2024/09/03

Notícias da "Silly Season"(3): das "férias cá dentro" às promessas do governo


Com o final de Agosto, terminou o "mais querido mês de férias". 

Ainda que possa entender a razão da escolha deste mês para descanso, a verdade é que tudo é pior em Agosto. 

Desde logo, a afluência da população indígena (e estrangeira) ao litoral, com todos os inconvenientes inerentes ao turismo de massas: congestionamentos nas auto-estradas, atrasos nos comboios, "overbooking" nos aviões, alojamentos esgotados, preços inflacionados, piores serviços, mau atendimento, filas intermináveis para poder desfrutar de uma refeição num restaurante ou visitar um museu, etc. A lista é longa...Entra-se cansado e sai-se irritado, com o "stress" acumulado neste mês que, não raras as vezes, dá origem ao reconhecido "síndrome pós-férias", afinal um luxo dos "happy few" que podem gozar (e pagar!) os seus dias de descanso anuais. No entanto, uma coisa é só poder fazer férias em Agosto (filhos nas escolas, empregos na função pública, por exemplo), outra é dispor de tempo livre para férias durante todo o ano e persistir fazê-las em Agosto. Ou, fazê-las em Agosto e no litoral, o que é estranho, num país com mais de 3000 horas de sol anuais...

Pior, só mesmo a situação daqueles que não podem sequer fazer férias fora de casa, independentemente do mês do ano, devido às limitações do seu orçamento. De acordo com a Comunicação Social, "Em 2023, segundo os dados da Eurostat, Portugal apresentava a sexta maior percentagem da população sem capacidade para pagar uma semana de férias, por ano, fora de casa, incluindo a despesa de alojamento e de viagem para a família. Com maiores dificuldades, apenas as populações da Roménia, Bulgária, Hungria, Grécia e Croácia. Nesse ano, mais de um terço da população (38.9%) terá gozado as férias na sua residência habitual, um valor que, desde 2020, tem vindo a aumentar em Portugal, invertendo a tendência decrescente que se registava no nosso país desde 2010" (in "Expresso" d.d. 15 de Agosto). Ou seja, depois de um período de retração durante os anos de intervenção da Troika (e posterior recuperação entre 2015 e 2020), os portugueses voltaram a gozar menos férias fora, ainda que façam férias "dentro" de casa... 

O "querido mês de Agosto", no entanto,  não é só o mês das férias por excelência, é também o mês da "rentrée" política, no qual os partidos políticos propõem "novas soluções" para velhos problemas, mesmo sabendo que a maioria dos anúncios não passam de "wishful thinking" partidário.

Confortado com o excedente orçamental deixado pelo anterior governo (mais de 4.000 milhões) e pelas verbas dos programas europeus 20-30 e PRR, o governo anunciou as principais medidas no palco do Pontal onde, reza a tradição, "o pão se transforma todos os anos em circo". Quanto mais não fosse, e também por essa razão, é sempre aconselhável evitar o Algarve nesta época do ano. 

Passámos por lá em Julho e o panorama não mudou relativamente ao Verão passado: Faro já estava inundada de turistas estrangeiros, os restaurantes mais caros e a abarrotar, atrasos nas ligações ferroviárias e serviços medíocres numa região que devia ser a "jóia da coroa" da industria que mais contribui  para o PIB nacional. Paradoxalmente, nos cafés e restaurantes que frequentámos, exibiam anúncios a pedir pessoal, sendo que em todos, sem excepção, a maioria do pessoal era estrangeira. Perante tal discrepância, indagámos da razão e foi-nos respondido que "no Algarve, ninguém quer trabalhar" (!?). Daí o recurso aos imigrantes. Muito bem, nesse caso, o governo que regularize os 400.000 imigrantes que aguardam no AIMA a sua legalização, para que a procura se ajuste à oferta. Do turismo e não só. Resta saber quais as condições em que a maioria desses imigrantes trabalham (salários, horários de trabalho, alojamento), pois em Outubro voltarão ao Fundo de Desemprego ou aos seus países de origem, enquanto aguardam pela nova temporada em Portugal. Um ciclo vicioso, herdado de governos anteriores, que não acautelaram o "boom" turístico anunciado e, à boa maneira portuguesa, esperaram para ver, pois alguma solução haviam de arranjar...

Voltando ao Pontal: este ano, o primeiro-ministro guardou para a praia da Quarteira, o anúncio das principais medidas do governo. Destacamos quatro: um passe anual de comboio por 20 euros; um aumento único de pensões até 1500 euros (já previsto na última reunião de ministros); a reestruturação do Serviço Nacional de Saúde (mais uma!); e a regularização de imigrantes com processos pendentes, ainda que muitos deles trabalhem e descontem para a Segurança Social há anos. 

De todas as medidas, a mais badalada foi a do passe ferroviário anual, por um preço ao alcance da bolsa dos portugueses. Todos os comboios ficam abrangidos, à excepção do Alfa Pendular, que faz o trajecto Braga-Porto-Lisboa-Faro. Em si, uma medida social e positiva, que deve ser aplaudida. Acontece que, na ânsia de anunciar reformas, Montenegro esqueceu-se da realidade, talvez por desconhecê-la, uma constante dos governantes portugueses. 

Vejamos: há mais de 30 anos (desde Cavaco) que Portugal deixou de investir na ferrovia, apostando na rodovia. Construíram-se auto-estradas e fecharam-se mais de 1000 km de linha férrea. Um disparate completo, ao arrepio da tendência actual europeia. Só muito recentemente (por iniciativa do, então, ministro Pedro Nuno Santos), o país voltou a apostar na ferrovia, seja através da recuperação de material antigo, descontinuado pela CP, seja na modernização das linhas da Beira-Baixa, do Oeste e do Norte, para além da extensão Évora-Caia, que permitirá a ligação a Badajoz (80 km de via nova). Paralelamente, foi aberto um concurso internacional para a aquisição de 117 novas composições (já terminado), mas em fase de contencioso, aberto por duas das concorrentes estrangeiras. Entretanto, o actual governo recuperou o plano de Alta-Velocidade (TGV) para a linha do Norte enquanto anunciava a redução da encomenda das 117 composições (!?). Por coincidência, ou talvez não, a empresa Barraqueiro, no mesmo dia, propunha-se explorar a linha do Norte com 8 composições novas...

Sem oferta melhorada, sem linhas ou comboios novos e com passes a 20 euros, é fácil deduzir que iremos assistir a uma corrida aos passes e à utilização dos comboios por grande parte da população. Em tese, um habitante de Braga, poderá fazer todas as semanas a viagem Braga-Faro e volta (1200km) no Intercidades, por 20 euros, menos de metade do preço cobrado por metade da viagem! Ou seja, todos os comboios (Intercidades, incluído) passarão a andar cheios e não darão resposta ao aumento da clientela. Um evidente desfasamento entre a oferta e a procura. Foi o que aconteceu na Alemanha, que teve de recuar numa medida semelhante, em que oferecia passes nacionais a 49 euros e não tinha comboios e serviços suficientes para responder à procura gerada. Uns crânios, os nossos dirigentes políticos, que falam antes de pensar, utilizando a demagogia para enganar o pagode. No Pontal e por esse país fora...

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