2022/05/19

Entre talk-shows e sitcoms

Diz-se que aquela prática de introduzir riso artificial nos programas de TV terá tido origem num técnico de som americano, chamado Charley Douglass, que trabalhava na CBS, nos primórdios da televisão. Douglass, diz-se, ficava irritadíssimo porque o público do estúdio que assistia, ao vivo, aos programas daquele canal americano, ria nos momentos errados, não ria nos momentos certos, ria alto demais ou por tempo demasiadamente longo. Lançou-se então ao trabalho e inventou uma "máquina de rir," provida de uma ampla variedade de risadas e gargalhadas, que eram metidas no programa quando julgado aproriado. Na altura, o truque servia para "ajudar" o público, pouco acostumado ainda às práticas televisivas. A "laugh track," como é conhecida, pegou, e à medida que o público se foi tornando mais habituado aos códigos da televisão, foi desaparecendo, para, mais tarde, voltar com esta ou outra variação, com mais máquina e menos público ou vive versa. A prática mantém-se e espalhou-se. Até a televisão portuguesa copiou o modelo.

Sem conhecer os bastidores deste estúdio onde se está a produzir esta comédia trágica, o mundo (particularmente a Europa) tem andado, desde fevereiro, a fazer o papel de "laugh track," como nas sitcoms americanas, perante os desenvolvimentos da guerra. O que poucos vêem, são os cartazes que dos bastidores mandam o público rir e muito menos as máquinas que, em pós-produção, introduzem a gargalhada, que induz o espectador a achar graça a coisas que, tantas vezes, não têm qualquer graça. 

Quando tudo pareceria nos conduziria à reacção mais correcta, a lágrima ou o grito de dor perante o que se está a passar e perante a nossa impotência, a máquina milagrosa do riso faz-nos rir do palhaço trágico. Nem passa, sequer, pela cabeça deste público manso e dúctil o futuro possível que pode resultar desta tragédia para onde estamos a ser conduzidos e, muito menos, a possibilidade que têm de parar de ver a série, esquecer as deixas dos assistentes de estúdio e encarar de frente as opções que temos pela frente.

A gargalhada de plástico impede, dizem os estudiosos destas coisas da comunicação, o público de ouvir a piada. Suscita-lhe apenas a reacção alvar. Impede-o, por exemplo, de fazer esta simples pergunta: e se a Rússia ganha mesmo esta guerra? O que vai acontecer aos folgazões que neste momento assistem a tudo isto, refastelados nos seus sofás, a virar minis e a comer tremoços, como se estivessem a assistir a uma partida de bola?

Não quero agoirar... mas muitos analistas, vêm avisando —sem "laugh track"— que as coisas não estão nada famosas para os lados da equipa da casa. Este analista, por exemplo, é peremptório: afirma que o Ocidente está arrumado. E explica claramente porquê. Os suecos e os finlandeses não terão percebido bem de que lado vem o vento e parecem não ter problema com as correntes de ar. Este outro esclarece: tal como Roma e Bizâncio, o actual império não tem, simplesmente, os meios para contrariar as hordas que vêm das estepes. E todos sabemos o que aconteceu a Roma e Bizâncio. Estes dois exemplos não têm relação editorial, digamos, mas são coerentes entre si. E este outro, também em consonância com os outros dois, diz, sem hesitar: a Rússia está no caminho para atingir todos os objectivos militares que se propôs atingir com esta guerra. Acrescentando que a Europa está, nesta altura, no meio de um "choque económico" que se pode "tornar muito pior do que já é." Muitos outros analistas se têm pronunciado de forma que aponta na mesma direcção. Infelizmente, distraídos com a "laugh track" muitos não perceberam ainda a "piada" de tudo isto. Este artigo, por exemplo, aborda o papel do média em todo este processo. a propósito da suposta gaffe de G.W. Bush, ao confundir o Iraque com a Ucrânia. A presença da "laugh track" e da distração que provoca, surge aqui perfeitamente clara.

