2010/11/03

Inevitabilidades

O "debate político" em Portugal resume-se hoje a isto: as medidas a tomar são inevitáveis, não se pode discutir as causas da crise ou soluções porque as medidas são inevitáveis e o que nos espera é, assim, inevitavelmente, ter de aguentar as consequências da inevitabilidade das medidas.
E ninguém tem culpa! Não se pode discutir a culpa, não se pode sequer apresentar alternativas, porque as medidas são inevitáveis e ninguém pode apontar o dedo ou apresentar uma saída deste ciclo vicioso, que resulta de ter de gramar as consequências inevitáveis da tomada de medidas inevitáveis, porque as medidas  são... inevitáveis!
É o arrefecimento global, é "a verdade conveniente"!
Quem toma as medidas inevitáveis está defendido pelo seu carácter inevitável e fica livre de mais encargos, e quem as ousar contestar está a esquecer que elas têm um carácter inevitável e portanto não sabe do que está a falar...
É este o espetáculo que se desenrola perante os nossos olhos espantados, enquanto pegamos na caneta para assinar mais um cheque que ajude a pagar todo este desvario.
Mas, no meio de tudo o que se está a passar, passa-se, e passa-nos ao lado, uma outra coisa, que por parecer uma inevitabilidade, é rapidamente metida nos arrumos da nossa mente sem grande crítica.
É que no meio de tudo isto vamos ter uma eleição presidencial em breve. O candidato Cavaco Silva  (admiravelmente retratado por José Vitor Malheiros ontem no Público num artigo intitulado "A austera, apagada e vil tristeza da retórica") lembrou-se de repente que a "classe política" dá um triste espetáculo ao país. É verdade. É aliás uma daquelas verdades que, por ser tão, tão verdade de La Palice, leva inevitavelmente a que toda a gente concorde com ela. Esqueceu-se Sua Excelência (mas convém lembrar-lhe!) que ele faz parte indissolúvel dessa classe política que critica e que faz parte dela há muitos, muitos anos. Está inevitavelmente ligado a tudo isto, e de que forma!!, primeiro como ministro das finanças, a seguir como primeiro ministro e agora como presidente da república. São muitos anos, é muita ligação ao poder, é muito exercício de poder, é muita ligação à vida política deste país para agora vir tirar, com este descaramento todo, o cavalinho da chuva!
Cavaco Silva é inevitavelmente parte do problema que agora suscita. Com responsabilidades acrescidas porque o seu papel foi determinante durante 10 anos (tinha a faca e o decreto na mão!) e agora, como presidente da república tinha e tem a obrigação de ter um outro tipo de actuação.
Pois é a esta criatura, mesquinha e sem dimensão, que os portugueses se preparam para estender a passadeira que o levará de novo até Belém. Sem debate, sem avaliação profunda do que foram os seus mandatos como político e do que está em jogo agora, sem discussão, sem luta, pelo que se consegue perceber até agora. Se ele ficar na presidência, os inevitáveis do costume manter-se-ão também. Se ele não quisesse os inevitáveis do costume há muito que os teria mandado à vida. Não vai mudar no futuro.
Com todos estes protagonistas seria inevitável que os portugueses se continuassem a afundar ainda mais. Enquanto houver cheques em branco e canetas para os assinar não se podem, porém, esperar grandes mudanças. Mas, como os cheques estão a acabar e as canetas a ficar sem tinta, se calhar é inevitável que a mostarda chegue ao nariz de alguns.

2010/11/01

Notícias de outra cidade

O "Podium Mozaiek" é um centro intercultural situado em pleno coração do distrito de Bos en Lommer, um dos bairros mais problemáticos de Amsterdão. Nesta zona vive a maior comunidade muçulmana da cidade, com predominância de turcos e marroquinos, as nacionalidades mais numerosas. Construido originalmente para funcionar como mesquita, o centro cultural manteve a arquitectura árabe exterior (um grande cubo encimado por um minarete) e foi totalmente remodelado por dentro. Nele coexistem serviços sociais, galeria de exposições, biblioteca, cybercafé, um bar e um restaurante, abertos ao público em geral. Dispõe ainda de um auditório com capacidade para 300 pessoas, que mantém uma programação regular de música, teatro, dança e cinema, onde actuam periodicamente nomes conhecidos da cena nacional e internacional. Foi o caso do grupo português "Deolinda", que aqui actuou no passado sábado no âmbito de uma digressão holandesa. Sala cheia, de um público curioso, maioritariamente constituido por holandeses e portugueses, para além de alguns curiosos de outras nacionalidades e estudantes portugueses do programa "Erasmus".
Um excelente concerto, onde o grupo passou em revista o seu último album "Dois selos e um carimbo" e ainda teve tempo para três "encores", a pedido de uma sala rendida à arte de Ana Bacalhau, uma fonte inesgotável de energia. Música simples e cativante, com textos irónicos traduzidos em doses reduzidas, a mostrar que os dois anos de "estrada" deram consistência e profissionalismo a um projecto que é já um caso sério de popularidade internacional. No final, a festa e a celebração da interculturalidade, sempre possível quando a música é o elo de ligação. Num bairro conhecido como um dos mais conflituosos da cidade, devido à exclusão social dos seus habitantes e aos conflitos religiosos empolados pelo discurso populista da direita xenófoba, o concerto dos "Deolinda" teve o condão de amenizar as tensões existentes numa sociedade que continua a procurar pontes de entendimento entre culturas diferentes. Se a música puder ajudar, tanto melhor...