2006/08/25

A VIDA É ASSIM (2)

O escrito anterior foi enviado para um grupo alargado de amigos meus em 14/8. Nessa altura ainda "A face oculta da Terra" nem sequer em projecto existia. Enquanto notícia a respeito de CC, o escrito estaria um pouco desactualizado. Como, no entanto, esse facto servia apenas de ponto de partida para a reflexão sobre o assunto central, este sim, bem actual, resolvi agora publicá-lo.
Entretanto, vários daqueles a quem enviei o escrito, com pedido de que o comentassem, ativeram-se ao que eu pretendia acessório, o que motivou um segundo escrito sobre o mesmo assunto em 23/8:

Caros amigos,
Certamente que haverá múltiplos aspectos interessantes e até importantes a tratar, a propósito da falência de Cardoso e Cunha, para além dos que eu referi no meu texto.
Em comentários à mensagem que vos enviei, chamaram-me a atenção para, entre outros, os seguintes:
- Haverá grande diferença entre X, uma determinada têxtil do Vale do Ave que vai à falência, e Y, um determinado empresário da noite lisboeta.
- Porque é que na maior parte dos casos os "falidos" continuam ricos depois da falência?!
- Porque é que a sociedade, em geral, é muito mais complacente com os "falidos" do que com os "insolventes"?
- (CC) utilizou "demais" a sua acção partidária para fazer carreira como gestor.
- …a ambição de criar e "mandar" pode ser benévola para a sociedade e para todos os que encontram nas suas empresas um modo de vida.
- Que há muita incompetência em alguns nomes sonantes do PSD.
- Que este será, precisamente, um desses casos.
Todas estas, e outras, questões têm a sua pertinência.
Mas não foi este o ângulo de visão que pretendi enfatizar.
Tentando, então, explicar melhor o que queria dizer:
Pegarei na afirmação de que «a ambição de criar e "mandar" pode ser benévola para a sociedade e para todos os que encontram nas suas empresas um modo de vida». Parece que se infere do que escrevi que acho isto ilegítimo. Engano!
Não coloco em causa a legitimidade da ambição de enriquecer mais quando já se é rico (o tal princípio de que "quem é rico quer ser mais rico"). Apenas a aprecio (e a rejeito) em termos de ética social.
O que me interessa é olhar para a completa desmotivação dos portugueses, o desaparecimento preocupante de capacidade de pensar as coisas sociais em termos do que elas são, isto é, coisas que envolvem muitas vezes interesses colectivos. Falo com o conhecimento de causa de quem deu muitos anos de vida a tentar promover associativismos vários (no sector do artesanato, em associações de pais e de residência). O que me também interessa é perceber porque é que os portugueses votam em comprovados e/ou presumíveis vigaristas, na base da ideia de que "ele rouba, mas ele faz", para usar a célebre máxima de um político brasileiro. Conheço benfiquistas que ainda hoje são apoiantes de Vale e Azevedo, mesmo depois de saberem que ele andou a roubar o seu clube de coração. E na minha rua vejo o esterco que os cidadãos fazem à beira dos ecopontos: sacos de lixo e seu mau cheiro, embalagens que não se teve a pachorra de meter na abertura e por ali ficaram. Um nojo! Nem esta tarefa colectiva tão básica as pessoas conseguem, hoje em dia, levar a cabo como deve ser.
E este estado de coisas não se combate enquanto o dinheiro for aceite de forma generalizada (por vezes até incentivada) como motivação principal da vontade humana. Foi o que me pareceu transparecer do caso CC (e posso estar errado quanto ao próprio caso, mas isso não tira nada à validade que acho terem os princípios que defendo no artigo) de vontade, gananciosa, de continuar a enriquecer, quando já se obteve o suficiente para passar um resto de vida confortável, sem motivação visível para além de obter mais dinheiro.

Esta fala não se inscreve no pensamento realpolitik dominante, que substituiu, à esquerda e à direita, nas preocupações da quase totalidade dos ex-revolucionários, os seus anteriores ímpetos colectivistas. Antes coloca o debate num campo que, eu sei, está fora de moda, mas ao qual, mais cedo ou mais tarde, se regressará. Eu estou a tentar dar a minha contribuição para que seja mais cedo.

Abraços do
Raul

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