2022/09/25

"Indian Summer"

"Outubro quente, traz o diabo no dente" (provérbio português) 

De acordo com o calendário, começou o Outono. Para trás, o mais quente mês de Julho do século, a habitual seca e os fogos de Agosto, para além de uma "silly season" trivial, não fora a morte da monarca inglesa de maior longevidade no cargo. 

O falecimento de Isabel II e a cobertura das exéquias fúnebres por parte da comunicação social portuguesa, atingiu níveis inimagináveis e provavelmente nunca vistos (falo por mim, que vejo televisão desde 1957). Os diferentes canais, desde a circunspecta RTP, às televisões de cabo SIC, TVI, CNN e CMTV, não se pouparam a esforços (e, presume-se, orçamentos) para enviar os seus mais reputados "pivots" ao Reino Unido: de Balmoral a Saint James, passando por Windsor e Westminster, lá estiveram todos, a Clara, o José Rodrigues e o Nuno Santos, atropelando-se, ao sol e à chuva, para nos dar a imagem que faltava, pois o "serviço público" é isto: "dar ao público o que ele deseja ver", mesmo quando não havia nada para mostrar. Patéticos, alguns dos comentários de jornalistas experimentados, que não se cansaram de repetir os quilómetros e as horas passadas nas filas, por todos aqueles que quiseram prestar a última homenagem à rainha. Eram mais de sete quilómetros de fila, talvez oito, arriscava um com maior rigor...Chama-se a isto, em jargão jornalístico, "encher chouriços". Mas, não foi apenas a televisão portuguesa que exagerou. No dia do funeral, contei 22 canais de televisão em todo o Mundo, que cobriam o acontecimento, China incluída. É obra!

Com a mudança de estação, entrámos naquilo que os anglo-saxónicos apelidam de "Indian Summer" (verão indiano), uma designação que terá a sua origem na mitologia dos nativos americanos. Segundo a lenda, o sangue dos ursos mortos filtra-se pelos solos e viaja através das raízes para as folhas das árvores, colorindo-as de vermelho, a cor dominante das copas durante os meses de Outubro e Novembro no continente norte-americano. Outra explicação, tem origem no mito indiano, segundo o qual os meses de Outono correspondem à principal temporada de caça, devido às suaves temperaturas desta época do ano, quando os animais selvagens são atraídos para fora dos seus esconderijos e são mais fáceis de caçar. Na Europa, chamamos a este interregno "Dias de São Martinho", santo cujo dia é celebrado a 11 de Novembro. São dias de transição suave, algures entre os últimos calores de Verão e as primeiras chuvas do Outono, sem vento e de temperatura amena. No entanto, todos sabemos que, lá mais para a frente, virá a tempestade. Não será diferente desta vez, pois as nuvens acumulam-se no horizonte e nem todas serão obra da natureza. 

A maior "tempestade", que influencia e paralisa meio Mundo, é sem dúvida a guerra Russia-Ucrânia, iniciada há, precisamente, sete meses. Um desastre de dimensões incalculáveis, desde logo a nível humano, para além dos prejuízos materiais e da destruição massiva que atinge sobretudo a Ucrânia e o seu martirizado povo. Sete meses passados e apesar dos desejos expressos pela maioria dos comentadores (há quem lhes chame "wishful thinking") a verdade é que a guerra decide-se no terreno e, provavelmente, irá prolongar-se para além do Outono. Este é um cenário que pode convir à Rússia (cada vez mais isolada no plano internacional, devido às sanções aplicadas pela UE e pelos EUA) que dispõe de reservas de gás e petróleo das quais dependem os países do Norte e do Centro da Europa, que não hesitará em usar como "moeda de troca" nesta guerra de contra-sanções. De resto, alguns dos países que aprovaram as sanções (Áustria, Hungria, Republica Checa, e.o.) continuam a comprar e a pagar em rublos o gás russo de que necessitam, fazendo jus ao princípio "negócios, primeiro!". Resta saber o que restará da "unidade europeia", nesta guerra que só interessa às grandes potências (EUA e Rússia) quando o "Verão indiano" terminar e o Inverno começar. Nessa altura, as bandeirinhas azuis e amarelas nas janelas, poderão começar a desaparecer.

