Séculos de hieróglifos, formas piramidais, paredes de símbolos em diálogos cabalísticos emaranhados, a morte omnipresente e cultuada, faraós de carne e osso o sagrado cu assente em tronos de ouro no serviço quotidiano de adorações, baixos-relevos de perfil dançante em meio corpo sugerindo a outra metade apetecida, figuras hieráticas em consonância ritual com os entrecruzados raios solares, o sol em Deus por justíssima razão, maior que outra que faz de um Deus Deus sem que isso nos aqueça, arquitectura funerária como nenhuma em grandeza e ciência construtiva, os crocodilos do Nilo e uma agricultura fertilizada pela riqueza dos detritos das cheias construíram um mito civilizacional – e a nossa escola, “nos tempos” como se diz em Moçambique, ilustrava tudo isto a cores - a que a figura de Cleópatra, enigmático poder feminino absoluto numa sociedade de absoluto poder masculino, se acrescentava como enigmática cereja no topo da pirâmide que todos vimos, agora as mais das vezes pelos olhos de um turismo obsessivo com camelos e bossas a roçar o burlesco e uma promessa de nariz partido na velha areia a levantar a adrenalina bem comportada.
Nada mais claro do que a pirâmide para se chegar à consciência de uma complexa diversidade das formas em três D, e sou fascinado de cilindros ao alto, cilindriformes mas algo fusiformes porque não, atentando contra a forma cilíndrica, e por poliedros ligeiramente aparentados na vocação de contrariar a gravidade pelo lado da inclinação que fez de Pisa a fama da sua torre. Pois hoje, muito mais tarde na história e com uns faraós de pacotilha descartáveis a mandar mais palpites que exercer poder, mas de uma arrogância personalizada ao vivo enquanto durar o que duram os mandatos, nas cidades que percorremos, raramente conseguimos conviver com seja que grandeza for, afinal, na origem, feita de lógicas artesanais, matemáticas, cáculos geométricos perfeitos e trabalho braçal escravo e colectivo – hoje todos se desvanecem perante o ecrã portátil de um PC, chame-se-lhe Magalhães ou Maçã. Hoje as formas são mais comuns pela falta de arrojo porque o arrojo é kitsch, blasé, prédio em forma de guitarra portuguesa com brilhos de madrepérola chinesa e sons de fado requentado no sonho rasteiro. É apenas endinheirado ou megalómano e faltando-lhe uma sustentação ritual humanamente convicta e anterior, como aquela que levou os homens a converter justamente o Sol em Deus. Pobres e pouco arrojadas certas partes das nossas cidades e mesmo as partes mais “sagradas” estão longe de praticar o arrojo a que esta arquitectura funerária chegou em diálogo com a morte e a eternidade – as excepções andarão por aí, poucas e austeras talvez.
Difícil será dizer que a tecnologia, hoje em dia, alcançou ou alcance o feito das pirâmides, tendo em conta a relativização das engenharias construtivas comparando épocas. Estamos de facto na era dos mercados, das fundações, dos banqueiros e das bolsas, e os poderes eleitos não têm na verdade projectos democráticos capazes de contrariar o princípio imposto da força dos interesses imediatos – os juros sobem e descem diariamente numa febre imposta a todos - a bloquear outros futuros. Não termos futuro fora dos juros da dívida é de um alcance não só reles como feito por vir, mas verdadeiramente rasteiro como destino. Os poderes de facto têm um défice de imaginação semelhante ao que equivale em imaginação o princípio reles da concorrência e do consumo (princípio da realidade dirá o outro voltando-se na tumba) ditados pela força massiva da convergência do desejo aquisitivo, construído pela vivência do simulacro de vida que as formas publicitárias engendram como auto-consciência possível – grande frase com raios, mas creio que justa!
E tudo mudou com a Praça Tahir, mesmo as pirâmides que o turismo já traíra pelo exercício até à náusea dessa doença fabril da foto de recordação ao serviço de uma nostalgia de pacote em previsão de culto mórbido, com ou sem netinhos. Mudou tudo a Praça Tahir. Praça que, como toda a Praça, é um lugar de libertação. As praças são lugares de memória, de acumulação de factos e feitos, de coragem, de atentados, de luta política e de encontro, de correrias e frentes a frentes, confronto. Quem não marca encontros numa Praça também, lugar absolutamente exposto, última probabilidade de uma conspiração e por isso apetecível? E procuro a nossa praça, a praça possível da nossa cólera convertida em actos e explosões colectivas, energias novas varrendo a mediocridade e a corrupção instaladas, capazes de ajudar a varrer os que da democracia fizeram a Casa Pia, a Dívida Pública, a face oculta, os negócios em horizonte curto e a democracia como instrumento. O Terreiro do Paço? O símbolo de séculos de centralismo exercido por todos os recém-chegados das Beiras altas e baixas e outros aparentados provincianos de costas para as suas origens, com desejo cego de Paço? Que outra Praça deitar por terra vivendo-a de outro modo, agora que a refizeram? Os Aliados? O Rossio, o pequenino rossio, sem tamanho para Revolução alguma e com aquele Teatro Nacional tacanho e coxo ao serviço de um pequeno meio também tecendo o atraso e o arcaico pós modernamente?
Quando os cravos tomaram conta de Lisboa, bem me lembro, por ter estado no Carmo e na Trindade, também no Rossio e no Terreiro do Paço, foi necessário ocupar a cidade, toda ela. Mas agora, sem os militares, mais corporativos do que nunca, o caminho é mesmo o Terreiro do Paço sem eles. Avancemos, comecemos a avançar, o primeiro passo atrairá os outros.
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