2020/05/18

Nove semanas noutra cidade: Vírus, Populismos e Alternativas


À entrada da décima semana de "confinamiento", imposto a 14 de Março, a Espanha iniciou uma descalada progressiva das suas medidas mais radicais. Uma longa marcha de isolamento e frustrações, salpicada de episódios dramáticos e caricatos, dada a imprevisibilidade e desconhecimento dos contágios existentes. Desde a subvalorização inicial, até ao pânico generalizado, devido à sobrecarga dos serviços hospitalares e à falta de material sanitário, houve de tudo um pouco. Os números de infeccionados e falecidos dispararam nas primeiras semanas, tendo atingido cifras alarmantes, só ultrapassadas pelas de Itália, o primeiro país europeu a sofrer os efeitos da pandemia do Coronavírus.
Pouco a pouco, as coisas foram-se estabilizando e, no início de Maio, começaram a surgir os primeiros sinais da famosa curva de "achatamento".  
A Espanha, que há poucas semanas ainda era o país com mais infectados a nível mundial, caiu, entretanto, para a 3ª posição do "ranking", com 277.678 casos, tendo sido ultrapassada pelos EUA e pela Rússia, com 532.861 e 290.678 casos, respectivamente.
Atrás dos nossos vizinhos, registe-se o 4º lugar do Reino Unido (246.406 infectados) e o 5º lugar do Brasil (244.135 infectados). Portugal, agora, em 26º lugar no "ranking" mundial, regista um total de 26.209 infectados e 1.231 falecidos (120 por milhão de habitantes), de acordo com o "worldometer" de hoje.
Se extrapolarmos estes números para a totalidade de infectados a nível mundial (4.845.102), verificamos que os EUA são "responsáveis" por 1/9 do total das infecções e que o Brasil para lá caminha, com 1/18 dos casos registados. Pese embora a dimensão e número de habitantes de ambos os países, os maiores do continente americano, a verdade é que os problemas relacionados com a rápida expansão da epidemia, não se devem apenas às suas características físicas e demográficas. Os problemas actuais dos EUA e do Brasil devem-se, em primeiro lugar, aos seus governantes, Trump e Bolsonaro, exemplos maiores da desgovernação populista que rege parte do continente americano.
Eles representam a cara e a coroa da "moeda" populista actual, ainda que possamos reconhecer características similares em ambos: impreparação total para o cargo, ignorância absoluta dos mais elementares princípios de governação, visão retrógrada e negacionista da ciência, ideologia nacionalista e proteccionista, reaccionarismo primário em questões civilizacionais como o racismo, a xenofobia, a misoginia, a igualdade de género, defensores do liberalismo mais selvagem, etc.
Há, no entanto, diferenças consideráveis entre ambos. Em recente entrevista, Glenn Greenwald (prémio Pulitzer e fundador da agência noticiosa Brasil-Intercept, que dirige a partir do Rio de Janeiro) declarou não gostar da comparação entre Trump e Bolsonaro. O segundo, estará mais próximo do ditador Duterte (Filipinas) e do general Si-Si (Egipto), do que de Trump. Pela ideologia e pelo modelo de sociedade que defende.
Trump não tinha uma ideologia. Era um empresário de sucesso, que queria fazer negócios proveitosos para si e para os EUA. Ao contrário, Bolsonaro, um medíocre militar de carreira, que passou décadas no congresso brasileiro sem nunca ter apresentado um projecto-lei, tinha 30 anos de ideologia fascista. Trump sempre teve uma política anti-estrangeiros e criticou a Europa por deixar entrar refugiados. Trump nunca fala sobre comunismo, mas apoia líderes europeus como Le Pen, que é contra os refugiados e contra os muçulmanos, Bolsonaro, sempre fala contra os comunistas (ideologia da guerra fria) elogiando a ditadura militar e os seus torcionários de 1964-1985.