E enquanto os talk-shows e sitcoms sobre o que se passa na Ucrânia se sucedem, com gargalhada a compasso, a pergunta que deixo no ar é: e Portugal? O que nos aconteceria (acontecerá?) se a horda vinda das estepes marchasse (marchar) mesmo por aí fora, como tantos receiam? Para onde nos andam a querer empurrar? A nós, aos filhos e aos netos da geração que foi empurrada para uma guerra totalmente traumatizante, nas colónias. A nós, que sabemos que a Europa, como disse o analista que referenciei acima, está no meio de um "choque económico," um "choque" que se pode tornar ainda pior. A nós que temos a certeza que não há PRR que possa cobrir mais est crise, a nós que já vivemos há tempo demais num país que anda sempre de calças na mão? O que nos aconteceria (acontecerá?) se a horda vinda das estepes se lembrar que os Portugueses abriram as portas da sede da Democracia portuguesa a um fascista, que levou a cabo uma purga política sem precedentes e totalmente antidemocrática no seu país, mantendo, a pedido, apenas uma força e conservando, simbolicamente, Bandera como herói nacional? Quem pode atribuir algum crédito a esta criatura e dar-lhe cobertura institucional?! Poderiam, o pressuroso Costa, o sibilino Silva e o talk-show host Sousa, desligar, por um momento, a máquina das gargalhadas e dizer-nos, olhos nos olhos, o que planeiam fazer, o que querem, em resumo, fazer de nós...? Vamos, governo e PR, digam-nos! E, já agora, publiquem também a vossa declaração de interesses neste conflito, para memória futura.

(NB- a imagem não é da RT; é da CNN e ilustra o caso pouco divulgado da chamada Ilha Zmiyinyy, também conhecida por Ilha da Cobra.)

9 comentários:

rui mota disse...

Na ilha da cobra, chocam-se ovos de serpente...

Fernando disse...

Meu caro Carlos

Li atentamente o teu texto, bem como vi algumas das intervenções que sugeriste. E outras que não sugeriste. Desisti da lição de 6 horas por demasiado longa, mas vi um bom bocado. Entendo que tudo o que transparece do teu texto e dos testemunhos que recomendas, são acções militares e os seus eventuais desfechos. Contudo, o que me move é a análise política da actual situação. Como postulado inicial, devo dizer que estamos perante dois dirigentes principais, Putin e Zelensky, que não serão muito recomendáveis em termos da sua conduta pessoal. Considero, contudo, que ao pé de Putin, potencialmente o 5º homem mais rico do Mundo, Zelensky é um menino de coro. Embora tu nunca os nomeies, são eles os personagens principais do teu texto. Pragmaticamente, há aqui um agressor e um agredido. Eu, estou do lado dos agredidos, porque são esses milhões de seres que se viram despossuídos de um país, de muitos familiares e amigos, de uma vida, que me interessam. Não consigo entender a minha posição como pretendendo usufruir do melhor “lado do vento”, tal como os finlandeses e os suecos. Particularmente os finlandeses conhecem bem os russos e a opção de aderir à NATO, podendo colocá-los do lado “mau” do vento, corresponderá à aspiração popular. Terá o Império Russo meios para a ganância de Putin? Invadir a Ucrânia, ameaçar Suécia e Finlândia, e que mais? Terá ele “vento” para tanto? Se é circunstancialmente dele o lado do vento, é outra questão, e não esqueças que a queda de Roma e Bizâncio estão separadas de 1000 anos! Muita coisa muda em 10, quanto mais em 1000! Que mais quer o Czar Putin? Essa questão, de impossível resposta (porque não se consegue entrar nas mentes da sua clique próxima), coloca-me uma questão: de que lado quero eu estar? De que lado querem os portugueses estar? Creio que 13 anos de uma guerra inconsequente nos obrigou a olhar para a coerência como uma forma de estar. E é bom estar do lado bom. Neste momento, estamos debaixo de um guarda-chuva europeu que, por mais erros que tenha, nos dá uma força que de outro modo nunca teriamos. Está-se bem nas tintas para nós, a horda vinda das estepes russas, mas a Europa como um todo já não é tão negligenciável. Quanto à abertura das portas da sede da Democracia Portuguesa a “um fascista”, é algo que haverá que provar. Poderá ser acusado de muita coisa, mas à sua frente haverá muitos mais e melhores (!!!) fascistas. Provavelmente, mesmo em Portugal. É bom não esquecer que quem ordenou a invasão (eufemisticamente, “operação militar especial”) a um país independente, argumentando com a “desnazificação” (um neologismo!) foi alguém que está na origem do Grupo Wagner! Quanto a nazismos, estamos conversados! Resta dizer que Zelensky é de uma família judia vítima do holocausto (o avô, membro do exército vermelho, foi assassinado pelos nazis originais- juntamente com dois irmãos). Quanto a purgas, poderás ter razão mas não consigo vislumbrar de que falas. A última purga conhecida foi de quem estava ligado aos interesses russos (e contra a integridade ucraniana), bem antes da eleição de Zelensky. No que se refere a Putin, creio que nem vale a pena comparar: desde as tentativas de envenenamento de opositores à sabotagem das eleições americanas, o rol é farto. Do outro lado, a manutenção de Bandera como herói nacional (que entendo que te agaste), dada a sua sempre proclamada oposição ao (então) PSUS, parece-me pouco e devido a um culto popular anterior, pois foi assassinado em 1959. Em resumo, não me parece que o que dizes (e o que se vai sabendo) dará eventualmente mais crédito a Zelensky que a Putin (o que não creio difícil). O futuro nos dirá. Gostava de entender melhor a tua posição, que creio ser bem diferente da minha.
Qualquer que seja o desfecho, entendo que devo estar do lado agredido, que inclui milhões de vítimas (incluindo soldados russos mortos em combate). Creio que será esse também o lado (assim o espero) do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República e do Primeiro Ministro de Portugal.
Grande abraço
Fernando Pinto

