2022/01/29

Reflexões

(Marcelo Rebelo de Sousa fotografado por Alfredo Cunha)


Terminaram as campanhas partidárias. 

Ao longo do último mês, os portugueses tiveram oportunidade de escutar, ao vivo e a cores, debates televisivos e radiofónicos, campanhas de rua por todo o país e opiniões diárias, de analistas e tudólogos, para todos os gostos. Ninguém pode queixar-se de não ter sido informado ou de ter faltado informação, ainda que esta nem sempre tenha primado pela isenção exigida. 

Houve de tudo, desde ataques "ad hominem", a discursos abertamente xenófobos, passando pela mudança de tácticas a meio do percurso, sempre que as sondagens não correspondiam ao efeito desejado. Assistimos às mais desencontradas opiniões e críticas do homem da rua que, não raramente, se indignava pela crise desencadeada com a reprovação do Orçamento e apelava à unidade de esforços conjuntos para evitar o regresso de uma direita de má memória, desta vez acompanhada por um partido populista, abertamente racista. 

Os partidos de esquerda, que até há pouco pareciam defender causas comuns, levaram as suas contradições para o debate público e não se coibiram de criticar-se mutuamente pela situação existente. Só nos últimos dias da campanha, parece ter havido uma inflexão nas suas posições, muito por causa das sondagens que apontavam para um despique cerrado entre os dois maiores partidos e respectivos blocos à sua esquerda e à sua direita. 

Chegados aqui e de acordo com as três últimas sondagens publicadas pela Universidade Católica/RTP/Público, ISCTE/Expresso/SIC e TVI/CNN/Pitagórica, parece que todas elas (sem excepção) apontam para uma vitória escassa do PS (2 a 3%), assim como para uma provável maioria parlamentar de esquerda (5 a 10 deputados). Há, no entanto, a ressalvar que as projecções, se situam dentro da margem de erro e não têm em conta a possível abstenção (derivada do confinamento provocado pelo COVID) o que poderá alterar os dados. Tudo em aberto, portanto...

Não vale a pena os parceiros da "geringonça" continuarem a incriminar-se mutuamente. Não há inocentes nesta história. Só houve uma "geringonça" (2015-2019) e esta só existiu porque, paradoxalmente, Cavaco Silva o exigiu, através de uma acordo escrito. Aparentemente, a fórmula resultou, pelo menos aos olhos da opinião pública. Se não resultou em 2019, isso deveu-se ao PS, que não quis governar sozinho com o BE (o PCP já se tinha afastado e não queria mais acordos escritos). A partir desse momento, cada partido foi à sua vida, até porque representam três visões/modelos diferentes de sociedade e a unidade, então encontrada, foi circunstancial (e de interesse mútuo) para afastar a direita do poder.  Esse ciclo acabou e dificilmente voltará.

O que provavelmente voltará, será o "bloco central de interesses" apadrinhado por Marcelo Rebelo de Sousa, o homem da "governabilidade", que nunca escondeu a sua agenda e não descansará enquanto não houver um acordo ao centro entre os dois maiores partidos. Vem aí muito dinheiro (cerca de 60.000 milhões de euros até ao fim da década) e os dois partidos do poder (70% dos votos) necessitam de alimentar as suas clientelas habituais (corporações diversas, maçonarias e quejandos) e não querem perder esta oportunidade. 

Por isso, parece-nos que nada de essencial irá mudar, já que não se trata apenas de políticas partidárias, mas de uma cultura de clientelismo e patrocinato, enraizada na sociedade portuguesa. Não perceber estas coisas simples, pode ser fatal. Como diria o conhecido assessor de Bill Clinton: "É a economia, estúpido!". 

2022/01/26

Córdoba ou o apogeu do Al Andalus (2)

 

Dizem os guias turísticos, que a melhor forma de entrar na cidade de Córdoba é pela margem esquerda do Guadalquivir, atravessando a Puente de San Rafael. Para quem vem de Sul, pela auto-estrada A4, essa foi uma escolha natural. De facto, a perspectiva da cidade, antes de atravessar a ponte, é determinante para ter uma ideia global do perímetro urbano, do casario que envolve o centro histórico e, no meio de tudo, os telhados da mesquita, encimados pela torre da catedral no centro. Um "bilhete postal" que dispensa apresentações. 

O mais difícil nestas coisas é sempre arranjar lugar para o carro, num centro histórico pejado de turistas, limitado na sua circulação e onde os "parkings", para além de caros, estão normalmente cheios. Depois de muito circular sem sucesso (a circulação faz-se num só sentido) foi necessário atravessar a Puente de Miraflores, em sentido contrário, para encontrar um lugar junto ao projectado Centro de Congressos. Até ao primeiro monumento da cidade, a Torre de La Calahorra, são cinco minutos. A Torre, um antigo forte construído pelos árabes, é hoje um dos "ex-libris" da cidade e alberga, para além da Fundação Roger Garaudy, o "Museu das Três Culturas" (Islâmica, Judaica e Cristã). A partir daí, a melhor forma de voltar ao casco histórico da cidade, é atravessar a Puente Romano, cujo tabuleiro e (parte dos) arcos que a suportam, datam da época romana. Depois, é sempre a subir, até à Mesquita-Catedral, o mais emblemático monumento da cidade.   

Visitar a Mesquita de Córdoba constitui, por si só, uma experiência inolvidável. Nas palavras de um guia local: "poderia descrever-se como o encontro com um Mundo já perdido, onde a sensualidade e a geometria constituía a porta preferencial de acesso ao sobrenatural". Consta que o rei Fernando III de Espanha, quando conquistou a cidade em 1236, não escondeu o seu assombro pelas dimensões do edifício. De tal modo, que deu ordem para preservar a mesquita e para construir um templo cristão embutido, no seu interior, de modo a sublinhar a convivência que durante séculos existiu entre as duas religiões da cidade. A primeira coisa que espanta, é a extraordinária dimensão da sua planta. Vista do lado oposto (Torre de Calahorra) a Mesquita parece um gigantesco mausoléu, dentro do qual estão escondidos séculos de História. Se pensarmos que à época do califado, Córdoba era a maior cidade europeia com cerca de 1 milhão de habitantes, podemos imaginar as multidões que acudiam à chamada do "muezzin".

No interior do edifício, encontramos um imenso mar de centenas e centenas de colunas, todas diferentes, que saem do solo, sem base a sustentá-las, para formarem onze naves paralelas com mais de 100 metros de comprimento. Dos seus capitéis, surge uma sucessão interminável de arcos em forma de  ferradura, sobrepostos até três níveis, que ascendem aos tectos (embutidos a madeira), como uma metafísica palmeira. No centro do edifício, surge a zona da Catedral, que os cristãos levantaram no século XV. Curiosamente, não existe qualquer barreira a separar os dois templos (incrustados um no outro) pelo que os visitantes, podem atravessar todo o edifício e escolherem o lugar preferido. À saída, tempo ainda para percorrer e admirar o famoso Pátio das Laranjas, outro lugar mágico, onde o cheiro das laranjeiras carregadas, cercadas pelo murmúrio da água corrente das fontes, completaram um dia perfeito.

