2023/03/28

Sevilha: santos, carrascos e vítimas

A exemplo de anos anteriores, Sevilha prepara a Semana Santa, um dos seus mais famosos "ex-libris" e, certamente, a mais importante festividade religiosa de toda a Espanha. 

Na cidade, engalanada para o efeito, constroem-se apressadamente as últimas tribunas, por onde passarão os cortejos de mais de cinquenta irmandades, enquanto nos bairros decorrem os ensaios gerais das bandas de música e dos voluntários que transportarão os respectivos andores. Um trabalho hercúleo, se pensarmos que cada andor, entre imagens descomunais e parafernálias conjuntas, pode pesar mais de uma tonelada. São grupos de 10 a 20 jovens, que alternam no transporte dos santos, enquanto duram as procissões, ao longo de vários quilómetros. Uma verdadeira penitência, na acepção da palavra, a que não se recusam devotos de todas as idades e estratos sociais, em perfeita comunhão de festa e religiosidade pagãs. 

Paralelamente, a população, vê-se confrontada com outros problemas bem mais térreos e urgentes, que não têm parado de aumentar nos últimos anos. É o caso da saúde, cujos serviços têm vindo a deteriorar-se de ano para ano, consequência dos custos e da privatização do sector (lá como cá!) agravados pela recente epidemia, cujas sequelas continuam a fazer sentir-se entre as camadas mais desfavorecidas, confrontadas com a falta crónica de pessoal médico e as longas esperas nos estabelecimentos hospitalares.

A insatisfação dos utentes, mas também dos corpos clínicos, com o actual estado da saúde, gerou uma onda de contestação em toda a Andaluzia que, no passado sábado, encheu as ruas em 11 cidades da região. Só em Sevilha, a capital, desfilaram mais de 60 000 pessoas, convocadas pela plataforma "Marea Blanca" (Maré Branca), constituída por diversos sindicatos, partidos políticos e organismos particulares de apoio às reivindicações dos manifestantes. Um longo desfile, de mais de duas horas, que percorreu as principais artérias da cidade e terminou junto ao palácio de São Telmo (Presidência do Governo Andaluz) onde foram escutadas as principais reivindicações da plataforma, sob o lema "Saúde Pública de Qualidade!". Um exemplo significativo da mobilização popular existente que, de resto, é visível em todo o país, onde continuam os protestos. 

De índole diferente, mas não menos significativos, seriam os eventos em memória das vítimas do fascismo que, na mesma semana, decorreram em Sevilha. O primeiro, nas instalações da Fundação Blas Infante, no âmbito do lançamento do livro "La Niña de la Chaqueta Roja" da autoria de Susana Falcón (argentina, exilada em Espanha, durante a ditadura de Videla); e o segundo, no cemitério de San Fernando, por ocasião do enterro dos restos das vitimas de Pico Reja, no ossário criado para o efeito. Momentos de grande significado pela emoção, participação e denúncia de crimes, que apesar de perpetrados no século passado, não expiram nunca, pois a memória é impossível de apagar.

De Blas Infante (1885-1936), o "pai da pátria andaluza", sabemos quase tudo: um ensaísta notável (dele, a primeira versão da Constituição Andaluza), notário, advogado e político, filiado no partido republicano democrático. As suas convicções e militância política, rapidamente ganharam apoiantes entre aqueles que almejavam uma região mais autónoma e os seus adversários, maioritariamente apoiantes da causa falangista. Após a instauração da república espanhola, Infante ocupou diversos cargos como deputado pela sua região, até ao golpe de 1936, quando foi preso e, posteriormente, executado pelas tropas de Franco. Até hoje, o seu corpo nunca foi encontrado, pensando-se que poderá estar enterrado na vala de Pico Reja, a maior vala de toda a Espanha. A Fundação, criada em 1983, dedica-se à divulgação da sua obra e organiza regularmente actividades de índole cultural, com especial enfoque em obras políticas e literárias, como foi a apresentação do livro de Susana Falcón, que contou e.o. com a presença de diversos "diseurs",  da cantora Emma Alonso e do pianista José Manuel Vaquero.


Ontem, dia 27, a manhã seria dedicada à cerimónia do enterro dos restos mortais das vítimas (não-identificadas) da repressão franquista. Um acto, previamente anunciado, uma vez que os trabalhos de exumação, da vala Pico Reja, terminaram oficialmente em Dezembro último. Durante os três anos, que duraram as escavações, foram exumados os restos de 1786 vítimas, que aguardam posterior identificação no laboratório forense de Granada. 

À cerimónia, que contou com a presença do vice-presidente da Câmara de Sevilha, do anterior presidente do município e do Conselho Municipal da Memória, acorreram centenas de familiares de vítimas da ditadura franquista, transportando ramos de flores e cartazes alusivos ao acto. A maior parte, de idade avançada, mas todos eles imbuídos de uma determinação e coragem digna de registo. A cerimónia, após os discursos de representantes de diversas organizações, terminaria com uma singela homenagem à equipa forense Aranzadi, responsável pelas exumações, a cargo de Anartz Ormaza, que bailou um Aurrescu e de Manuel Gerena, que terminaria a sessão com um arrepiante "martinete", cantado em funerais.               

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