Carlos Alberto Augusto disse...

Fernando, antes de mais, um agradecimento pelo teu comentário. Raramente temos aqui atenção ao que vamos escrevendo, ao nível do que seria de desejar e que o teu comentário ilustra.
Posto isto, sim, estamos em total desacordo.
Os teus pressupostos estão nos antípodas dos meus. Quanto aos actores e quanto ao cenário. No primeiro caso, temos aqui uma equação a duas incógnitas, quando, na realidade, ela tem, pelo menos, mais uma. Que, na minha opinião, até é a principal. Isso inquina, desde logo, qualquer discussão séria sobre o assunto. Os actores principais não são Putin e Zelensky. Este último nem actor secundário é. Falta aqui, lamento, o actor principal. Quanto ao cenário, não estamos perante uma disputa territorial. Estamos perante uam situação muito, mas muito mais complexa. Para te ilustrar isto, basta referir-te que no meio deste caos que nos criaram, e para que não restem dúvidas, o tal actor que não referiste, parece não estar satisfeito. Confirmou-se hoje uma coisa que já se sabia: vamos ter mais mais zonas de caos. Ora vê aqui
https://www.nytimes.com/2022/05/23/world/asia/biden-taiwan-china.html
e aqui
https://www.nytimes.com/2022/05/23/world/asia/biden-asian-pacific-bloc.html
Isto é de hoje. E ajuda a compor o cenário...

Em todo o caso, há duas coisas bastante positivas nesta nossa troca de ideias. Primeiro, o facto de podermos fazê-lo, simplesmente. Parece que isso não é do agrado geral. A censura está aí e eu já fui por três vezes vítima dela. Esta possibilidade de trocarmos serenamente pontos de vista diferentes sobre o assunto, contrasta de forma notória com o modo como decorrem estas discussões habitualmente. Isto (o tom habitual destas discussões) tem, já em si, um enorme significado, e é prova da existência de uma clivagem muito mais profunda e fatal na sociedade actual. Esse é, quanto a mim, aliás, o reflexo principal deste processo, já esboaçado com a questão da Covid. As diferenças de pontos de vista sobre esta matéria não são simplesmente opiniões diferentes. Representam muito mais do que isso.
Em segundo lugar (e isto prende-se de certa forma com o que referi atrás,) o facto de dizeres que gostavas de entender melhor a minha posição é um aspecto extremamente positivo, que relevo. Apesar de estarmos em total desacordo quanto às posições de partida, a discussão não está naturalmente fechada. Este post é a primeira manifestação pública que tenho relativamente a este assunto. Desde o início deste confronto que vamos aprendendo mais sobre tudo isto. Espero continuar a aprender, foi isso que me foi formando a opinião que tenho hoje. Pode ser até que, ao continuar a aprender e a assistir ao desenrolar desta história, os factos me conduzam a uma outra interpretação, o que implicaria voltar aqui (e se for o caso, assim farei) para dizer: estava enganado...