Ainda que o centro histórico de Córdoba, seja relativamente pequeno, a quantidade de locais interessantes é assinalável. Destacamos os que pudemos visitar, já que o tempo era escasso. Desde logo, a Judiaria, a norte do perímetro histórico. Um intrincado labirinto de ruas e ruelas, extremamente bem conservadas, no centro da qual existe a única Sinagoga de Andaluzia. O antigo bairro judeu é hoje um dos pontos mais fervilhantes da cidade, com centenas de pequenos comércios e aprazíveis pátios exteriores, onde ao fim da tarde se juntam os locais e os turistas, em permanentes deambulações. Outro dos percursos obrigatórios, são os famosos "pátios", que podem ser visitados em Maio, durante o festival que atrai à cidade milhares de forasteiros. O evento, já foi reconhecido pela UNESCO, como Património Imaterial. Também o "souk" (bazar árabe) pode ser visitado, apesar de dimensões reduzidas, quando comparado com o de Granada, bastante maior. A não perder mesmo, são os "salmorejos" locais (um creme frio, da família do gaspacho, confeccionado com pão, azeite, tomate, alho, ovo cozido e presunto) considerados os melhores de Andaluzia. Depois de repetidas provas, só posso estar de acordo com a sua reputação. 

A percorrer também, é a Calle Cardenal González, uma animada rua onde estão situados os banhos árabes (hammans) diariamente frequentados por jovens locais e turistas, embrulhados nas suas toalhas turcas. Seguindo a rua, desembocamos na Plaza del Potro, lugar mítico da cidade, referido por Cervantes no romance "D. Quixote de La Mancha". Nesta praça, estão situados o Museu de Belas Artes e o Casa-Museu Julio Romero de Torres (1874-1930), notável pintor de Córdoba, famoso pelos retratos a óleo de mulheres andaluzas. Ainda na mesma praça, existe um dos poucos currais medievais existentes, este recuperado e restaurado. Numa das dependências do curral, funciona o Centro de Flamenco El Fosforito, famoso cantor flamenco do século passado (originário da cidade e vencedor e.o. da Chave de Ouro, um dos mais altos galardões da Arte Flamenca). Córdoba é, de resto, uma das cidades de grande tradição flamenca. Ali, existiram alguns dos mais famosos "Cafes Cantantes" da Andaluzia onde, em 1871, actuou o lendário Silverio Franconetti, um ícone da arte. Outros nomes famosos da actualidade, são os cantores El Pele e Juan Serrano, para além dos guitarristas Vicente Amigo e Paco Peña, todos oriundos da cidade. 

Por fim, a jóia da coroa do Al Andalus: a Medina Azahara (Madinat Al-Zahra). À semelhança dos califas orientais, Abderramão III fundou em finais do século IX, a 8km de Córdoba, uma cidade de excelência, como prova do poder político e económico do Califado Cordobés. Considerada a Versailles da Idade Média, chamaram-lhe a "Cidade Resplandecente" e ainda hoje deslumbra. A sua construção durou 25 anos e seria finalizada pelo filho do Califa. Foi fundada em 941, mas teve uma existência curta, já que em 1010 foi completamente arrasada pelas tropas berberes, que desafiaram o Califado, após o que a cidade seria parcialmente destruída e abandonada durante mil anos. No seu apogeu, chegou a ter 25.000 habitantes. São cerca de 1500m de comprimento por 750 metros de largo. Quase 112 hectares de superfície, dos quais somente 10% foram, até à data, postos a descoberto e recuperados, num dos mais belos museus ao ar livre da península. Desta vasta superfície, só é autorizado visitar a zona Norte da Medina, onde estava situado o palácio de Abderramão III e as moradias nobres da cidade. Os jardins, considerados os maiores e os mais belos de todo Al Andalus, podem ser vistos dos diversos miradouros, instalados na parte alta, mas devido aos trabalhos de arqueologia (que se iniciaram em 1911) e à pandemia vigente, estavam encerrados. 

Tudo isto e muito mais, a ver e repetir, pois a beleza não tem preço, nem limites. 

2022/01/25

Córdoba ou o apogeu do Al Andalus


A viagem estava prometida há anos. Aproveitando o interregno natalício, a escolha recaiu em Córdoba, uma das cidades míticas de Andaluzia. Três curtos dias não seriam suficientes para ver tudo, mas deu para aguçar o apetite e voltar na semana seguinte, tal o impacto da primeira visita.

Antes, porém, um pouco de História:

Córdoba (ou a "cidade do rio") foi fundada em 169 a.C. pelo general romano Claudio Marcelo que, numa colina do Guadalquivir, criou o primeiro assentamento militar da zona. Este pequeno núcleo populacional, daria origem à fundação da cidade romana de Corduba. Pouco a pouco, Corduba extendeu os seus limites e prosperou como cidade. Até que, em 45 a.C., a guerra civil entre César e os filhos de Pompeu, obrigou a cidade a escolher um dos lados. O apoio de Corduba aos pompeianos (e posterior derrota destes) provocou uma terrível represália que acabaria com a vida de 22.000 habitantes. 

Em pouco mais de vinte anos, Corduba recuperou o seu papel relevante. No ano 27 a.C. o imperador Augusto nomeou Corduba, a capital da Bética, importante província romana em Hispânia. Nos anos seguintes a cidade viveu uma época de esplendor a tornou-se uma das cidades mais importantes do império romano e da Europa. Nessa época, Corduba protagonizou um autêntico renascer urbanístico. Foram construídos grandes monumentos, o forum, o circo, o teatro, o templo romano, uma grande muralha que cercava toda a cidade e a ponte romana que conduzia a Roma, através da via Augusta. Alguns destes monumentos subsistem e podem ser visitados. Paralelamente, a cidade viveu um renascimento cultural, graças a filósofos como Sèneca e a poetas como Lucano, ambos oriundos de Corduba. 

Em meados do século XV, Corduba perde o estatuto de capital e sofre diversas revoltas que marcam o seu imparável declínio. No ano 572, os Visigodos conquistaram Corduba, dando início a quase dois séculos de domínio da cidade. Durante esse período, os judeus, que haviam gozado de liberdade de culto com os romanos, foram perseguidos e obrigados a abandonar a religião. Este facto, provocou o futuro apoio do povo hebreu às tropas muçulmanas, que invadiram a cidade em princípios do século VIII.

No ano 711, as tropas berberes do Norte de África, cruzam o estreito de Gibraltar e iniciam a invasão da Península Ibérica. Sete anos mais tarde, todo esse novo território (denominado Al Andalus) tornou-se uma província dependente do Califado de Omíada. Durante 20 anos, o exército berbere avançou até ao Norte, até ser derrotado em Tours (França). Esta batalha marcou o início do retrocesso muçulmano, o que viria a provocar conflitos internos entre berberes e árabes. 

No meio do caos, Abderramão l, o único sobrevivente do massacre da dinastia Omíada na Síria, fugiu de Damasco e fundou o primeiro emirado de Córdoba em 756. Desta forma, Córdoba tornou-se a capital do Al Andalus a ser independente do Califado, embora mantendo os laços religiosos. Nos 170 anos que se seguiram, sete emirados sucederam a Abderramão I. Durante esse período, a cidade viveu importantes transformações, urbanas e culturais: o bairro judeu, conhecido como Judiaria, ampliou-se e as suas ruas seguiram o traçado típico da arquitectura muçulmana, dando lugar a um labirinto de ruas e becos estreitos. Prosseguindo a ideia do "jardim do paraíso", os pátios das casas encheram-se de fontes e flores aromáticas. Esse novo modelo de residência foi mantido até aos dias de hoje, dando lugar aos famosos "pátios" de Córdoba. Também foram construídas mesquitas e banhos árabes (hammans) na capital assim como o templo mais importante do Al Andalus, a Mesquita de Córdoba. 

