2010/08/21

Para além da ficção

A série 24 teve uma enorme popularidade, como se sabe. Uma estrutura narrativa formalmente perfeita, acção a rodos, os heróis do 24 surgiam em qualquer parte do mundo para defender a América dos ataques das mais variadas hordas terroristas, desejosas de destruir o "império". Os cenários em que decorriam os episódios da série eram sempre de uma inverosimilhança na iminência, digamos, da verosimilhança, se assim me posso exprimir. Ou melhor, parafraseando Borges, eram cenários ainda inexistentes, mas perigosamente possíveis.
A ficção está, contudo, a milhas da realidade que é bem mais apimentada. O 24 é mentira, mas aquela conduta é real e a realidade é ainda mais escabrosa.
Há uma empresa privada americana de segurança antes chamada Blackwater Worldwide, agora, pelos vistos, rebaptizada Xe Services. Ex-Blackwatre Xe. O Departamento de Estado dos E.U.A. mantinha com esta empresa privada um lucrativo contrato. Os seus "empregados" faziam segurança diplomática, participavam nas mais delicadas acções da C.I.A., no Iraque e no Afeganistão, e faziam transporte de detidos. Segundo o NYT, a "Blackwater tornou-se alvo de intensa crítica pelo que os Iraquianos descreveram como conduta insolente por parte dos guardas de segurança" [i.e., os empregados da Blackwater], no decurso das diversas acções que levavam a cabo, das quais chegou a resultar a morte de civis.
A empresa terá cometido vários atropelos à lei (imagine-se, os malandros...!) que incluiam, ainda de acordo com o NYT, entre outras coisas, a exportação ilegal de armas para o Afeganistão, propostas de treino de tropas no Sudão e o treino de snipers da polícia do Taiwan. Em 2009 perderam o contrato e perante a possibilidade de serem incriminados, os da Blackwater Worldwide, agora Xe Services, chegaram a acordo com o citado Departamento de Estado americano para o pagamento de uma multa de 42 milhões de dólares, relativa a (pasme-se!) centenas de violações do código... de exportações americano. E volta Xe que estás perdoada!
Perante a actividade de uma empresa —privada, de "segurança"— chamada Blackwater, que actua "worldwide" e agora se chama Xe Services, o poder da ficção televisiva empalidece. Este é o mundo que muda a cacha.
Ex-Blackwater-Xe! Em breve disponível em DVD, para deleite do nosso olhar distraído, 24 horas por dia...

2010/08/19

Probabilidades

Uma empresa de desenvolvimento de semicondutores, a Lyric Semiconductor, concebeu um processador que, em vez de se limitar a fazer umas contas simples, como o processador que está dentro do computador que o leitor usa para ler este post, vai mais além: calcula probabilidades. Mediante o  influxo de dados calcula a probabilidade de ocorrência de um determinado resultado possível. "Decidimos que há montes de problemas de probabilidades que são tão importantes que merecem o seu próprio hardware," afirmou ao NYT o senhor Ben Vigoda, co-fundador da Lyric e seu principal responsável.
Uma empresa de venda on-line poderá assim, por exemplo, sugerir um determinado produto baseado nos dados que o potencial cliente introduziu na sua pesquisa e os metereologistas terão uma ferramenta que lhes permite uma maior rapidez e fiabilidade na previsão do tempo, com base nos dados que lhe estão a chegar. O novo processador pode até prever a probabilidade de uma compra com um cartão de crédito on-line ser fraudulenta, baseado em dados de compras anteriores. Para já, sabe-se que são as instituições militares americanas que beneficiarão deste novo "brinquedo", para prever, quiçá, qual o país com maior probabilidade de ser invadido a seguir.
Em Portugal também este novo processador vai ter um enorme sucessso e prevejo mesmo um novo modelo do Magalhães, destinado exclusivamente aos membros do governo, equipado com o novo processador da Lyric, em substituição daqueles computadores obsoletos que vemos nas reuniões do CM, atrás de cujos monitores se escondem os ministros uns dos outros.
Teremos assim uma gestão do país mais qualificada. Querem ver?
Problema: Mais de metade da Mata do Cabril ardeu? O Magalhães Lírico diz que a probabilidade de que não ocorram, entretanto, reacendimentos é alta porque já escasseia a matéria combustível. Solução: mandar recolher o "dispositivo" que já nos está a custar balúrdios em horas extraordinárias...
Problema: Aumentou o número de desempregados de longa duração? O Magalhães Lírico diz que a  probabilidade desses desempregados morrerem, entretanto, de fome é forte. O seu número vai provavelmente diminuir. Solução: canalizar as verbas do IEFP para mais submarinos que estes dois que vamos agora ter, só, não chegam e os almirantes já andam nervosos...
Problema: As pessoas criticam os encerramentos das escolas, a desclassificação de monumentos ou o fim de subsídios por parte do Estado? O Magalhães Lírico diz que é provável que já haja pouca coisa mais para encerrar, desclassificar ou poucos subsídios que restem ainda para atribuir. Solução: toca a cortar tudo o que ainda sobra, porque estes temas, assim, deixam mais depressa de ser motivo de conversa.
Problema: O problema das SCUT não se resolve e a empresa concessionária vai "mandar a factura" relativa aos meses vencidos sem cobrança? O Magalhães Lírico diz que a probabilidade de ter de ser o PSD a levar com a resolução do problema é alta. Solução: deixa andar, porque quem paga no final é sempre o Zé e, assim, o anjinho do Passos Coelho leva com o odioso.
Problema: O país está num impasse político? O Magalhães Lírico diz que a probabilidade da oposição ou do PR terem uma intervenção qualificada e responsável para encontrar soluções para esse impasse é nula. Solução: deixa, mais uma vez, andar.
Fica aqui uma sugestão para o primeiro-ministro: traga para cá a Lyric. Dê-lhes vinte anos de isenções fiscais e mão de obra barata arrebanhada nos Centros de Emprego. Exija, em contrapartida, esses chips maravilha para todos os computadores da PCM e a promessa da administração Obama de intervir sobre as agências de rating do seu país com a recomendação: go easy on these guys!