Carlos A. Augusto disse...

Mais uma "análise" do NYT para vender a decisão do presidente americano de abandonar o que chamam cinicamente de política de "ambiguidade estrégica" e prontificarem-se a "defender" Taiwan das garras do maldito chinês. Mas onde é que Taiwan foi ameaçada? A tática é sempre a mesma: ir meter o bedelho onde não são chamados, inventar ameaças, que a existirem contituiriam assuntos internos, e, assim, conquistarem "legitimidade" para impor os seus interesses e sacarem mais uns pedaços do mundo. Nada que nos deva espantar muito. A própria América começou assim, atacando quem os ameaçava, mesmo que fosse quem já lá estava e estivesse, isso sim, a ser ameaçado por eles.
https://www.nytimes.com/2022/05/23/world/asia/biden-taiwan-china.html

Carlos Alberto Augusto disse...

1ª parte de um texto do general Carlos Branco, bastante claro, que identifica bem, mas não esgota, a complexidade de todo este processo.
Um texto do general Carlos Branco, bastante claro, que identifica bem, mas não esgota, a complexidade de todo este processo.
O confronto dos EUA com a Rússia é apenas um dos capítulos do projeto da afirmação hegemónica global de Washington, que visa, entre outros aspetos, afetar as relações da Rússia com Europa, e as veleidades europeias de autonomia estratégica, nomeadamente quebrar o comércio e o investimento bilateral com a Rússia e a China.
Isso passa, entre outros aspetos, por impedir a entrada em funcionamento do Nord Stream 2, tornar a Europa dependente do gás americano, viabilizar uma indústria com elevado break even, assim como os bancos que a financiam, bloquear a implementação dos acordos celebrados entre a Europa e a China, e inviabilizar economicamente os corredores euroasiáticos da “Uma Faixa, Uma Rota”, com passagem pela Rússia e fim na Europa, impedindo o aprofundamento das relações comerciais e investimentos mútuos europeus com a China e a Rússia.
A guerra na Ucrânia serve estes propósitos, e por aquilo que já conseguiu representa, pelo menos no curto prazo, uma vitória dos EUA. Permite guerrear um dos seus arqui-inimigos, fora do território norte-americano, sem necessitar de empenhar soldados norte-americanos. Ao contrário da Administração anterior, Biden vê a eliminação de Moscovo como um passo determinante e necessário antes da confrontação militar com a China, e assim dominar a Eurásia, o seu o último objetivo.
A Ucrânia está a ser utilizada pelos EUA como um instrumento para provocar uma reformulação drástica da geopolítica global. Importa, pois, perceber como é que o problema ucraniano se insere na manobra geoestratégica norte-americana para debilitar a Rússia, torná-la um Estado pária e instalar no Kremlin um regime fantoche que dê a Washington acesso aos seus recursos naturais. Se possível, impor a Putin o mesmo destino de Sadam Hussein. Como afirmou o Secretário da Defesa Lloyd Austin, “temos de enfraquecer a Rússia”. Ou, se quisermos, ecoando as palavras do ex-comandante do Exército dos EUA, na Europa, Ben Hodges, temos de “quebrar as costas da Rússia”.
Por isso, não há pressa em procurar uma solução política para o conflito, mas sim prolongá-lo até exaurir o oponente. A solução política só ocorrerá quando a Rússia não puder mais e soçobrar, não tendo outra alternativa que não seja aceitar as condições que lhe forem impostas por quem estiver na mó de cima. Por isso, o Secretário-Geral da ONU António Guterres veio dizer que não se encontram reunidas neste momento condições para uma solução pacífica do conflito.
Os objetivos dos EUA ficaram claros quando foi dito publicamente, para quem ainda tivesse dúvidas, que esta guerra visava destruir a Rússia como uma potência militar. Enquanto isso não acontecer será impossível obter um acordo de paz. É necessário que Rússia esteja suficientemente desgastada e o admita, e que preferencialmente uma revolta popular possa instalar um novo governo em Moscovo. Esta estratégia foi recentemente confirmada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros português João Cravinho.
Será difícil aceitar que os 53 mil milhões de dólares que Washington se prepara para atribuir, em menos de três meses, à Ucrânia – um valor que supera o orçamento de defesa conjunto da Polónia e de Israel, e se aproxima muito do orçamento de defesa russo, para além dos cinco mil milhões de dólares que a Secretária de Estado Adjunta Victoria Nuland se gabou de ter investido nos partidos neonazis da Ucrânia, que participaram no golpe de Estado em Maiden, em 2014 –, se enquadrem no combate titânico e sem quartel das democracias contra as autocracias, quando Biden procura convencer os líderes do ASEAN a juntar-se às sanções contra a Rússia, um fórum composto maioritariamente por autocracias.