O oitavo emir de Córdoba, Abderramão III, rompeu definitivamente os vínculos religiosos com Bagdad no ano 929 e auto-proclamou-se Califa de Córdoba. Sob o seu mandato a cidade viveu uma época de esplendor sem procedentes e chegou a ser o principal centro cultural do Ocidente. Com quase 1 milhão de habitantes, Córdoba simbolizou a convivência de judeus, cristãos e muçulmanos. Em todo esse tempo, a cidade califal tornou-se um ponto de encontro de célebres cientistas, filósofos, astrónomos e matemáticos. Além disso, foram feitas importantes obras públicas, como o pavimento de ruas, esgotos e iluminação nocturna. Mas, sem dúvida, a obra mais importante da Córdoba califal, foi a construção, em 936, da Medina Azahara, uma cidadela vizinha a Córdoba. Abderramão III transladou o governo e a corte da cidade palatina e passou a gerir do seu palácio o funcionamento do califado, onde recebia os líderes internacionais e a conciliar as relações entre berberes, cristãos e judeus.

O seu sucessor no trono, foi Ad-Hakam II, que por sua vez deixou o trono ao filho Hisham II de apenas 11 anos. A sua inexperiência possibilitou a ascensão do fidalgo Almançor que ganhou cada vez mais protagonismo e poderio militar. Os constantes ataques de Almançor aos reis cristãos, fizeram com que se estes se unissem e desencadeassem um levantamento, que colocou fim ao Califado de Córdoba em 1031. Os berberes saquearam e incendiaram Medina Zahara e a comunidade muçulmana de Córdoba dividiu-se em pequenos reinos de Taifas. Depois da dissolução do Califado de Córdoba, a capital ficou dividida em 39 reinos de Taifas, o que fez com que o poder ficasse descentralizado. No século XII, o Império Almoada chegou à Península Ibérica e unificou todos esses reinos. Estes seriam, finalmente, dissolvidos pelos cristãos, dando lugar ao terceiro reino de Taifas. Finalmente, as tropas cristãs de Fernando III entraram em Córdoba e conquistaram este território em 1236. Embora a cidade tenha mantido a sua essência árabe, os muçulmanos foram expulsos, a Medina passou a ser uma vila medieval e foram construídas diversas igrejas cristãs. Córdoba iniciava, assim, a sua época cristã.

No século XV, os reis católicos instalaram-se em Córdoba, para dirigir da cidade a reconquista de Granada e, nessa altura, a cidade recuperou parte do seu esplendor. Em 1486, Isabel e Fernando receberam o marinheiro genovês Cristovão Colombo, no Alcácer dos reis cristãos, para escutar a sua inovadora rota rumo à Índia. A cristianização de Córdoba chegou em 1482, quando os reis católicos expulsaram os judeus e muçulmanos da Península Ibérica. Como consequência, em 1523, Carlos I autorizou a construção de uma catedral no interior da Mesquita. Nos anos seguintes foram também construídas as Cavalariças Reais, a Porta del Potro e a Plaza de La Corredera, lugares incontornáveis em qualquer visita. Córdoba teria, ainda, um papel de protagonista em 1808, quando as tropas do general Castaños venceram o exército francês na batalha de Bailén, naquela que foi a primeira derrota de Napoleão.

Desde meados do século XX que a cidade vive um renascimento económico e cultural que originou um crescimento considerável da sua população. Córdoba conta hoje com mais de 325.000 habitantes (a terceira maior cidade da Andaluzia). A UNESCO, declarou Córdoba Património da Humanidade em 1984. Recentemente, em 2008, o conjunto arqueológico da Medina Azahara foi declarado Património Mundial. 

(continua)

2022/01/14

Entre o PAN e o "Pântano", venha o diabo e escolha...

 

Terminadas as festas, começaram os saldos. Este ano, para além das promoções com desconto, temos as promessas eleitorais, que - a acreditar no Pai Natal - estão cheias de "presentes" para oferecer a quem se portar bem. Desde logo, o famigerado PRR (vulgo "bazuka") que é suposto "curar" grande parte dos nossos males e, lá mais para diante, os dinheiros dos programas europeus de coesão, que dão pelo nome de "20-20" e "20-30". No total, cerca de 60 mil milhões de euros, até finais da década. Ou seja, Portugal (se nos portarmos bem, lá está...) vai receber, só nesta década, tanto quanto recebeu desde a sua adesão à CEE, já lá vão 36 anos...

Por razões que a razão desconhece, a legislatura (que devia ter durado até 2023) foi interrompida a meio,  obrigando a eleições antecipadas (agendadas para o dia 30 de Janeiro). Até lá, teremos duas semanas de debates (que estão a decorrer neste momento) e duas semanas de campanha propriamente dita que, este ano, por via da restrições sanitárias, será mais contida no tempo e no espaço. 

Regressado do estrangeiro esta semana, perdi metade dos debates e, dos que restavam, vi os considerados mais importantes, entre os quais o frente-a-frente entre o actual primeiro-ministro (António Costa) e o "challenger" de serviço, o líder do principal partido da oposição (Rui Rio).

Primeira Nota: ao contrário dos restantes debates, que tiveram a duração média de 30 minutos, este debate durou 60 minutos. O dobro. Porquê? Claro que podemos sempre argumentar que se tratava do debate mais importante, já que um dos dois oponentes irá ser o próximo primeiro-ministro. Mas, se 60 minutos não dão para falar em mais de 4 ou 5 temas, como é que 30 minutos poderão ser suficientes para explicar o que quer que seja? A menos que os jornalistas de serviço estivessem interessados em aprofundar os temas em discussão, o que não era o caso.

Segunda Nota: para além de temas clássicos (economia, saúde, emprego, reformas...) e à excepção de temas marginais trazidos por partidos da extrema-direita (impostos, subsídios diversos, pena de prisão perpétua ou castração química de pedófilos...), nunca ouvimos falar de coisas tão importantes como: educação, cultura, habitação, transportes, mobilidade, ambiente, imigração, problema demográfico, descentralização e desertificação do interior. Isto, para não falar na política estrangeira (temos alguma?) ou da Europa, que nos subsidia há 36 anos. 

Terceira Nota: todos os oponentes, sem excepção, falaram no passado (virtudes próprias e defeitos alheios) sem apresentarem uma estratégia futura que nos permita ter uma ideia, ainda que geral, do que é que se propõem fazer, caso sejam governo. Mais, no caso dos partidos de esquerda, passaram o tempo a culparem-se mutuamente, pelo chumbo do Orçamento e pela consequente queda do governo. É verdade que existem programas partidários e, em tese, todos nós podemos lê-los e aferir do seu conteúdo. Mas, quem é que, nos tempos que correm, lê programas de 20 partidos?   

Quarta Nota: estamos em eleições legislativas para eleger deputados para a Assembleia da República. Só depois, saberemos a composição da AR. Porque razão é que, nestas eleições, António Costa, passou a afirmar que estamos a eleger o primeiro-ministro (!?). A menos que se trate de um "lapso freudiano", não se percebe esta afirmação, ainda que nela possa estar implícita a mensagem subliminar "votem em mim" (se querem que o PS governe...). 