Já no combate à pandemia, mostraram-se ambos irresponsáveis e incompetentes na gestão da crise sanitária, começando por ignorar o vírus, depois desvalorizando o perigo de infecção para, finalmente, terem um comportamento errático, que está na origem das centenas de milhares de mortos em poucas semanas. Um filme de terror, longe de terminar e que, para além das nefastas consequências para a saúde pública, causou a maior quebra do PIB e as maiores taxas de  desemprego, em ambos os países. A crise sanitária e social acabou por "infectar" a política e as demissões não se fizeram esperar: diversos conselheiros e secretários de estado, na Casa Branca; e a demissão de dois ministros da saúde e um da justiça, no Planalto. A cotização bolsista caiu a pique e os índices de popularidade de Trump e Bolsonaro estão, agora, pelas ruas da amargura. Para o primeiro, tudo se joga nas eleições, agendadas para Novembro. Para o segundo, que ainda mantém cerca de 30% de apoiantes, só resta organizá-los para manter o poder (as "camisas negras" do regime) ou ser deposto pelos militares que o apoiam. Nenhuma dos dois é alternativa para os seus países. 
Ao contrário, uma alternativa progressista, foi esta semana anunciada pelo DIEM25 e The Sanders Institute (fundado em 2017, por Jane Sanders, esposa do senador Democrata norte-americano Bernie Sanders) que apelaram a uma frente comum contra o autoritarismo. A Internacional Progressista pretende actuar em três planos: fomentar a mobilização social, despoletar a reflexão intelectual e promover a difusão de novas ideias progressistas, através de uma rede de meios de comunicação. Entre os "media" que aderiram a este projecto, figuram a norte-americana "The Nation", a italiana "Internazionale",  a francesa "Mediapart", a polaca "Krytyka Polityczna" e outras como "Africa is a country", "Brasil Wire", Lausane Collective" e "The Wire Índia". Entre os seus porta-vozes mais conhecidos, figuram Noam Chomsky, Naomi Klein, Yanis Varoufakis, Katrin Jakobsdóttir, Elizabeth Gomez Alcorta, Rafael Correa, Fernando Haddad, Celso Amorim, Álvaro Garcia Linera, Gael Garcia Bernal, Arundhati Roy, Srecko Horvat e Carola Rackete.
Uma palavra final, para três figuras públicas desaparecidas esta semana que, na política, na antropologia e no cinema, marcaram a minha existência: Julio Anguita, José Cutileiro e Michel Piccoli.
De Julio Anguita, guardo a imagem de um dirigente político progressista, culto e humanista, dirigente máximo do PC espanhol e fundador do partido IU (Esquerda Unida), que dirigiu até deixar a política activa, em 2000. Após a transição para a democracia, Anguita foi o primeiro alcaide comunista eleito em Espanha, por Córdoba, sua cidade natal, que governou entre 1979 e 1986. O seu mandato, valeu-lhe o cognome de "Califa Vermelho". Das suas múltiplas intervenções, ficará para sempre o memorável discurso "Anti-Sistema", pronunciado durante uma homenagem a José Saramago, na Extremadura (1999) que, por estes dias, se tornou viral nas redes sociais. Um personagem incontornável.
De José Cutileiro (ex-embaixador da UE), recordo o meu primeiro ano de Antropologia (1972), quando o professor e especialista do Mediterrâneo, Jeremy Boissevain, me sugeriu o livro "A Portuguese Rural Society", de um autor português, que eu não conhecia. Foi o primeiro livro de antropologia portuguesa que li e permanece, até hoje, como uma das melhores monografias da disciplina. Está publicado em português, sob o título "Ricos e Pobres no Alentejo". Perdeu-se um excelente antropólogo, ganhou-se um elogiado diplomata.
Finalmente, Michel Piccoli - monstro sagrado do cinema francês - e intérprete maior de filmes inolvidáveis como "Le Mépris", "La Belle de Jour", "La Grande Bouffe", "Belle Toujours", "Il Papa", entre tantos. Soubemos, hoje, da sua morte. Mais um ícone da século XX que se vai.
É assim a vida, que continua, apesar de tudo.

Sem comentários: