2020/04/07

Duas semanas noutra cidade (7): Santos, Vírus e Testes


Em tempos normais, a semana da Páscoa é, por tradição, a mais celebrada e concorrida em toda a Espanha. Em Sevilha, o epicentro das comemorações, a "Semana Santa", congrega o maior número de devotos e forasteiros, ainda que haja celebrações nos principais centros urbanos do país.
A cidade pára literalmente durante a maior parte da semana, com serviços públicos, departamentos e escolas,  encerrados para o grande evento. A população, calculada em mais de 700.000 pessoas, prepara-se o ano inteiro para a celebração. Desde logo, através do "Consejo General de Hermandades e Cofradías de la cidade de Sevilla", orgão máximo, responsável pela organização dos rituais religiosos, que determina quais as confrarias participantes (são mais de cinquenta!), quais os percursos seguidos pelas procissões (todas passam, obrigatoriamente, pela Catedral de Sevilha e pelo "Ayuntamiento", onde são instaladas bancadas para os "vips" da cidade); quem transporta os andores nas procissões (constituídas por santos, virgens, mistérios, penitentes e crucificados); os "costaleros" (equipas de 30 moços que alternam, à vez, o transporte dos altares, que chegam a pesar toneladas); os "hermanos", representantes das dezenas de irmandades existentes na cidade; os "nazarenos", reconhecidos pelos seus capuzes ponteagudos de diversas cores, a lembrar os acólitos do "klu-klux klan"; para além de familiares e amigos, que encorajam e apoiam, com água e alimentos, os mais jovens. Toda a gente participa, dos veteranos aos mais novos, que vestem a rigor durante a semana: as mulheres, deslumbrantes nos seus trajes clássicos de "mantilla sevilhana"; os homens, em traje formal, de fato e gravata a condizer. As varandas, engalanadas para a ocasião, são alugadas com antecedência, não sobrando lugares nas açoteias e terraços nos percursos conhecidos. O turismo local, em colaboração com as diversas confrarias, edita pequenos guias em diversas línguas, sobre os locais e horas previstas da passagem de cada procissão, de modo a possibilitar, aos interessados, a possibilidade de escolher os melhores lugares para apreciar o evento. A maior parte das confrarias, são acompanhadas por bandas filarmónicas, que ensaiam todo o ano nas praças da cidade para o grande momento. As procissões têm lugar durante o dia, ainda que algumas só iniciem o seu percurso ao cair da noite, para terminar já de madrugada. Nessas ocasiões, as luzes apagam-se junto à igreja onde recolhe o andor e os estabelecimentos comerciais encerram. O único som audível, à distância, é o arrastar dos pés dos "costaleros", enquanto os "nazarenos", cobertos pelos seus capuchos e capas, empunham longas tochas de cera a arder e continuam a desfilar durante horas. Não raramente, as procissões nocturnas terminam com "saetas" flamencas, cantadas à capela por aficionados e profissionais das varandas mais próximas. Momentos de êxtase e "cante jondo" (canto profundo) sublimes.
A anormalidade, imposta este ano pelo "confinamiento", impediu a celebração centenária, mas não diminuiu a devoção dos habitantes de Sevilha. À falta de festa, os vizinhos do bairro esmeram-se, decorando as janelas e colocando altifalantes nas varandas, através dos quais transmitem "saetas", bandas filarmónicas e "pregões" (declarações) da Semana Santa. Os mais nacionalistas (estas coisas, andam sempre ligadas) mantém as bandeiras franquistas, que penduraram durante a crise catalã de 2018.
Não faltam episódios hilariantes nesta quarentena: desde o homem que saiu a passear o cão, vestido de nazareno e carregando uma cruz às costas (o vídeo tornou-se viral e a polícia acabaria por detê-lo); à mulher infectada, que fugiu de um hospital onde estava isolada (acabaria por ser presa e voltar à quarentena), passando pelo vizinho do condómino onde me encontro, que ameaçou filmar e denunciar outro morador à polícia (!?) por este ter ousado sair à rua sem máscara (há sempre um "pequeno homem" com medo, como escreveu Reich, num dos seus escritos mais citados). Encontra-se de tudo um pouco. Entretanto, na Galiza, foi roubado um carregamento de um milhão máscaras, no valor de 5 milhões de euros, destinadas a Portugal (!?). Em tempo de crise, "quem tem olho..."
A crise viral continua a dominar os noticiários e as preocupações dos espanhóis. O país é já o segundo com maior número de infectados e mortos a nível mundial, resp. 146.690 e 14.555, não se vislumbrando decréscimo na curva de infecções nos próximos dias. Perante a catástrofe anunciada (20.000 mortes na projecção mais optimista e 40.000 mortes na mais pessimista), a Espanha entrou na terceira semana de "confiniamento", agora prolongado até ao próximo dia 26. As pressões e as críticas ao governo de Sánchez, para que reabra o congresso (actualmente encerrado) e para diminuir progressivamente as medidas de quarentena, têm vindo a aumentar, ainda que não seja fácil tomar esta decisão, enquanto o número de infecções não diminuir. As mais acérrimas críticas vêm, como sempre, do "pequeno homem" Abascal (VOX), que diariamente grava vídeos através do Instagram onde ameaça processar Sanchéz pela prorrogação do período de isolamento. Ontem, em mais uma histérica comunicação ao país, anunciou com ar solene "cortar relações" com o governo, enquanto este não abrisse o Congresso. A estupidez continua a dominar o discurso dos pequenos líderes. 