Carlos Alberto Augusto disse...

2ª parte

Se a invasão da Ucrânia é, sem qualquer margem de dúvida, uma violação do direito internacional – como foram as operações dos EUA em muitos outros locais, nomeadamente no Iraque, sem provocarem o clamor nas opiniões públicas ocidentais que esta está a provocar – faz sentido do ponto de vista geoestratégico. A Rússia comportou-se do mesmo modo que os EUA e a China se comportaram em situações semelhantes, quando uma potência hostil se intrometeu e atuou no seu “quintal geoestratégico”. De um modo bastante inteligente, Washington consegue combater a Rússia, fazer Moscovo sangrar, sem morrerem soldados norte-americanos, utilizando os descartáveis ucranianos, procedimento que os afegãos têm ainda bem presente.
Em frontal desrespeito pela Resolução do Conselho de Segurança da ONU (2202/2015), que certificava os acordos de Minsk, as Forças Armadas ucranianas preparavam-se para resolver a questão russa na Ucrânia com o recurso à força, e na continuação recuperar a Crimeia. Já em março de 2021, Zelensky tinha sido muito claro sobre as suas intenções relativamente ao Donbass. Washington estava plenamente ciente de que este caminho tinha riscos e ia provocar a reação militar russa, não fazendo nada para o evitar, pelo contrário. Isso não impediu que instigasse a ação belicista ucraniana contra o Donbass, um ataque relâmpago organizado por conselheiros norte-americanos e britânicos, a ter lugar em março de 2022. Moscovo antecipou-se, e invadiu preemptivamente a Ucrânia.
Neste Great Game, surge uma União Europeia (UE) desorientada, sem que se perceba qual será o espaço que pretende ocupar na ordem internacional que começa a emergir. Preferiu abdicar de uma relação de par inter pares com a Rússia, para abraçar uma relação de subalternidade – política, económica e geoestratégica – com Washington. No primeiro caso, teria condições para se projetar como um ator político global de primeira grandeza, no segundo, não passará de um apêndice geoestratégico.
Sem recursos energéticos e matérias-primas (o colonialismo não vai voltar), a Europa está condenada a ser sempre dependente de alguém. A dependência da energia russa era recíproca (os euros davam muito jeito ao Tesouro russo) e vantajosa para ambas as partes, e o baixo preço do gás russo permitia uma economia europeia competitiva, modelo de desenvolvimento económico agora colocado em causa.
A UE terá agora de identificar novas dependências e cadeias de abastecimento, que não lhe serão tão favoráveis como aquelas que tem utilizado. Em vez de comprar gás, petróleo, minérios e cereais à Rússia, irá comprá-los mais caros noutros locais, nomeadamente aos EUA. Vítima do retrocesso da globalização e dos obstáculos ao comércio livre que se avizinham, a Europa terá as suas capacidades competitivas irremediavelmente afetadas, ficando à mercê das iniciativas protecionistas de outras economias. O Euro já está a ser uma das vítimas desse processo.
Perante a abundante evidência de ingerência política externa na Ucrânia, interrogamo-nos sobre o que será ainda necessário trazer à colação para os europeus perceberem que estão confrontados com uma proxy war no seu território, com potencial para se transformar numa confrontação militar mundial, e deixarem ingenuamente de acreditar em argumentos com pouco valor explicativo, como sejam uma invasão não provocada, áreas de influência, o direito de estabelecer alianças com quem se quiser, sobretudo quando isso apenas se aplica aos outros.
Só uma acrisolada fé os pode fazer acreditar que a guerra na Ucrânia se trata de um confronto entre as democracias e as autocracias.

Fernando disse...

