua)





 

1 comentário:

Carlos A. Augusto disse...

A acrescentar o Boris Johnson à lista dos "notáveis" infectados. O efeito de rebanho, pelos vistos, não resulta nas "ovelhas negras"...