2011/05/10

Sequestros, sequestradores e sequestrados

"Fui sequestrado pá, e eu não gosto de ser sequestrado!" dizia o almirante Pinheiro de Azevedo naquele verão de todos os confrontos. Não o recordo aqui por ter qualquer simpatia especial pela sua memória e pelo seu legado. Recordo apenas velhos sequestros como pretexto para falar dos novos.
Depois deste regime ter gerado o caos presente preparamo-nos para "escolher" os nossos próximos representantes políticos, entre os próprios autores do caos. Os mesmos que juram a pés juntos que abominam esse caos que criaram, e que esfregam as mãos de contentes porque os portugueses se aprestam a legitimar com o seu voto a sua absolvição.
Preparamo-nos para fazer até mais: deixá-los limitarem-se a gerir e a implementar um programa feito no exterior para controlar os estragos do caos português nos seus territórios, poupando os seus autores, poupando-os à obrigação de pensarem pela sua cabeça e evitando perigos maiores para os seus próprios regimes. Depois de cumprida a missão, assegurado o pagamento, a troika voltará para casa e nós retomaremos o nosso triste estatuto habitual, até à próxima crise.
É isto que nos espera. Se não agirmos o futuro que nos espera é ainda pior.
Depois de dar o poder ao PS e de renovar esse acto, confirmando-o, em claro benefício ao infractor, para um segundo mandato, dizem as sondagens que o fautor principal do caos poderá continuar a contar com as preferências dos eleitores, isto porque o partido eleito há muito como "alternativa de poder", decidiu deixar passar para o lugar do condutor um jovem que se tem revelado um confrangedor ignis fatuus. O PSD é um total falhanço, uma desilusão sem classificação. A situação gerada por esta liderança é tão má que levou, por uma lado, diversos "senadores" a ter de vir apressadamente dar-lhe a mão e outros a demarcarem-se sem rebuço. E o desnorte e a falta de credibilidade no campo da "alternativa" social-democrata é tanto que até o presidente do CDS --um partido cuja ideia de serviço público se resume a sentar-se à beira da estrada, de perna aberta, à espera que passe um cliente-- vê campo liberto para pressionar a "sua" alternativa, antevendo-se como primeiro ministro. A ideia foi insinuada, primeiro, através da proclamação por parte de alguns membros do partido, e confirmada depois pelo próprio. Eram dele seguramente aqueles gritos de ambição que se ouviam através da janela aberta do Palácio de S. Bento, durante uma entrevista de José Sócrates a Judite de Sousa...
PS, PSD e CDS formam esta santa aliança arqueada que faz do sequestro a sua profissão. Mas estes são sequestros e sequestradores que deviam ser já amplamente conhecidos de todos, nada disto é novidade.
Do outro lado do espectro há outros sequestros e outros sequestradores. Os partidos de esquerda fingem estar fora do regime, mas as suas propostas, embora falem em ruptura, não o abjuram, são feitas dentro dele e debaixo do seu escudo protector. Não há risco, não há pisar do risco. Há circo. A única diferença entre o comportamento institucional da esquerda e o da direita, no que concerne a fidelidade a este regime, é o uso da gravata. A gravata é mesmo a única coisa que distingue a esquerda da direita.
Não há ruptura com o regime, não há confronto com este sistema que levou a vida dos portugueses ao estado em que está.
Ouvimos dos partidos de esquerda propostas que muitas vezes parecem justas, neste país onde a injustiça é tanta que dar esmola parece um acto de justiça. Mas elas são feitas de dentro e pelo regime que determinou os factos que agora criticam. O problema actual não reside na natureza das medidas a tomar, mas no próprio regime que lhes deu origem. É o regime que está em causa e nada de bom podemos esperar de dentro dele. Não há soluções para os problemas que afligem os Portugueses dentro do regime, seja qual for a forma como o regime é ocupado, com ou sem gravata. A esquerda parlamentar não tem um verdadeiro projecto de ruptura, qualquer movimento civil a ultrapassa facilmente e não têm por isso qualquer credibilidade as propostas que faz. A esquerda parlamentar não tem um verdadeiro programa de acção que rompa com o status quo. Não propõe atacar o cerne da questão, e, nesse sentido, é também regime, está feita com ele e ajuda-o a perpetuar-se. É o palhaço pobre do regime, que lhe dá significado. É o parceiro sem o qual o palhaço rico não tinha ninguém a quem dar estaladas. Mas, neste sentido, a "esquerda" sequestra o povo de esquerda e impede soluções de esquerda.
Há, portanto, o regime, os seus partidos e os seus chefes de fila. Há estes partidos, com ou sem gravata, que se alimentam todos da mesma ambição: transformar a precariedade inerente ao exercício do serviço público num emprego para a vida e defender esse "direito" com todo o arreganho.
Não interessa nada, neste momento, saber se o "povo" é ou não culpado porque dá aos agentes do regime a sua legitimidade. Não foi para isto que agora temos, certamente, que o povo votou. Os culpados são os donos do regime: estes partidos e o mestre-escola de Belém.
Não vejo, assim, outra alternativa para resolver os problemas graves que nos afligem senão afrontando a  sério este regime. É este regime que gera os nossos problemas, que contém os mecanismos de auto-protecção de que gozam todos os seus agentes e lhes garante a imunidade que lhes permite ir sobrevivendo à sua acção. Não estou necessariamente a preconizar andar à chapada, mas antes levar à letra e até às últimas consequências a ideia do sobressalto que alguns pimpões --julgando certamente que os consideramos alheios aos problemas, que nos causaram-- preconizam.
Sair do sequestro, uma saída possível, capaz de causar um verdadeiro sobressalto, é inquirir os sequestradores. O que é que verdadeiramente impede isso? Por que razão não promovemos essa inquirição?  O movimento do "voto branco" devia ser responsável e dinamizar esse processo. De outra forma o "voto em branco" não passará nunca de demissão. Devíamos levar muito, muito a sério a sugestão feita pelo economista Gylfi Zoega e "determinar exactamente o que se passou aqui, promover uma investigação independente, descobrir o que está errado no governo e no sistema político, quem deixou isto acontecer, para que ninguém esqueça e não volte a acontecer." É verdadeiramente um conselho de amigo este que o sr. Zoega dá.
Também eu não gosto de me sentir sequestrado, pá!

2 comentários:

Royal Lisbon Hostel disse...

Gylfi Zoega tem um nome estranho mas diz umas coisas acertadas. E no entanto, uma “investigação independente”??? Como?
Keep it up Carlos, we like what you write.

Carlos A. Augusto disse...

Aqui vão alguns pensamentos sobre a "investigação independente"...
Independente como... mmm a troika! A UE, o FMI, deviam abrir um inquérito a estes acontecimentos e não se limitar a deitar dinheiro sobre o assunto. É um problema que deveria preocupar mais os europeus e tinha o mérito adicional de sublinhar o carácter "europeu" desta causa.
Um grande movimento de cidadãos pode obrigar as autoridades competentes a fazê-la. O simples facto de a exigir e de forçar as entidades públicas (tribunais por exemplo) é uma maneira de destapar tudo isto (e de fiscalizar os fiscais) e testemunhar abertamente quem faz o quê.
Um grande movimento de cidadãos pode constituir um tribunal aberto, nacional ou internacional, do mesmo tipo que julga crimes de guerra ou crimes contra a humanidade. Um tribunal contra a impunidade, em suma, mesmo que não deliberativo.
Há muitas formas. Haja vontade de ir com isto para a frente e de não deixar que o problema se repita e de deixar a opinião de café com que a maior parte dos descontentes se parece satisfazer.