2022/10/03

XXII Bienal: em Sevilha, o Flamenco está vivo!

 

Decorreu, durante todo o mês de Setembro, mais uma edição da Bienal de Flamenco, o maior e mais prestigioso evento dedicado à arte "jonda" que, de há dois séculos a esta parte, apaixona os melómanos e estudiosos de todo o Mundo. 

Após a edição de 2020, condicionada pela pandemia reinante, em que a maior parte dos concertos foram  limitados a metade da sua assistência habitual, a Bienal voltou, quiçá mais pujante que nunca, com dezenas de espectáculos de "cante",  "toque" e "baile", o tripé sob o qual assenta o género musical mais popular de Espanha. 

Com nomes sonantes no programa, entre os quais a Cia. Eva y Yerbabuena,  Olga Pericet, Vicente Amigo, Gerardo Núñez, Israel Galván, La Tremendita, Niño de Elche, Marina Heredia, Segundo Falcón, La Macanita, Rafael Carrasco, Pastora Galván y Marina Marín, Manuela Carrasco, Bolita, Mayte Martín, Rocío Molina (com Niño de Elche), era difícil escolher. Dificuldades de datas e bilhetes esgotados com antecedência, impediram uma selecção mais abrangente, ainda que o critério de qualidade estivesse garantido à partida. 

Lá fomos, munidos de entradas para três concertos, que não podiam desiludir: o guitarrista Vicente Amigo, a "cantaora" Mayte Martín e a "bailaora" Rocío Molina, esta com um convidado especial, o iconoclasta Niño de Elche.

Regressado a Sevilha, após um largo período de ausência, Vicente Amigo (Córdoba) voltou ao nível dos seus melhores dias: versátil, intimista e arrojado, nos variados "palos", que executou com a mestria que lhe conhecemos. Reportório renovado e clássicos que todos sabem de cor. Um guitarrista a um tempo clássico e moderno, que sabe agradar aos mais aficionados e ao público em geral. Poucos são os guitarristas que esgotam La Maestranza, a sala de visitas de Sevilha e Vicente Amigo voltou a consegui-lo. Depois de uma introdução clássica, em que interpretou um "medley" de "soleás", "seguiriyas" e "bulerías", Amigo iniciou uma viagem pelos seus temas mais conhecidos, culminando com a homenagem à arte do toureio, dedicada a um famoso lidador de Sevilha. Passou em revista temas do seu último álbum "Memoria de los sentidos", entre os quais "Requiem Coral" (uma homenagem a Paco de Lucía), aqui numa interpretação contida, mas dramática de Rafael de Utrera. Com Amigo, estiveram mais sete acompanhantes, entre músicos, "cantaores" e "bailaores", todos de qualidade ímpar. Destaque para o "cantaor" Rafael Usero Vilches (Rafael de Utrera), excelente nas interpretações mais dramáticas e Antonio Molina Redondo (El Choro), magnífico na sua curta mas rigorosa intervenção de "baile". 

Outra "cantaora", que acompanhamos há mais de 25 anos e que nunca desilude, é Mayte Martín (Barcelona) uma das vozes e presenças mais apreciadas no circuito flamenco. Mayte, não tem apenas uma boa voz, mas uma presença que o público e a crítica especializada sabem reconhecer. Lá estivémos todos, num Lope de Vega cheio até ao tecto, para acompanhá-la nas duas horas que duraram a actuação, pontuada por momentos de pura magia, em que nem uma mosca se ouvia na velhinha sala de Sevilha. Uma actuação a todos os títulos brilhante, em que interpretou, com igual desenvoltura, os "palos" mais clássicos. De destacar, aqueles em que foi acompanhada pelo guitarrista José Gálvez, num dos momentos mais solenes do concerto. Não faltaram outros temas e incursões por géneros não-flamencos e dois "encores", respectivamente, o celebrado  "S.O.S.", do seu álbum de estreia "Muy Frágil" e a "Milonga del Solitario" do argentino Atahualpa Yupanqui, ambos cantados com a mestria que lhe conhecemos. Mayte Martín está no topo da carreira e arriscamos a dizer que, das vezes que a vimos ao "vivo" esta foi, sem dúvida, a sua melhor actuação. Brilhante.     

Finalmente, um dos espectáculos mais aguardados desta Bienal: "Carnación" (estreia nacional), uma criação de Rocío Molina (Málaga), "bailaora" e "dansaora", reconhecida pela sua abordagem à dança flamenca contemporânea e de fusão, que a tornaram famosa no circuito da arte. Desta vez, rodeada de um elenco notável, entre os quais, o conhecido El Niño de Elche (voz), Pepe Benitez (piano, electrónica, programações), Maureen Choi (violinista), Calude Alemán (soprano) e ProyectoeLe (coro). Pese embora a encenação operática, em que as luzes, o som e as cores dominaram, o espectáculo pecou por falta de ritmo, aliado a uma duração que nos pareceu excessiva, dado o desafio - difícil - a que Molina se propôs. Uma performance de quase duas horas, com muito de teatro pós-dramático, "bondage" e provocação, em que todos os intérpretes se expuseram ao limite. Nada que não tivéssemos visto em companhias de dança contemporânea (Pina Bausch, Teresa De Keersmaeker) com a diferença de que, aqui, a "mensagem" não passou. Acresce que, de Flamenco, houve muito pouco (afinal, o tema da Bienal), salvo um "martinete", interpretado a preceito por El Niño de Elche e um bailado soberbo de Molina, num despique furioso com a violinista Choi, certamente dois dos momentos mais conseguidos de "Carnación". Como em todas as experiências, a inovação não agradou a todos. Entre espectadores meio bocejantes, que pediam "mais baile" e fãs incondicionais, que não regatearam aplausos no final, ficou uma sensação de vazio, difícil de interpretar. Nem toda a crítica local gostou do espectáculo e o diário "El Mundo", considerou-o mesmo o "pior da Bienal"...

A Bienal terminou, mas o Flamenco continua. Hoje, mais vivo que nunca, renovando-se com intérpretes de excepção, que prosseguem com a arte "jonda", um género musical universal.                

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