Quinta Nota: do debate de ontem, algumas coisas parecem claras: Costa parece apostar numa maioria absoluta (usando o eufemismo "uma maioria estável") o que lhe permitiria dispensar alianças à esquerda e à direita; ou, caso não a obtenha, procurar governar com quem o apoiar (chegou a mencionar o PAN) ou continuar como até aqui, fazendo acordos caso a caso, como aconteceu durante o consulado de Guterres, no qual ele foi ministro dos assuntos parlamentares e que terminou no "pântano". Ou, terceira hipótese, aceitar o repto de Rio (governar com o apoio do segundo partido mais votado), o que ficou por esclarecer, já que ninguém sabe qual vai ser a composição da próxima assembleia.  

Sexta Nota: não é provável que qualquer dos dois maiores partidos (PS e PSD), ganhe as eleições com maioria absoluta. A acreditar nas sondagens publicadas entretanto, há uma tendência que se mantém constante em todas elas: existe uma maior polarização à esquerda e à direita e o PS ganhará as eleições, ainda que sem maioria absoluta. "De acordo, com os dados da sondagem do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião (CESOP) da Universidade Católica Portuguesa, para o PUBLICO, RTP e Antena, entre os dias 6 e 10 de Janeiro, os socialistas poderão beneficiar de uma significativa transferência de votos de eleitores que em 2019 votaram na CDU, no Bloco de Esquerda, no Livre e no PAN, enquanto o PSD também faz uma boa "pescaria" nos eleitores do CDS, além de algumas franjas do Chega, Iniciativa Liberal e até do PAN" (in "Público" d.d. 14/01/22). 

Sétima Nota: De acordo com a mesma sondagem, o PS vencerá com cerca de 39%, o PSD terá cerca de 30%, o BE 6%, o Chega 6%, a CDU 5%, a IL 4%, o PAN 3%, o CDS 2% e o Livre 2%. Estes serão, em princípio, os partidos que elegerão deputados. A confirmar-se este cenário, não haveria grandes alterações na composição da AR, maioritariamente de esquerda, o que levantará de novo a questão de Outubro: se o Orçamento de Estado foi chumbado, porque é que o mesmo orçamento seria, agora, aprovado?

Oitava Nota: ainda que o debate de ontem não esteja contabilizado nas sondagens, não é muito provável que a opinião dos votantes se altere, já que a maioria tem o seu voto definido. No entanto, daqui até ao lavar dos cestos, é vindima. Pode acontecer o PS ganhar as eleições, mas a esquerda ficar em minoria no Parlamento; ou, o contrário: o PSD ganhar, mas a maioria do Parlamento continuar a ser de esquerda. Nesse caso, qual será a solução preconizada? Uma "geringonça" de direita, ou uma (segunda) "geringonça" de esquerda? E Costa, sairá do governo, se perder? E Rio, ficará como líder do PSD? As máquinas partidárias não costumam ser benevolentes para líderes perdedores. O mesmo é válido para os líderes de outros partidos, de resto.

Tempos interessantes. No dia 30, saberemos mais.

2021/12/22

No vacinar é que está o ganho (business as usual)

Como era expectável, o governo anunciou mais medidas restritivas para o período de festas que vai iniciar-se esta semana. A coisa já estava a ser preparada com alguma antecedência, mas a súbita explosão da variante Ómicron veio alterar os planos governamentais. Assim, em vez de confinarmos apenas na quadra natalícia e na primeira semana do ano, quando as escolas e a "vida normal" deviam recomeçar, eis-nos perante um novo plano de contingência.

Desta vez, António Costa, após auscultar o conselho de ministros, pôs o fato azul dos momentos solenes e anunciou, sem se rir, as novas medidas para a próxima quinzena. Estas incluem tele-trabalho obrigatório,  encerramento de escolas e ATLs para crianças, encerramento de bares e discotecas, limitação do número de clientes e distanciamento em restaurantes, proibição de ajuntamentos de mais de 10 pessoas na via pública, proibição de festas de fim-do-ano e de espectáculos e eventos desportivos. O controlo fronteiriço será retomado e os testes para entrar em determinados espaços passam a ser exigidos. Quem não fizer testes e não tenha certificado digital, não entra. Para pior já basta assim...

Para sublinhar a gravidade da situação, o primeiro-ministro pôs um ar ainda mais compungido e revelou os planos para a sua ceia de Natal que, este ano, não terá mais de 6 pessoas, a saber: ele, a mulher e a filha, o sogro, a mãe e o padrasto. De fora, ficará o irmão Ricardo (e respectiva família) que, à mesma hora, deve estar a fechar a edição da SIC-notícias. Era difícil imaginar pior cenário.

Depois de um ano memorável, em que Portugal começou com um dos piores índices de contágios a nível europeu, para se tornar o campeão da vacinação mundial, com uma percentagem de vacinados a rondar os 90% da população, eis-nos de volta ao local de partida! Mas, então, as vacinas não têm um efeito duradouro? E qual é a duração da vacina, que nos venderam como a solução milagrosa para os tempos mais próximos? E só algumas é que são efectivas, ou são todas? Ou, não é nenhuma? Estas e outras questões, são hoje alvo de polémica e acesas discussões nos Fora internacionais, com os especialistas das mais diversas áreas, a opinarem sobre o vírus e a melhor forma de o combater.

Uma das explicações mais óbvias, tem a ver com o aparecimento de novas variantes do vírus original, do qual já foram detectadas 4 ou 5 estirpes, entre as quais a Alfa, a Delta e, mais recentemente, a Ómicron. Porque o vírus se adapta e transmuta, é de esperar o aparecimento de mais estirpes num futuro próximo. Uma das formas de combatê-las, é através da vacinação. Neste campo, muitos progressos foram obtidos no último ano, com uma campanha de vacinação em massa a nível mundial. Só que, a sua distribuição, deixa muito a desejar. Num recente artigo sobre o tema, o cronista Daniel Oliveira (Expresso, d.d. 4/12), lança alguma luz sobre a desigualdade na distribuição das vacinas a nível mundial e os efeitos perniciosos desta política:

"O açambarcamento das vacinas para usar em grupos cada vez menos eficazes deixa o vírus à solta nos países mais pobres, que se tornam em viveiros de novas variantes potencialmente mais poderosas ou contagiosas". (...) "Mesmo com elevadas bolsas de resistência, 66% da população da UE tem a vacinação completa. Em África, são 6%. O número de pessoas dos países mais ricos que já receberam o recente reforço da vacina é quase o dobro dos que têm a vacinação completa nos países mais pobres. Gastamos dezenas de milhões de doses em crianças cada vez mais novas, com eficácia discutível, enquanto o vírus ganha força descontrolada nos países pobres". E, mais à frente: "uma das consequências da pandemia foi o reforço do poder dos Estados, que compreensivelmente limitam as liberdades individuais  e o funcionamento da economia. Mas, não beliscam as sacrossantas patentes de vacinas financiadas por fundos públicos. Junta-se a isto, o "neocolonialismo" denunciado há uma semana por Gordon Brown no "The Guardian": países que precisam de vacinas, como a África do Sul, são obrigadas a entregar à Europa as que eles próprios produzem. Em apenas um ano, a vacina Pfizer tornou-se o medicamento com maior volume de vendas em todo o Mundo: 36 mil milhões de dólares em 2021. É responsável por 80% das inoculações  na UE e 74% nos EUA". (...) "De acordo com o "Financial Times", longos meses depois do início da comercialização da vacina, a UE aceitou que o valor por dose passasse de €15,50 para €19,50. Numa nota aos accionistas, a empresa diz que conseguirá aumentar ainda mais as margens de lucro com o fim da pandemia" (...)