Outra "tempestade" previsível, é a crescente influência dos partidos populistas de extrema-direita (de tendência fascista) que, ontem na Suécia (e hoje, em Itália) poderão vir a integrar governos de regimes democráticos, depois de terem conseguido votações expressivas que rondam os 20% nas eleições legislativas de ambos os países. Este crescimento exponencial, torna-os parceiros ideais da direita tradicional e conservadora que, desta forma, poderá governar e implementar medidas protecionistas, xenófobas e anti-imigração, normalmente sempre mais difíceis de pôr em prática. Se, na Suécia, o tema da segurança foi central durante toda a campanha (devido ao aumento da criminalidade no seio das comunidades imigrantes nas últimas duas décadas); já, em Itália, os principais lemas defendidos pela assumida candidata fascista (neta de Mussolini) foram "a família, a pátria e a religião", a par da imigração e dos refugiados, temas centrais em todas as campanhas (de Salvini, ex-governante e cujo partido integra o actual bloco nacionalista ao "regressado" Berlusconi, o populista-mor do reino, que apoia Putin, o que o coloca numa posição ambígua perante o eleitorado italiano. Resta acrescentar que Putin "himself", tem sido um dos principais apoiantes dos movimentos populistas e de extrema-direita na Europa e nos EUA (Trump), numa estratégia que visa enfraquecer os países do bloco ocidental. Tudo "bons rapazes", portanto.    

Resta a crise social e económica, propriamente dita, que veio para ficar. Chama-se "inflação" e já cá estava antes da guerra e do crescimento dos partidos populistas de direita na Europa. Nos EUA atingiu os 8,3% nos últimos dias e, na zona euro, ronda os 7%. Portugal não foge à regra e apesar do crescimento económico anunciado para o próximo ano (6,5%), a verdade é que partimos de valores mais baixos, pelo que o crescimento real é, proporcionalmente, inferior. Na realidade, e apesar do anúncio feito por António Costa (de que todas as pensões e reformas abaixo dos 705euros, iriam receber um bónus de 50%) os pensionistas e reformados portugueses, vão perder esse aumento em 2023 e 2024, já que os valores das pensões deixarão de ser indexados à inflação, como tem sido regra até agora. Dito de outro modo: o governo prepara-se para congelar os aumentos das pensões e reformas no futuro, o que significará de facto uma perda do poder de compra real nos anos que aí vêm. Chama-se a isto "dar com uma mão e tirar com a outra"...

Mas, nem tudo são más notícias. Nos EUA, Trump foi acusado pelo Departamento de Justiça de fuga ao fisco e de sonegar documentos secretos da Casa Branca, encontrados na sua mansão da Florida. A acusação, e provável condenação, poderá significar o fim das suas ambições políticas e a perda de direitos nas próximas eleições, o que não deixa de ser uma boa coisa. Também Steve Bannon (ideólogo da Alt-Right, promotor de movimentos de extrema-direita na Europa e ex-assessor de Trump) foi acusado de corrupção e apropriação de bens angariados na campanha eleitoral, tendo-se entregado à justiça. Outra boa coisa, portanto. 

Finalmente, o Brasil. Do outro lado do Atlântico, chegam boas notícias: a uma semana das eleições, as sondagens (de todos os quadrantes) dão Lula como provável vencedor, com uma diferença de 14 pontos sobre Bolsonaro (47% versus 33%). A confirmarem-se estes números, será necessária uma 2ª volta, já que nenhum dos candidatos atingirá a maioria absoluta (50+1) necessária para poder governar. Depois de quatro anos de gestão danosa e conflituosa com o eleitorado brasileiro, o actual presidente, um tosco fascista, sem qualquer preparação para governar, poderá ser afastado e, inclusive, acusado por crimes de peculato e envolvimento em crimes sob investigação. A grande incógnita, parece residir na influência que os grupos evangélicos (70% do eleitorado de Bolsonaro) têm nestas eleições. Independentemente das simpatias pessoais, o que está em jogo no Brasil é muito mais do que uma simples disputa entre dois candidatos. Trata-se da escolha entre democracia e fascismo, o que não é coisa pouca. Vai Brasil!

Nunca o Outono pareceu tão quente.

2 comentários:

Carlos A. Augusto disse...

"Este é um cenário que pode convir à Rússia (cada vez mais isolada no plano internacional, devido às sanções aplicadas pela UE e pelos EUA)." O "plano internacional" é uma noção que carece de aprofundamento. A Rússia está cada vez menos isolada a oriente. Resta saber como a nova ordem mundial vai gerir séculos de exploração do ocidente.

rui mota disse...

Sim e não. O "apoio" do "Oriente" a Putin, é ambíguo e interesseiro. Xi Ping não depende da Rússia, mas pode precisar da Rússia e não está interessado no prolongamento desta guerra. O mesmo, pensa Mori (Índia) que disse pessoalmente a Putin (na reunião de Samarcanda) que não estamos em tempos de guerra. Até Erdogan (que faz jogo duplo, pois a Turquia é membro da NATO) só está interessado na Rússia para derrotar os curdos, os seus principais adversários a nível interno. Neste momento, apenas os EUA estão a ganhar com a guerra. Todos os restantes actores (Ucrânia, Rússia e UE) estão a perder com esta. Com a recente mobilização dos 300.000 militares russos, o regime pode ver-se confrontado com manifestações contra a guerra e deserções do exército russo, o que poderá ter implicações sérias para o regime. Se a coisa correr mal, não é de descartar uma mudança no Kremlin.