2022/09/17

Allgarve

 

Tenho uma relação de amor-ódio com o Algarve. Passo a explicar:

Lembro-me, como se fosse hoje, da minha primeira visita, nos anos sessenta do século passado, já lá vão uns bons 60 anos...Desde então, muita coisa mudou, como seria natural. Uma coisa porém, provavelmente a mais importante, não sofreu alterações: o clima mais ameno do país, a luminosidade deslumbrante, a costa marítima - rochosa a Barlavento, suave a Sotavento - as areias finíssimas, a temperatura do mar, a reserva natural da Ria Formosa, a gastronomia excelente, onde o peixe e o marisco são reis imbatíveis, a arquitectura de influência árabe, a proximidade com Espanha, para além de tantas outras razões para continuar a gostar desta província. É sempre um prazer renovado voltar e não é difícil perceber porque é que tantos estrangeiros optaram por se fixar definitivamente nesta região. Um pequeno paraíso em território português.  

Esta é a imagem do Algarve que mantenho e que, ao longo dos anos, com maiores ou menores intervalos, venho comprovando: seja por razões profissionais, seja por razões turísticas.

A frequência das visitas nos últimos anos, aguçou o meu apetite pelas coisas boas e tornou-me mais exigente perante as coisas más, que um turista acidental tem tendência a subvalorizar e a considerar parte da "colour locale" que, aos seus olhos, as torna mais aceitáveis. Um bom exemplo, são os serviços: medíocres, a roçar o péssimo, quando comparados com outras regiões mais a Norte do país. 

Estamos em finais de Agosto em Tavira (portanto um concelho com cerca de 30.000 residentes), onde a população flutuante triplica nos meses de Verão. Chegados à cidade, depois de quase 3 horas de auto-estrada, procuramos um restaurante no centro, para almoçar. São 14.30h em ponto. Entramos no primeiro, com o original nome "A Romana - pizzaria" enquanto nos preparamos para encomendar algo. O empregado (brasileiro) dirige-se solicito à nossa mesa e pergunta o que desejamos. 

"Comer algo rápido", retorqui sem olhar para o cardápio. "A esta hora, só servimos "take away". "Como, não podemos comer? Mas, as cozinhas estão abertas e são 14.30h...". "Sim, podem comer, mas não aqui. Podem encomendar e ir comer para outro lado" (!?). Olho para o homem com vontade de o esganar e pergunto se há outro restaurante próximo. "Veja aqui ao lado, no "Olinda"...

Dirigimo-nos para o local indicado, uma esplanada a abarrotar de turistas, a 50 metros de distância. Sentamo-nos. Uma empregada solícita (inglesa) pede desculpa pelo seu mau português e pergunta o que queremos. "Algo rápido, para não perder muito tempo", respondo. "Muito bem, vá lendo a carta, que eu volto já". Desaparece no interior do restaurante. Passados uns minutos, volta com ar consternado e anuncia no seu melhor português: "Lamento, mas a cozinha já está fechada". Olho para ela e chamo a atenção para a hora. São14.40h...

"Nem ao menos uma salada ou uma omelete?". "Nada. Só bebidas...". Mudo de registo e digo-lhe no meu melhor inglês: "A senhora não tem culpa nenhuma, mas diga ao seu patrão que estamos no Algarve, a região mais turística de Portugal e que ele, se quer ganhar dinheiro, tem de fazê-lo nos meses de Verão...". Olha para mim, com ar compreensivo e responde: "You´re probably right, but I won't tell him that..."