"Recusando abrir mão das patentes, a "solução" encontrada pelo G7 foi a doação. Mas o objectivo proclamado em Junho - 40% de vacinação para os 92 países mais pobres - está irremediavelmente comprometido. Os EUA estão em 25% do prometido, a UE 19%, o Reino Unido 11% e o Canadá 5%. Ao contrário do que acontecia no início, o problema já não é a produção, que está nos dois mil milhões de doses por mês. O problema é o açambarcamento. Os EUA têm 162 milhões de doses em stock, a UE 250 milhões e o Reino Unido 33 milhões. Que esta medida é completamente irracional, é o facto de 100 milhões de vacinas terem, entretanto, ultrapassado o seu prazo de validade em Dezembro, segundo a COVAX". (...) "O egoísmo vacinal está a concentrar as vacinas nos países mais vacinados. A Pfizer tem um esquema de preço distinto pelo nível económico dos países, variando entre os €19,50 na Europa, €9 nos países em via de desenvolvimento e €6 nos países mais pobres. É fácil perceber a quem lhe compensa mais vender e como as novas doses compradas pela UE para crianças e para a terceira toma passam à frente de encomendas mais antigas e mais urgentes dos países pobres". 

Ou seja, por mais vacinas que o Mundo desenvolvido produza e por mais vacinados que estejamos, as mutações do vírus vão continuar a infectar-nos, enquanto 1/3 da população mundial continuar por vacinar.  Nas palavras do articulista: 

"Tentamos combater a pandemia como não resolvemos as crises migratórias: julgamos que nada do que se passa "lá fora" nos incomodará. Mas, para o vírus não há muros ou o medo da morte no Mediterrâneo. Se não for a Ómicron a recordar-nos será outra variante qualquer". (...) "Mas, se o egoísmo mata, não deixa de ser lucrativo. E para boa parte dos governo o poder das farmacêuticas conta mais que o interesse comum".         

Moral desta história: quando virem o Costa, com ar circunspecto, a anunciar mais vacinas e mais um confinamento, pensem naqueles que nem sequer a primeira dose da vacina tomaram...

2021/12/15

It's a Pandemic, Sir!

O Intercidades, que liga Lisboa a Faro, tinha acabado de entrar na plataforma 4, como é habitual. Eram cerca das 13.45h e dirigi-me calmamente para a carruagem 81, a última da composição, normalmente ligada ao bar do comboio. Preparava-me para entrar, quando ouço uma voz em altos gritos: "Senhor, senhor, não pode entrar! Estão a fazer a limpeza da carruagem".  Acenei para o homem à distância e fiz-lhe um sinal que estava tudo bem. Afinal, ainda faltava meia-hora para a partida...

Enquanto consultava as mensagens no telemóvel, o mesmo homem (conductor) passou por mim aos gritos: "já pode entrar, já pode entrar!". Muito bem, respondi e dirigi-me para o meu lugar, que ocupei de imediato. O comboio, só sairia às 14.15h. Um ritual, que sei de cor, após anos a fazer este percurso. 

Em Albufeira, começaram a entrar os estrangeiros, como é habitual naquela estação, tendo o conductor dado início ao controlo dos bilhetes. Quando chegou a minha vez, depois de examinar o bilhete (tenho desconto de 50%) pediu-me o Cartão de Cidadão, só "para confirmar a idade"...

Lembro-me de ter adormecido, algures durante a travessia da serra algarvia. Já perto da Funcheira, fui acordado pelo referido conductor aos gritos: "O senhor tem de colocar imediatamente a máscara!". O homem estava a metros de mim e, sem saber a quem ele se dirigia, perguntei se estava a falar comigo. "Sim, é com o senhor, mesmo. A máscara é obrigatória e tem de cobrir o nariz!". Fiz-lhe um sinal de concordância e, ainda meio aturdido, puxei a máscara para cima.

Já acordado, fui ao bar beber um café e voltei ao meu lugar, onde iniciei a leitura de um livro, agora com máscara e óculos postos. Porque os óculos se embaciam, sempre que ponho a máscara, baixei ligeiramente a dita, mantendo o nariz de fora. A coisa, durou até Grândola, quando o homem, surgido detrás de mim, gritou-me ao ouvido: "O senhor tem de ter o nariz coberto e já é a segunda vez que o aviso! Não volto a avisá-lo outra vez!". 

Levantei-me, dirige-me ao sujeito e perguntei-lhe, já alterado: "Ouça lá, você fala assim com todas as pessoas? Aos gritos e dessa forma autoritária? Quem julga você que é? O dono do comboio? Isto aqui não é um nenhum quartel e muito menos uma escola primária!". O homem, olhou para mim, com os olhos muito abertos. Continuei: "Você pode dizer as mesmas coisas em tom cordial e pedir as pessoas para manterem a máscara. Qualquer pessoa percebe e não há nenhum problema nisso. Não gosto de pessoas autoritárias e, se volta a falar nesse tom, comigo não resulta. E agora, vá bugiar" (confesso que o termo foi outro)! E voltei à leitura, com a máscara correctamente posta. 

O homem, deu dois passos para trás, pôs-se ao lado da minha cadeira e começou a digitar freneticamente no seu telemóvel. Continuei a ler, enquanto o observava pelo canto do olho. Ao fim de alguns minutos, alguém deve ter respondido do outro lado e ouvi-o dizer em voz alta: "Sim, sou eu, desculpa incomodar-vos, mas tinha aqui um passageiro que se recusava a pôr a máscara (!?). Entretanto, o senhor já corrigiu e agora está tudo bem. Podes desligar". Posto isto, desapareceu.

Estávamos já perto de Lisboa quando o zelote reentrou na carruagem e parou em frente a mim. Receei o pior. Afinal, era para repreender um estrangeiro (americano?) que, supostamente, não teria a máscara bem posta. O infractor olhou para o conductor, aparentemente sem perceber patavina e disse: "I'm sorry, I don't speak portuguese"...

"You, don't speak portuguese? But, you speak english, right?". O outro olhou para a namorada e para ele e retorquiu com uma calma imperial: "Yes, I do".

"Well, sir, then you must know, that according to the portuguese law, you're obliged to wear a mask that covers you nose, inside the train". "Ok, ok, don't worry...", disse o americano, obediente. O zelote olhou triunfante para mim e, qual Arquimedes maravilhado com a sua descoberta, repetiu para quem o queria ouvir: "It's a pandemic, you know. It's a pandemic, sir!". 

2021/12/10

Em Sevilha, a "movida" portuguesa...

Não é todos os dias que assistimos à promoção da cultura portuguesa no país vizinho. Neste campo, Sevilha, teve o privilégio de receber a visita de diversos "embaixadores" culturais da área da música e da literatura, que ali se deslocaram no espaço de duas semanas. 

