2006/09/04

Guerra de civilizações?

Era um dia de sol esplendoroso e quente, invulgar naquelas paragens. "Fermosa e não segura" a rapariga pedalava, cansada mas radiante com a bênção do bom tempo, e radiosa, de top e mini-saia. Deslocava-se do local do estágio que cumpria junto a um designer de moda -- não remunerado, mas importante para o currículo estudantil -- para casa.
O condutor do carro que seguia a seu lado avistou um lugar de estacionamento e, inopinadamente, guinou pela frente da jovem ciclista, para ir ocupá-lo. Ela travou como pôde, mas desequilibrou-se e não conseguiu evitar a queda. Ficou estendida no meio da rua, com uma perna ensarilhada entre o quadro e a roda pedaleira, com as coisas que trazia no cesto da frente espalhadas no asfalto. O condutor do carro que provocou o acidente "não esteve nem aí", como dizem os brasileiros. Magoada no corpo, sangrando abundantemente de uma perna, enquanto se esforça por se erguer chega-lhe aos ouvidos o insulto culpabilizador: "son of a bitch".
Carros buzinam, bandos de crianças saem da escola vizinha pelas mãos dos pais, comerciantes e clientes assomam às portas das lojas. Atordoada e dorida, a jovem apercebe-se de que está, qual "Pedro, pedreiro", "atrapalhando o tráfego". Recolhe atabalhoadamente os pertences esparramados na rua e levanta a bicicleta, encostando-a ao carro estacionado ali ao pé, enquanto tenta recompor-se. Logo surge, solícito, o dono do carro que, com gesto decidido, a obriga a retirar o velocípede, como quem sacode uma mosca impertinente.
Da multidão de circunstantes apenas uma mulher lhe lança um olhar solidário, mas impotente, a que a jovem responde com um "don’t worry; it’s all right".
As pessoas do café para onde, em desespero de causa, a jovem conduz, coxeando, a bicicleta acolhem-na com preocupação e vontade de ajudar. Apesar de, por lei, reservada aos funcionários, a caixa de primeiros socorros é usada para lhe tratar das feridas.
Seria um episódio banal do quotidiano de uma grande cidade, em que as pessoas se preocupam consigo próprias e lhes passam ao lado as desgraças alheias. Seria. Se não fosse o caso de ter mesmo acontecido no lugar londrino de Whitechapel, onde habita uma maioria étnica árabe (sobretudo imigrantes do Bangla Desh e descendentes); de as crianças virem a sair de aulas de Corão, e de a escola ser uma mesquita; de todos os intervenientes, incluindo a mulher (esta de cabeça coberta à maneira árabe) vestirem túnicas ou jelabas, excepção feita às pessoas do café; finalmente, de a jovem ser uma ocidental -- a minha filha Francisca.
Há uma frase recorrente entre os jovens filhos de imigrantes, nascidos em Inglaterra e de nacionalidade inglesa, provenham eles daqui ou dali: "I’m English, but I’m not British" (sou inglês, mas não sou britânico). O que isto quer dizer é que esses jovens, possuindo embora a nacionalidade inglesa e não tendo intenção de regressar aos seus países de origem, não se revêem no modo de vida, na idiossincrasia britânica.
É neste "caldo de cultura" que, ao que afirmam os meios de comunicação social, se desenvolvem os impulsos terroristas. Os jovens que alegadamente preparavam a acção terrorista descoberta no mês de Agosto tinham uma prática de vida considerada "normal"; tinham empregos do tipo padeiro, vendedor, empregado de balcão, bibliotecário, informático. Interrogados por jornalistas, os vizinhos afirmavam com veemência o convencimento da sua inocência. Um era católico de ir à missa e, nunca tendo conseguido ultrapassar o trauma que lhe provocou a morte do pai, tinha instintos suicidários e experimentou o mundo das drogas. Tanto este como dois outros (um contabilista de 25 anos e outro jovem de 28) se converteram ao Islão, após casar com jovens muçulmanas e acabaram a receber preparação militar nos campos da Al-Qaeda no Paquistão.
Há, por outro lado, adeptos de diversas teorias da conspiração que afirmam que todos estes atentados são invenções do mundo ocidental para justificar acções de retaliação tendo como motivação os interesses milionários do petróleo e do negócio das armas.
Não é minha intenção, por ora, tomar posição sobre o assunto da, chamemos-lhe assim, "guerra contra o terrorismo". Mas sempre chamo a atenção para algumas aproximações a este problema, como a do celebrado politólogo Samuel Huntington, que considera que "as linhas de fractura (fault lines) entre civilizações serão as linhas de combate do futuro". Mas, vivendo o "inimigo" no "nosso" seio, como traçar essas linhas?
Sem se cair em exarcerbados xenofobismos que só agravam o problema, não vejo que tal seja possível.
O mundo está confuso. E perigoso!

1 comentário:

António P. disse...

Bom dia Raul,
1º - parabens pelo blog.
2º - vale a pena ir contando historias como esta.
3º - é conveniente pensar não que estamos em guerra...mas que alguém nos declarou guerra !
Um abraço