Conforme nos explicam diariamente os "experts" na matéria, há 3 questões a considerar nesta crise pandémica: a vacina (que não existe), o distanciamento social (como forma de reduzir a disseminação do vírus) e os testes (para avaliar quem está infectado). Sobre a vacina, é consensual entre vírologistas e epidemiologistas, poder demorar entre 12 e 18 meses, até ser comercializada. Sobre o distanciamento social (tomando as devidas precauções, com máscaras, luvas, desinfecções diárias de roupa e calçado) é fundamental, mas não impede a contaminação. Mais, podemos estar infectados e não ter sintomas. Quando a febre surge, a infecção já existe e, entretanto, já infectámos outras pessoas.
Finalmente, os testes. Há dois tipos de teste: o de diagnóstico rápido (aplicado na maioria de países e populações) e o teste serológico (que é caro e não está ao alcance de toda a gente). No primeiro teste, este pode dar negativo, mas podemos contrair a infecção no dia seguinte; no segundo teste, a imunidade é garantida pelos anti-corpos já existentes, o que permite contactos com outras pessoas, sem as infectar. A experiência, levada a cabo nos primeiros países infectados (China, Coreia do Sul, Japão, Taiwan e Singapura) permitiu perceber que o isolamento, seguido à risca, pode resultar, ainda que só ao fim de alguns meses. Acontece que, em países de regime autoritário (como os países asiáticos referidos) é sempre mais fácil manter as populações confinadas, dada a obediência e disciplina existentes (confucionismo). Também o sentido colectivo e a confiança no estado é maior do que no Ocidente. Acresce que, em países como a China (portanto, um estado totalitário) a "data" existente, devido à ligação dos telemóveis pessoais às câmaras de vigilância em todo o país (mais de 200 milhões!) permite identificar, rapidamente, quem tem febre, através de um "app" que mede a temperatura do corpo. As pessoas assinaladas, são avisadas através do seu telemóvel e enviadas para quarentena. Essa é uma das razões, porque os países asiáticos conseguiram reduzir substancialmente a epidemia, enquanto na Europa e nas Américas, portanto mais atrasadas no uso da tecnologia existente, o surto viral continua a crescer exponencialmente. Preocupantes são, agora, os surtos em grandes países como os EUA e o Brasil, que não dispõem de sistemas de saúde de qualidade e onde o número de vítimas pode atingir proporções catastróficas. 

(continua)

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