Tudo começou no dia 25 de Novembro, com o concerto "Todos os Nomes" pelo cantor Vitorino, precedido de leitura de textos de José Saramago, pelo actor António de La Torre, organizado com o apoio da Fundação Saramago, do Consulado de Portugal em Sevilha e da Universidade Sevilhana, no quadro do centenário do nascimento do escritor José Saramago. Um excelente concerto onde o cantor, acompanhado pela formação habitual (piano, acordeão, guitarra clássica e baixo)  apresentou temas do seu reportório, que incluiu modas alentejanas, tangos, música cubana e poemas de Lobo Antunes, entre outros. O concerto foi organizado no salão nobre do Consulado, por onde passam, anualmente, outros convidados das letras e da música portuguesa.  Seguiu-se, no dia 26, o concerto "Memorial Flamenco", também no Consulado Português, organizado com o apoio da Universidade de Sevilha, interpretado pelos músicos Vicente Gelo, Sebastian Cruz e Pau Vallet, em que foram interpretadas versões flamencas dos textos de Saramago.  Ambas as sessões, dedicadas ao escritor, contaram com a presença de Pilar Del Rio, viúva de Saramago e actual presidente da Fundação José Saramago, que se deslocou à capital andaluza para inaugurar o ano de comemorações do centenário. Os concertos tinham lugar à tarde, enquanto, de manhã, tinham lugar debates e sessões literárias, que decorriam na Universidade. 

Aproveitando a visita de Pilar Del Rio, o diário "El Pais", publicou uma extensa entrevista, onde esta revelou algumas das histórias menos conhecidas do grande público, como a da atribuição do Prémio Nobel, que ela soube antes do próprio laureado. A história, conta-se em poucas palavras: na véspera do anúncio do prémio, Saramago encontrava-se na Feira do Livro de Frankfurt, quando Pilar recebeu um telefonema da Academia sueca a perguntar pelo marido. Como este não se encontrava, o interlocutor anunciou-lhe que Saramago iria ganhar o prémio, mas pediu-lhe segredo, pois era ele que ia escrever o discurso oficial da Academia. Se soubessem na Suécia, quem a tinha informado, seria despedido. Pilar optou por não contar a conversa a Saramago, pois não queria que ele tivesse uma "noite agitada" e foi assim que, no dia seguinte, já a entrar no avião a caminho de Lanzerote, o escritor seria confrontado com a notícia, dada pelo seu editor da Caminho. 

Seguiram-se duas noites de Fado, respectivamente a 30 de Novembro e 1 de Dezembro, no âmbito de mais uma edição do Festival de Fado, organizado anualmente pela sala Lope de Vega, cujas primeiras sessões foram preenchidas por Carminho (em substituição de Katia Guerreiro, incapacitada por doença) e pela dupla Hélder Moutinho/Maria Emília, que constituiriam a grande surpresa da noite. Enquanto Carminho, (que é visita regular do Lope de Vega) conta com um público fiel, Moutinho e Maria Emília cantaram em Sevilha pela primeira vez. Perante uma sala bem preenchida, os fadistas apresentaram-se simultaneamente em palco, onde foram acompanhados pelo trio habitual de Hélder, entre os quais se deve destacar o notável Ricardo Parreira, uma caso sério na guitarra portuguesa. Excelentes, as actuações de ambos os cantores, que se apresentaram em palco em "modo" flamenco, (sentados em fila), numa encenação arriscada (o fado canta-se, normalmente, de pé)  que aqui resultou em pleno. Bom concerto, amiúde sublinhado pelo público presente com "olés" de agrado, o que prolongaria a sessão para além das duas horas, com direito a vários "encores". A canção lisboeta ganha, deste modo, mais adeptos em Sevilha, que não regateiam aplausos aos intérpretes que, por aqui, têm passado.  

Finalmente, e de novo nas instalações do Consulado de Portugal, está prevista para a próxima semana, a visita do escritor Luís Peixoto, que ali irá apresentar o seu último livro (auto-biografia). 

Duas semanas de excepção, numa cidade habituada à "movida" cultural, agora com  maior contribuição da cultura portuguesa. Não há fome que não dê em fartura...

2021/11/16

Sob o signo da memória histórica

Oitenta e cinco anos depois da guerra civil em Espanha e dos crimes cometidos pela ditadura franquista que se seguiu, a sociedade espanhola continua presa aos fantasmas, nunca esconjurados, que teimam em regressar sempre que a memória é mais forte que a "lei del olvido" instaurada com a democracia.

Esta é uma consequência da Lei de Amnistia, aprovada em 1977, que procurou, numa sociedade dividida e traumatizada por 40 anos de ditadura, inculcar a ideia de que todas as vítimas eram iguais, já que houvera mortos dos dois lados...

Não é verdade e os saudosistas da ditadura sabem-no bem. Por isso, tentam escamotear a verdade dos factos, criando a falsa ideia de que a memória não deve preocupar-se "apenas" com os 115.000 mortos fuzilados e enterrados em milhares de valas comuns, mas com todos os mortos, procurando dessa forma minimizar as responsabilidades da ditadura. Como se morrer em combate ou assassinado com uma bala na nuca, seja a mesma coisa. Nunca o será. 

Para lembrar esta verdade dramática, que envergonha o país com mais valas comuns em todo o Mundo (depois do Camboja) foi criada, em 2000, ano da descoberta das primeiras valas, a ARMH (Associação Recuperação Memória Histórica de Espanha), que conta hoje com centenas de núcleos espalhados por todo o território espanhol, continuando o hercúleo trabalho a que se propôs: encontrar e desenterrar os mortos assassinados pela ditadura franquista e prestar-lhe a homenagem a que têm direito, como vem sido exigido pelos familiares das vítimas. 

Neste contexto, diversos foram os eventos, marcadas para a semana de 8 a 15 de Novembro último, nomeadamente em Sevilha, epicentro das manifestações onde o tema da memória seria mais uma vez escrutinado

A primeira destas manifestações, teria lugar durante o Festival Europeu de Cinema de Sevilha, onde foram exibidos dois filmes marcantes: "Horacio, El Ultimo Alcalde" (de María Rodriguez e Mariano Agudo) sobre a figura de Horacio Hermoso Araújo, o último alcaide de Sevilha, assassinado e enterrado numa das valas comuns do cemitério da cidade; e "Pico Reja, la verdad que la Tierra Esconde" (de Remédio Malvárez e Arturo Andújar) sobre a vala Pico Reja, situada no cemitério da cidade, onde se supõe estarem enterrados mais de 2000 corpos. Uma sessão histórica, no clássico teatro Lope de Vega, que contou com a presença de Horacio Filho, o guardião da memória de seu pai, que subiu ao palco debaixo de uma estrondosa ovação. Igualmente presente, a cantora flamenca Rocio Marquez, que interpreta o tema musical do filme. Cá fora, esperavam-nos dezenas de activistas e familiares que, nessa noite, encheram a sala do velho teatro, exibindo retratos dos familiares mortos. 

