2010/05/02

Dos piratas somalis aos especuladores, passando pelas agências de rating


A pirataria somali está aí desde há mais de dez anos. Começou por atacar ocasionalmente pequenos navios pesqueiros envolvidos em actividades de pesca ilegal nas costas da Somália, oriundos, sobretudo, daquela região do globo. Por essa razão pouco se falava do assunto. A frequência dos ataques, entretanto, aumentou (os ataques são já, segundo se diz [1], diários), bem como o tamanho dos navios capturados, a sua nacionalidade e a área de actuação dos piratas. Hoje a actividade destes não se limita às costas somali e, no que diz respeito a alvos, grandes cargueiros, navios-tanque, navios de passageiros, marcha tudo! De actividade "artesanal", a pirataria somali transformou-se em "indústria" pujante.
A expressão que o problema ganhou, a frequência e, sobretudo, a sua internacionalização, levaram a chamada "comunidade internacional" a tocar a reunir, fazendo aumentar a presença militar na zona, numa "rara demonstração de unidade de países que se hostilizam abertamente, ou que, pelo menos, vêem qualquer cooperação com prudência." [2]
As raízes da pirataria somali são complexas e, na sua origem, até nem me parecem totalmente destituídas de razão. O depósito de resíduos tóxicos e a pescaria ilegal de outros países afectaram seriamente a economia da região e os pescadores somalis limitaram-se a ripostar com o que tinham à mão. Uma parte significativa dos piratas é, de resto, constituída por ex-pescadores, considerados os cérebros destas operações pelo conhecimento que têm do mar. O problema é que o "negócio" ganhou outra dimensão e ganhou, sobretudo, uma dimensão transnacional que levou ao envolvimento e à procura de soluções pelas diversas instituições internacionais. Nesta perspectiva, a pirataria somali passou a ser um problema de atentado à soberania das nações e aos princípios do direito internacional.
Perante um problema de soberania, consubstanciado no ataque aos seus navios, os Estados não hesitaram em se unir e tomar medidas. Pouco interessa que na origem deste problema esteja a ganância de alguns Estados que agora vêm reclamar a legalidade internacional, desrespeitada por eles originalmente. Princípios actuais de direito marítimo internacional e de soberania foram desrespeitados e a reacção foi responder com energia e sem tibiezas. É o inatacável primado do direito sobre a barbárie.

São José Almeida voltou a escrever ontem no Público sobre a "empresarialização" dos Estados num artigo corajoso chamado "De Novo a Portugal, S.A.." Em causa mais uma vez (um artigo anterior tratava do mesmo assunto) o problema da actuação das agências de rating. A pergunta que a autora faz é simples: "é normal que os países sejam avaliados e se comportem como se de empresas se tratasse?"
Como vai acabar "a situação internacional," pergunta a autora, agora que "a economia do mundo passou a ser explicitamente controlada e governada por meia dúzia de empresas financeiras, mais concretamente de bancos, e em que os políticos e os governos dos Estados recebem delas as ordens, as regras e as orientações de procedimento?" É, como nota a articulista, a soberania dos países que está em causa.

A analogia com a pirataria somali é adequada, penso eu. Os piratas são neste caso eufemisticamente apelidados de mercados, mas não creio que haja qualquer diferença entre aquilo que está a ser feito contra as economias de países soberanos, como Portugal e Grécia, e o que se pratica nas costas da Somália. Tal como no caso da pirataria somali, a acção dos "mercados" (a.k.a "especuladores") começou por uns pequenos navios pesqueiros, operando localmente. Em breve vai apanhar, toda a gente o prediz, navios grandes e pequenos, navegando em águas locais e internacionais, e em vez de serem esporádicos e calculados, os ataques vão passar a ser permanentes e atingir tudo o que mexe, enquanto mexe.
A resposta internacional é que é, ao contrário do caso da pirataria somali, é infelizmente de uma tibieza e de um "moralismo" perfeitamente indesculpáveis. Não se vislumbra, como no caso da reacção soberana aos ataques dos piratas nas costas da Somália, uma "demonstração inequívoca de unidade entre os países."
O caso da Alemanha então é, quanto a mim, perfeitamente vergonhoso. Este país, sobretudo este país, não parece ter percebido (e já há décadas que o devia perceber...) que não há alternativa: ou está do lado dos piratas ou do lado das suas vítimas.


PS- Cf. aqui algumas notas interessantes sobre a possível escalada deste movimento especulativo.

2 comentários:

Rui Mota disse...

Duas notas:
1) a criminalidade floresce onde não existe um estado forte. Vide Máfia. O caso dos pescadores somalis é semelhante. Num estado corrupto e miserável como a Somália (um dos países menos desenvolvidos do planeta) os "piratas" estão em roda-livre. Também não se compreende porque é que, quando estes são aprisionados, são soltos logo a seguir...
2) os alemães não querem pagar as contas dos países do Sul (os "pigs"). A Merkel tem eleições para a semana e sabe que este é um tema quente da campanha. Por isso está a atrasar a decisão, mas se o Euro cair, ela também cai...

Carlos A. Augusto disse...

Um artigo interessante aqui sobre o alcance destes problemas, manifestamente para além da nossa pequena paróquia...