2011/11/14

Sobre a evidência

Nada serve carregar a evidência do que a berra
Poderia ser um dito de Keuner
Esse Brecht desavindo com o outro
Empregado na História e por assim dizer tão oficial
Que acampou para a eternidade próximo da campa de Hegel
Se não me engano

Dela se servindo para nela inocular os valores do espectacular
Os videirinhos do drama e da média
Lambem o chantilly do seu salário
Somando sangue ao que é por si encalhado e vistoso
Para satisfazer os níveis de adrenalina sadomasoquista
Que o hiper-consumo de massas naturaliza e o patrão exige

Ao por si da evidência acrescentaram as pirotecnias softwerianas dos meios sofisticados
Da tecnologia ideológica na nossa vida pós moderna
As mediações que multiplicam
Gritante
A evidência na sua proliferação
Como também numa outra natureza diversa do que é
Enervando o que a excede das cores que retintas transbordam
De cromatismo falando e não de rios

A operação necessária é a inversa
A de lhe subtrair
O que nela é mais que ela
E a obscurece de hiper-evidente

As velhas contas do drama
Oitocentista
Fabricavam-se no proscénio
E nessa proximidade
A ruga da actriz
Punha mais drama que a própria intriga tecia
A costura na liga entusiasmava
De como que dizer
Permitir à costureira e ao empregado de escritório
—mesmo ao provinciano actor amador —
Entrar num Olimpo de pacotilha
Que viam como luxo sem limite de estrelas
O tropeçar na sílaba o sotaque arranhado
Tudo coisas que ao rés-do-chão de uma respiração comum
São mais do que a penúria e o desleixo:
Eis porque na tragédia se morria em bastidor
Prevalecendo a notícia à foto do caso
A voz que rugia mais que o esfacelado corpo martirizado
E quando este vinha era já sepulto e longe do acto

Estas estratégias
De deferimento do momento bárbaro
Na Tragédia
Só à inteligência devem o seu modo
E o caso é que quem as compunha
Das guerras tinha a experiência
E por certo da morte em directo
Dela correndo em pensamento quando com ela se deparassem na criação
Do mesmo modo Tucídides fala do Porto de Siracusa:
Um mar pejado de cadáveres
De tal modo
Que estes faziam um chão que o encobria

A luz que tudo torna visível
Não é a que abre os olhos abertos
A luz que torna visível
É a que se alia ao que a sombra pode de contornar
E é a que sabe que os negros de escuro são necessários a qualquer estratégia de clareza
Pausas são respirações e estas são cerebrais
E sendo neuronais são evidentemente cardíacas
E por isso misturando aquela harmonia de uma pitada de empatia
Com uma pitada de crítica d’olho analítico
E uns grafismos de raciocínio em sequência que pertencem à gramática do lance em jogo já que a cada objecto ou situação pertence a sua especificidade estética
Uma natureza morta mimética nada tem a ver com o infinito das janelas em sucessivas camadas de abstracção cosmopolita

Nenhuma evidência é mais trágica do que a do coelho que cede aos faróis que o ofuscam
Deixando a vida num ápice em pleno excesso de luz
Conclui-se não lhe vê a origem
Pois no caso o que luz seria móvel
Massa metálica ameaçando
Máquina de morte sobre quatro rodas
Nem a si se vê o láparo como alvo
Os olhos nos faróis em adeus final
Nem o fora vê nem o dentro acorda o instinto
Olhos na luz hipnotizado
O excesso pára e não esclarece

É este o modo trágico da evidência que é simulacro da clareza
Porque luz
Mas da clareza nada fica
E na retina se instala o que oposto do negro fero
É já menos que este
Pois este não come do mesmo modo o que escuta
A luz que cega é a mesma que ensurdece
E o ouvido na noite cerrada alcança o que no ultra-som alcança a baleia em outro oceano
Ao coelho nem as orelhas salvam dos faróis nem o famoso faro
Nem o futuro em cenoura

Essa candura de banda desenhada dos coelhos
Não pertence ao real
É um modo de tirar ao real
O que ele é
Pintando-o com as cores convenientes da moleza supostamente protectora de uma civilização de peluche
Nada mais útil e didáctico que as arestas

Nem a evidência é por si legível
Pois o por si evaporou-se
Desde logo após os primeiros talheres de sílex
E após a queda da evidência no seu relato
Se as formas de premeio não a refizessem
Ela manteria as qualidades que Vaz de Caminha naquela índia
Descobriu
Na beleza das partes vergonhosas
Expostas quando a lei ministrada de Deus as encobria
E das quais ou de quem não tirou os olhos
Até ao consumar da prosa
O que é evidente desividencia-se com a força do preconceito no corpo desnudo mais a marca do crime aberta luz na foto celebrizada pelo concurso
E seu punctum
Ferida aberta ao culto ritual da nossa impotência sensível

Pode o corpo encenar-se e dar-se a ver aos cordeiros
E abutres
Que do lado de lá do ecrã
Apascentam as suas neuroses
No sossego perturbado do fim da intimidade
Cercados de máquinas e imagens
Nós mesmos no exterior de qualquer hipótese de interior
Paisagens que são um oceano único galgando as margens de todas as singularidades
E empurrando-as para cotas historicamente inimagináveis de egocêntrico anonimato e ausência ruminada num dentro entre o calcinado e o mole
Jogando-nos peixes fora de água no seu caudal de coliformes fecais reluzente nas sucessivas horas de ponta

O corpo abandonado
Quem o ressuscita se apenas a Jesus calhou e não à estudante de treze anos
A quem nenhum terceiro dia acenou
Menos ainda a striper de dezanove
Exposta a sua singularidade num varão para ex Cinderelas
Sejam corpos ou o acidente nuclear
Por exemplo Fukushima ou as quatrocentas e trinta mulheres assassinadas em Ciudad Juarez
Sublinhá-lo de forma aristotélica
Nada clarifica

Que é do comércio da evidência sem o excesso que a torna escândalo
Dirão os mercados
E que é dele sem choque ou sangue ou excesso de luz e crueldades

Porque nada poupam à evidência
Os que dela se servem
Manobrando-a numa transparência suposta que cega
Eis a questão

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