Outro momento marcante, seria a visita guiada à vala de Pico Reja, no cemitério de San Fernando onde, desde 2019, decorrem as escavações e exumação de milhares de corpos. Os técnicos presentes  (arqueólogos e antropólogos forenses), falaram em mais de 1800 corpos encontrados até ao momento. Impressionante a visão daqueles esqueletos amontoados, a maior parte deles deitados de boca para baixo, sinal de que tinham sido fusilados à queima roupa (muitos dos crânios apresentam perfuração de balas), para além de outras escoriações, visíveis nos ossos, das torturas a que foram sujeitos. Uma visão macabra e de indignação, que o director da equipa de escavações, Juan Manuel Guijo, sublinhou no final da visita, ao referir que, para além da indignação, havia que preservar a memória, única forma de combater a injustiça no futuro. Do grupo de visitantes, fazia parte uma delegação de militantes Zapatistas de Chiapas (México), em visita a Andaluzia, que tomava nota de todas as informações prestadas. 




Finalmente, a grande manifestação de sábado passado, uma iniciativa conjunta da Coordenadora Andaluza pela Memória Histórica e Democracia e da Assembleia Memorial Andaluza, que reuniu cerca de 5000 pessoas, vindas de toda a Andaluzia, para exigir ao governo da região a aplicação de medidas prometidas e consignadas na Lei de 2017, aprovada por maioria no executivo anterior (PSOE). O actual executivo, uma coligação de direita e extrema-direita (PP, Ciudadanos e VOX)  recusa a "Lei da Memória Histórica" e quer substitui-la pela designação "Lei Inclusiva", forma encontrada para pôr no mesmo plano vítimas e algozes. Sob as palavras de ordem "Verdade, Justiça, Reparação", a marcha percorreu os dois quilómetros que separam a Praça Nova do Palácio de São Telmo (sede do poder executivo), onde, num palco improvisado, discursaram a presidente da Coordenadora e o ex-magistrado Baltasar Garzón. Este último, que leu o Manifesto apresentado pelas associações organizadoras da marcha, reforçou as exigências da Coordenadora, acrescentando que "A lei deve estar acima da ideologia do momento. Os governos, o que têm de fazer, é aplicá-la, em respeito pelas vítimas. E há que reivindicar essa memória, que todavia custa a muitos reconhecer".

Uma semana inesquecível, em defesa de uma memória que urge preservar.

2021/10/28

Venham as eleições!

foto JN

O que ontem assistimos, não foi bonito de ver. Ninguém estava à espera de uma crise institucional, ainda que os sinais da crise estivessem aí há muito tempo. Só não dava por eles quem não queria vê-los. Era por demais evidente o desgaste do governo neste último ano e todos os sintomas de "fim de ciclo", desta governação, apontavam na mesma direcção. Nada que analistas de vários quadrantes não tenham previsto, logo em 2019, quando a constituição de uma segunda "Geringonça" falhou e o PS não conseguiu obter a maioria absoluta. Marcelo Rebelo de Sousa (o analista-mor do reino) chegou a profetizar que, a meio do mandato, por volta das eleições autárquicas, seria o momento de ruptura mais provável...

Bem, a ruptura aconteceu e, agora, não faltarão as acusações do costume, pois ninguém quer ficar mal na fotografia e há que culpar o "outro", ainda que não haja inocentes nesta história. 

Relembremos o óbvio: a "Geringonça" só existiu (por acordo escrito imposto por Cavaco Silva) entre 2015 e 2019. Ainda antes das eleições de 2019, o PCP recusou mais acordos escritos e o PS recusou reeditar a "Geringonça" apenas com o BE. 

Portanto, formalmente, nunca existiu uma "Geringonça" entre 2019 e 2021. Houve, sim, negociações entre os três partidos (PS, PCP e BE) e acordos pontuais, que resultaram (ou não) durante a legislatura, o que é natural entre partidos que têm ideologias e projectos políticos diferentes.  

Ou seja, qualquer dos partidos era (é) livre de defender os seus pontos de vista (leia-se princípios) sem qualquer compromisso à priori. Foi isso que aconteceu durante a negociação do Orçamento e isto é uma coisa natural em democracia. Como diria o outro "é a democracia a funcionar". 

Foi mau? Foi. Ninguém queria uma crise "nesta altura do campeonato". Acontece na maioria dos países europeus com democracias e parlamentos consolidados e não vem daí mal ao Mundo. Na Holanda, as últimas eleições foram há 7 meses (sete!) e ainda não conseguiram constituir governo; a Bélgica esteve cerca de 2 anos sem governo (dois!); A Alemanha teve eleições há mais de um mês e os partidos vencedores (3) ainda não conseguiram formar governo.  Alguém morreu por isso? 

A verdade é que a erosão governamental era visível e era previsível que, mais cedo ou mais tarde, a crise surgisse. Surgiu agora, provavelmente por calculismo político de alguns partidos (governo incluído). É caso para dizer que "vale mais uma boa crise do que uma má solução". 

Restam as eleições. Venham as eleições!

Instantâneos

Há dois momentos, fixados nestas duas fotos que roubei daí algures, que, por uma vez na vida, valem mais do que mil palavras. 

O primeiro é o momento da votação do OE2022. A foto é da SICN. NUNCA me passou pela cabeça ver o PCP e o BE a votarem ao lado do Ventura. NUNCA ! Por mais retórica que despejem sobre a decisão, a nós, só nos resta concluir uma coisa: estão loucos!

E para que o jogo da política ficasse ontem completo, tivemos este outro momento, fixado nesta outra foto. Marcelo PR passa a ronda ao palácio (a foto é do DN.) Aproveita para pagar não sei o quê no Multibanco e leva um batalhão de jornalistas atrás. Não abre boca. Para quê? "Meninos, entregaram-me o controlo das operações (como se eu já não tivesse pouco...) e, agora, obrigadinho ó PCP e BE!" Parece ele dizer, enquanto certamente ri, cínico. A máscara não deixa ver com clareza...


Bonito serviço! Agora vou ali ter um AVC e, se escapar, vou finalmente cuidar da horta...


2021/10/25

E agora?

António Costa, ao não querer repetir a experiência da "Geringonça" em 2019 (talvez pensando que poderia obter uma maioria absoluta do seu partido nas eleições desse ano) sabia que teria sempre de negociar (à esquerda ou à direita), caso o PS tivesse uma maioria relativa.

Como também anunciou não querer fazer acordos à direita, depois de serem conhecidos os resultados eleitorais de 2019, só lhe restava a esquerda para negociar. Ele próprio o declarou em plena Assembleia da República.

Bom, houve negociações à esquerda (como de resto já tinha havido em 2020) com a diferença que o OE do ano passado foi aprovado (devido à abstenção do PCP) e, o deste ano, corre o risco de ser chumbado, devido à reprovação do PCP. O BE já estava fora das negociações, pelo que o governo não contava com os seus votos e só restava o PCP/Verdes e os pequenos partidos (PAN, independentes) que anunciaram a sua abstenção. Em termos aritméticos, são votos insuficientes para aprovação do Orçamento. 

Tudo aponta para o chumbo deste Orçamento, o que poderá levar o Presidente da República a dissolver o parlamento e a convocar novas eleições. Não é formalmente necessário (em caso de reprovação, o governo poderá apresentar uma 2ª versão deste OE), mas Marcelo já anunciou a sua intenção: não há Orçamento, haverá Eleições. 