Caro Carlos

Em primeiro lugar, deixa-me que te diga que o facto de estarmos em polos opostos não significa menor consideração por ti ou por quem quer que seja, pelo que me parece de meridiana lógica que possamos discutir esses pontos de vista!
Espero que me concedas ter pensado sobre as estratégias que apresentas antes de te ter respondido. Quanto mais não fosse (e, admito, já não era) pelos anexos que incluíste no teu texto. Não pretendo ter o conhecimento que tu tens do ponto de vista que defendes, mas entendo-o. Só que o compreender não significa que os considere mais significativos que muitos outros e ainda menos que os subscreva.
Li múltiplas vezes a tua resposta e ensaiei múltiplas vezes replicas a ela, mas decidi que não valerá a pena. Os nossos pontos de partida parecem ser de tal forma distantes que dificilmente chegaremos sequer a planos de discussão comuns. Enunciarei só o que acho serem os nossos diferentes pontos de partida:
1. Para mim, nunca será qualquer geoestratégia a definir a minha posição e ainda menos a minha atitude, embora há muito saiba que há quem aja na sombra. E aqui não vejo qualquer diferença entre os Estados Unidos (que tu pareces culpar exclusivamente) e a Rússia (que, recordo-te, tentou manipular -no sentido de Trump- as eleições americanas, para só dar um exemplo). Entendo é que a este jogo se devem juntar a China e até a Índia. Já lá vai o tempo em que os EUA mandavam no Mundo a seu bel-prazer, só tendo a União Soviética como contraponto (e que importante ela foi!). Hoje, a guerra fria já não é um jogo a dois, mas um jogo a parceiros, cada um com suas cartas.
2. Também os povos estão em diferentes estágios de liberdade e de consciência e por isso, diferentemente intervenientes nas decisões dos seus próprios governos. A guerra do Vietnam foi primeiramente perdida dentro dos próprios EUA, se a memória não te falhar. Menosprezar a força e a determinação do povo tem sido o altar de sacrifício de muitos governos, e exemplos não faltam. Só as ditaduras e as tiranias podem permitir durante algum tempo (um pouco a exemplo da célebre frase do Brecht) tirá-los da equação, mas mesmo estas acabam por cair. E, como muito bem analisou Nguien Giap, a guerrilha, se bem integrada no povo, não pode ser derrotada. Provou-o ele no Vietname e posteriormente, provou-se no Afeganistão, para não ir mais longe. Neste momento, os ucranianos estão numa posição semelhante a estes povos…
3. Outra coisa que também nos separa, é a importância dos nacionalismos. Sem os subscrever nem por um segundo, reconheço que povos saídos de uma amálgama como a soviética tenham alguma necessidade de afirmação nacional (ou patriótica, como clama o PCP) e aí se insere o culto a Bandera. Ele é um herói nacional porque sempre lutou pela emancipação e pela liberdade dos ucranianos, mas isso não faz do povo ucraniano um povo fascista e ainda menos nazi! Não há povos nazis (embora seja tentador afirmá-lo, quando se vêm paradas alemãs dos anos 30). A repressão não me parece a melhor forma de combater, nem o nacionalismo, nem qualquer outra coisa. Os antigos escravos americanos também tentam recuperar os seus nomes de origem e isso é, também entendível pelo mesmo princípio, consagrado num quadro de Gauguin (“Qui sommes nous? d’oú vennons nous? oú allons nous?”). é o que acontece também com os ucranianos.
E com estas divergências de base, meu querido amigo, não chegaríamos, creio eu, a nenhum porto comum.
Um abraço e fica bem
Fernando Pinto

Carlos Alberto Augusto disse...

Obrigado, Fernando. Vamos ver o que nos reserva o futuro, independentemente dos nossos pontos de vista sobre o presente. A mim parece-me que o que está para vir não tem graça nenhuma. Nisso estaremos, talvez, de acordo. E o problema volta à estaca zero: se o que está para vir não é bom, como poderia ser evitado? Qual a estratégia mais correcta para o fazer? Abraço.

Fernando disse...

Carlos
Perguntas "o que nos reserva o futuro" e achas "que que o que está para vir não tem graça nenhuma". A avaliar pelo presente, concordo plenamente contigo, sobretudo porque o presente já não tem mesmo graça nenhuma! Como poderia ser evitado? Enquanto houver Trumps e Putins (gente com sonhos hegemónicos e a pretensão de controle de outros países) neste Mundo, acredito que seja bastante dificil evitar seja o que for. Abraço