Saímos em desespero, até encontrar um "cyber café" aberto onde, para além dos computadores, uma impressora e uma colecção de CDs respeitável, serviam "snacks" e refeições ligeiras. Eram exactamente 15h e, na esplanada, todas as mesas estavam ocupadas. Lá dentro, numa cozinha improvisada, um sujeito de meia-idade cozinhava algo parecido com um hamburguer. Ao ver-nos, perguntou com ar meio desesperado: "O que desejam?". "Comer! Pode ser uma salada para ser mais rápido", retorqui eu, com uma ar ainda mais desesperado. Abana a cabeça e diz: "Estou sozinho, tenho uma lista de clientes lá fora à espera. Vão ter de esperar 45 minutos"...". Aceitamos e enquanto escolhíamos uma salada de frango para dois, não resisto a perguntar-lhe: "Mas, está sozinho, porquê? Não há empregados?". O homem encolhe os ombros e, com ar resignado, diz: "Ninguém quer trabalhar. Os ordenados são baixos, os impostos são altos e o pessoal jovem não gosta de trabalhar na restauração, porque o dia não lhes "rende". Têm de trabalhar em dois turnos. Preferem ir para a praia e viver do subsídio de desemprego"...Perante tão eloquente resposta, fico sem argumentos. A verdade é que a taxa de desemprego é relativamente baixa (menos de 6%), mas no Verão e no Algarve, em particular, não devem faltar candidatos para o sector do turismo, responsável por 10% do PIB nacional (leio, na imprensa portuguesa, que os hotéis algarvios estão com uma ocupação de 93% e que, só no mês de Julho, o aeroporto de Faro registou 1,8 milhões de passageiros!).

Dias mais tarde e após uma boa experiência gastronómica num restaurante da zona ribeirinha, voltamos ao local para repetir a dose. O empregado reconhece-nos e diz-nos que a esplanada está cheia e há clientes à espera. Olho para o interior, vazio, onde uma televisão gigante transmite uma partida de futebol e esboço o meu melhor sorriso:"não faz mal, nós podemos ficar lá dentro...". "Lá dentro, não dá. Faz muito calor, por causa da cozinha, ali ao lado...". Não desisto e tento mais uma vez: "Nós esperamos...". "Não vai dar", diz o homem, com uma expressão de Buster Keaton. "Só temos uma placa na cozinha e leva muito tempo a cozinhar. Tente num restaurante mais adiante. Também são bons e baratos..."(!?). 

Perante tanto "entusiasmo" em fazer negócio, nem sei que pensar. Será que os algarvios já descobriram a fórmula da plena felicidade (trabalhar, quando apetece?). Se é assim, presto-lhes a minha homenagem. 

Os transportes são um capítulo à parte: os autocarros (vulgo "buses") ainda vão funcionando, mas apenas nas ligações internacionais. Dentro da província, são um pesadelo. À noite não existem e, a partir das 19h deixam simplesmente de funcionar (ex: carreira Faro-Loulé). O mesmo se passa com o comboio: só existe uma linha férrea, a ligação entre Lagos e Vila Real de Santo António (menos de 200 quilómetros) que demora hora e meia a percorrer. O serviço de automotoras existente, velho de 50 anos, pára em todas as estações e tem de fazer um compasso de espera em Faro, onde aguarda que chegue a automotora em sentido contrário, pois só existe um carril. Um sistema caduco, que já existia em 1974, quando recomecei as minhas visitas à região, nessa época ainda chamada de Algarve. As automotoras estão a cair do "tripé" e não devem ser lavadas há anos, tal a quantidade de graffitis nas carruagens. Na estação de Faro, o caos nas horas de ponta (chegadas dos comboios oriundos de Lisboa) é diário. Das quatro bilheteiras existentes, nunca vi mais de duas a funcionar em simultâneo. As filas para comprar bilhetes, são frequentes e não existem écrans numa língua estrangeira, que elucidem os turistas sobre os horários. Os anúncios sobre as chegadas e partidas dos diferentes comboios são feitos em português, através de uma aparelhagem sonora que não prima pela clareza. A maior parte dos funcionários, de idade avançada, não fala outra língua, para além do português. Só existe uma toilette pública (unisexo) onde, para entrar, há que pagar um euro. A alternativa é entrar no bar da estação e pedir a chave do WC, mas a empregada só a dá a quem consumir algo. Percebe-se, mas não é funcional. Podia ser no Burundi. É assim tão difícil construir lavabos modernos e funcionais para ambos os sexos numa das plataformas? Que raio, o Algarve é o nosso principal destino turístico e gera milhões de lucros anuais!   

Enfim, a lista de queixas é longa e de cansativa leitura. Há diferenças, no entanto: agora, chama-se "Allgarve" (Europe's most ocidental point), continua "very typical", funciona mal, mas ainda é "charming"...

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