2020/03/30

Duas semanas noutra cidade (5): "Confinamiento", Vírus e outras mortes

foto ABC Sevilla
A Espanha, entrou hoje no segundo período de "confinamiento". Até ao próximo dia 11 de Abril, na melhor das hipóteses, continuaremos "todos" em casa. Todos, é como quem diz. Diariamente, podem ser vistas pessoas na rua, fazendo compras ou, simplesmente, passeando os cães. Há cães que nunca devem ter saído tanto, tal o número de vizinhos a passear a trela...
As ruas de Sevilha, habitualmente fervilhantes de alegria, transformaram-se em tristes "calles", cujos únicos meios de transporte são, agora, os autocarros (vazios), os táxis e as ambulâncias. Nas principais vias de La Macarena, o bairro onde me encontro, há unidades para-médicas e carros de polícia em permanente estado de alerta. No centro (em redor da Plaza de Armas) o exército está de prevenção e colocou diversos blindados em pontos estratégicos, junto ao rio, para dissuadir os mais afoitos que por lá costumam passear.
Celebrações tradicionais, como a "Semana Santa" e a "Feira de Sevilha", atracções turísticas que, anualmente trazem milhares de forasteiros à cidade, foram este ano canceladas, com consequências que se prevêem desastrosas para a economia local.
Ainda que a Andaluzia, em termos relativos, mantenha uma baixa taxa de infectados quando comparada com as regiões de Madrid, País Vasco e Catalunha (as mais afectadas), os números não mentem. A Espanha passou a ser o 3º país com mais infectados a nível mundial (85.195) e o 4º país em número de mortes (7.340). Os dados são da OMS e podem ser consultados através da aplicação "worldometer". Uma catástrofe humanitária sem precedentes, a maior no país desde a 2ª guerra mundial.
Como em todo o lado, o oportunismo aproveita-se da crise. Os partidos mais à direita (PP e VOX) continuam a criticar o governo e a clamar por mais meios sanitários, ignorando deliberadamente a contenção de gastos e a privatização da saúde nos governos de Rajoy que, na eminente falência de La Caja, teve de pedir um resgate de 100.000 milhões de euros para salvar a banca (um dos maiores resgates na UE). Rajoy, acabaria por ser demitido, devido a uma moção de censura do Parlamento, tantos eram os casos de corrupção em que o PP estava envolvido. Na província foram, entretanto, reportados os primeiros casos de assaltos a moradias isoladas, por supostos agentes sanitários que se apresentaram aos moradores para inspeccionar as suas casas. Uma nota positiva: devido à diminuição do tráfico, a poluição ambiental, nas regiões mais industrializadas, caiu drasticamente. Nas ruas de Madrid, foram avistados os primeiros pavões e javalis, a passear à noite...
Nem todas as mortes, no entanto, são uma consequência do vírus. Outras mortes, por causas diferentes, vão chegando ao nosso conhecimento, através de amigos e da imprensa estrangeira. 
É o caso do cantor Pedro Barroso (1950-2020), pioneiro da "nova canção portuguesa" dos anos '60 (programa Zip-Zip) que tive o prazer de conhecer na Holanda. Lembro uma histórica intervenção em Nijmegen, organizada pelo grupo local de apoio à Reforma Agrária em 1976; uma curta digressão, que incluiu as cidades de Wageningen e Amsterdão em 1979; e, finalmente, em Amsterdão, onde voltaria a actuar em 1980, naquela que foi a sua última visita como cantor. Viria a reencontrá-lo em Lisboa, há dois anos atrás, durante um evento dedicado à cidadania, no páteo do Liceu Camões, liceu que ele frequentou em jovem. Estava já doente, afectado pela doença que viria a vitimá-lo este mês. A nossa amizade, apesar da distância física e temporal, manter-se-ia até final.
Da Holanda, chegam-me notícias de personalidades que acompanhei de perto e com quem me cruzei, durante a minha longa estada em Amsterdão. Registo quatro nomes importantes:
O político Harry van der Berg (1942-2020), deputado e ministro do PVDA (social-democrata), célebre por ter apoiado a causa dos refugiados e transportado diversas malas com milhares de escudos para Portugal (supostamente enviadas por Willy Brandt para ajudar Mário Soares na sua "cruzada" contra o comunismo). Mais tarde, veio a saber-se que o dinheiro era enviado pela CIA, que utilizava o deputado holandês, dado que este era detentor de um passaporte diplomático, o que não levantava suspeitas. O episódio, referido em todas as necrologias, já era conhecido há muito e está descrito, em detalhe, no livro "Contos Proíbidos: memórias de um PS desconhecido" de Rui Mateus, publicado pela editora D. Quixote, em 1996. O livro, que esgotou num ápice, nunca mais seria reeditado.  Vá lá saber-se porquê...
Outro personagem marcante, foi o professor Goudsblom (1932-2020) emérito sociólogo e conselheiro do governo holandês para questões sociais, que tive o privilégio de ter como docente na Universidade de Amsterdão, onde leccionava na década de setenta. Dos seus colégios, guardo a imagem do grande auditório da faculdade, repleto de "caloiros", que o escutavam religiosamente, enquanto nos iniciava nas ideias de Marx, Weber, Comte e Durkheim.
Da área da cultura, destaco a cantora Liesbeth List (1941-2020), representante da canção ligeira de qualidade, a solo e em duo, com Ramses Schaffy, o seu "partner" preferido. Cantou Teodorakis em holandês, à època preso pela junta militar grega. Relembro uma histórica actuação, num "meeting" de solidariedade com o povo grego, organizado no Hotel Kranapolsky em Amsterdão, no início dos anos setenta, onde seria a estrela da noite.
Destaque, ainda, para o jornalista Peter van Bueren (1942-2020), figura central da critica cinematográfica holandesa, durante mais de 40 anos, primeiro no diário de "De Tijd" e, mais tarde, no "De Volkskrant", onde terminaria a sua carreira em 2002. No mesmo ano, ser-lhe-ia atribuido o "Lifetime Film Achievement" pela sua contribuição para o cinema, durante o Internacional FilmFestival de Roterdão que eu, à época, acompanhava como colaborador do DN. O Peter morava no mesmo bairro de Amsterdão e encontrávamo-nos, frequentemente, no mercado da Ten Katestraat. Tinha um conhecimento enciclopédico e um humor cáustico, muito holandês, que nem sempre era apreciado por todos os colegas de profissão.  
Em Espanha, registo dois falecimentos de figuras públicas, na última semana:
A artista italiana Lucia Bosè (1931-2020), popularizada durante os anos do neo-realismo e cuja carreira se dividiu entre Itália e Espanha, onde vivia. No dia da sua morte, a televisão espanhola prestou-lhe homenagem, com a projecção do clássico "A Morte de um Ciclista", de Juan António Bardem" (1955), onde desempenha o principal papel.
Finalmente, a morte do activista Chato Galante (1948-2020), preso político durante o regime franquista e membro da "Asociación de Presos y Represaliados por La Ditadura Franquista". Era igualmente activista na ARMH (Asociación para la Recuperación de la Memoria Histórica). Vimo-lo recentemente na película "El Silencio de Otros" (prémio Goya 2019), documentário impressionante sobre o trabalho de exumação dos corpos fuzilados e enterrados em valas comuns, durante a guerra civil e durante a ditadura franquista. São mais de 115.000.   
A semana não terminaria, sem mais uma notícia alarmante, ainda que provável: o director do Centro de Coordenação de Alerta e Emergência, Dr. Fernando Simón, porta-voz do governo espanhol para a epidemia do Covid19, contraíu a infecção e encontra-se confinado em casa.  

(continua)


  

   

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