Conhecidas todas as posições, a menos de dois dias da votação final, surgiram as reacções esperadas: os partidos, à esquerda do PS, culpam o governo por ser inflexível e não atender às exigências apresentadas; o governo (PS) culpa o BE e o PCP/Verdes, por defenderem exigências maximalistas (leia-se irrealistas) ao não terem em conta o período pós-pandémico que atravessamos, o qual não contempla mais despesa (leia-se dívida e déficit) que "desagrada" a Bruxelas. A direita, no meio de uma crise interna dos seus principais partidos (PSD e CDS) deseja eleições, mas sabe não estar preparada e, dificilmente, voltará ao poder. O único partido que poderia ganhar algo com novas eleições, seria o "Chega", que não tem qualquer proposta séria, mas está interessado na confusão, apanágio dos populistas de direita. 

Acontece que, independentemente do que possamos pensar sobre este episódio (que, de resto, nem sequer é novo na política nacional) não se percebe porque é que os partidos (organizações que representam interesses diferentes) hão-de ter opiniões semelhantes (!?). Para terem opiniões semelhantes, não eram necessários partidos. Bastava um, como na antiga União Nacional de Salazar, onde toda a gente estava sempre de acordo. Houve negociações e falharam. Paciência. É a democracia a funcionar, como diria o outro. Na próxima quarta-feira, saberemos o desfecho. 

2021/10/19

Taxi Driver (22)

Boa tarde. Então, para onde é a corrida? 

- Para a Buraca...

Nem de propósito. Eu moro na Buraca. É da maneira que fico já em casa...

- O Mundo é pequeno, é o que é...

E por onde vamos? A esta hora, sexta-feira à tarde, é um problema...

- Sim, pode ser complicado. Sugiro ir por Alcântara, até ao largo do Calvário e subirmos ao Monsanto...

Parece-me boa ideia. Então vamos lá ver como está a 24 de Julho...

- Costuma ser rápido...

Nunca se sabe. Ainda agora, estive a falar com um colega. Foi a Sacavém e voltou, perdeu mais de duas horas no trânsito e, no fim, ganhou 22 euros. Há dias, que nem vale a pena sair de casa...Esta semana, o trânsito tem estado um caos...

-Se fosse só esta semana...

Pois, está mau para toda a gente. Até para os Ubers. Metade da frota já foi à vida. O Cabify nem dois anos esteve em Portugal. Já desapareceu. Isto não dá para todos...

- Pois não, mas podia dar. Bastava que os direitos e deveres fossem iguais para todas as empresas. Não sei se sabe, mas a Uber (que é americana) paga ordenados miseráveis e tem a sede fiscal europeia na Holanda, para não pagar tantos impostos. Ganha nos dois lados: nos ordenados e na fiscalidade...

Claro que sei. Até sei como estabelecem os preços. Como não têm táximetro, o preço da corrida é calculado em função da distância e da proximidade a que se encontra o condutor do destino da viagem. Vou-lhe contar uma história que se passou comigo: aqui há tempos, duas senhoras estrangeiras perguntaram-me quanto custava para as levar a Cascais. Respondi que não sabia ao certo, pois o preço era o que o táximetro marcasse. Responderam-me que tinham perguntado a um chauffeur da mesma praça e este tinha dito "33 euros"...

- E o que é que lhes respondeu?

"Bom, nesse caso, levo-as a Cascais por 33 euros. Se for mais, não pagam o excesso!". Lá fomos e, quando chegámos a Cascais, o táximetro marcava 25 euros. "Quanto é", perguntaram elas? "São 33 euros". "33 euros? Mas o táximetro só marca 25euros!". "Pois marca, mas nós combinámos 33euros". Concordaram, contrariadas, mas deram-me o dinheiro. Eu aceitei, mas depois devolvi a diferença e disse-lhes: "Só pagam o que o táximetro indicar, esta é a regra. Não devem pagar mais do que está no táximetro". 

- Boa história. Fossem todos assim e o pessoal não preferia os Ubers...

Acha? Não sei se as pessoas preferem os Ubers. É mais uma "moda" e, nalgumas cidades da Europa, acabaram por sair, pois não estavam de acordo com as condições oferecidas...

- Lá está, os impostos...só ficam, onde os governos locais lhes facilitam a vida. Vamos ver com o Moedas...

O Moedas? O gajo promete mundos e fundos, mas tenho de ver primeiro. Para já devia regular o trânsito, que está uma barafunda, que faz favor...Depois, as ciclovias, a pior coisa que o Medina podia ter feito...

- Não gosta das ciclovias? Olhe que é melhor para a saúde (menos poluição, mais exercício físico...). 

Pois, poderá ser, mas Lisboa não é Aveiro, nem Portugal é a Holanda. Não se esqueça que, por alguma razão, Lisboa é a "cidade das sete colinas"! Quem é que vai andar a subir colinas nesta cidade? O senhor vê muitos ciclistas em Lisboa? Eu não vejo e ando no trânsito todo o dia. Vê é muitas trotinetes e bicicletas eléctricas, dos distribuidores da Uber, mas, esses, coitados, têm de trabalhar. Ninguém com juízo, vem andar de bicicleta para o centro de Lisboa. Para além disso, são um perigo, pois atravessam-se à frente dos automóveis e só causam acidentes! A maior parte deles, nem seguro têm. Chegam a andar com duas pessoas em cima de uma trotinete! Duas pessoas! E a polícia vê e não os multa! Uma vergonha. Se fosse um táxi, era logo mandado parar...

- Sim, em abstracto penso que as ciclovias podem ser uma boa alternativa, mas não em toda a cidade e se querem tirar os carros do centro, devem começar por melhorar os transportes públicos, os "interfaces" e o parqueamento, que é caríssimo.   

Claro, toda a gente que anda na cidade, sabe isso! Só o Medina, não percebeu. Não é para admirar, ele só andava de automóvel, com chauffeur. Por isso, perdeu as eleições. Só espero, que o Moedas seja melhor... 

- Bom, chegámos, fico aqui. 

Quem diria, eu moro nesta rua. Éramos vizinhos e não sabíamos...

2021/09/27

Autárquicas: quem dorme com o inimigo...

Como era previsível, a esquerda ganhou, mesmo tendo perdido; enquanto a direita perdeu, mesmo tendo ganho. O PS continua a ser o partido com maior número de câmaras a nível nacional, ainda que tenha perdido nas principais cidades (Lisboa, Porto, Coimbra, Funchal...). Surpreendente, foi a vitória de Carlos Moedas (PSD) na capital, um feudo socialista desde 2007 e que Fernando Medina (PS), apesar das boas sondagens, acabaria por perder já de madrugada. Um "balde de água fria" para os socialistas, que davam como certa a reconquista da capital, sempre importante em qualquer estratégia partidária. Para Rui Rio, esta é uma vitória de Pirro, pois passou a ter mais um concorrente de peso à liderança. O PCP, apesar de continuar a ser o terceiro partido com mais autarquias (18), não consegue reconquistar bastiões importantes na área de Lisboa (Almada, Barreiro) e perde Loures, Montemor-o-Novo, Vila Viçosa e Mora, apesar de reconquistar Viana do Alentejo e Barrancos. O BE, tradicionalmente fraco nas autárquicas, não concorreu a dois terços das autarquias, mas conquista vereadores em Lisboa, Porto, Almada e Oeiras, mantendo-se como a terceira força partidária a nível nacional. Já o Chega, passado o período "novidade", teve um crescimento relativo a nível nacional (4,7%), ficando aquém das expectativas geradas pelo seu líder, ao não conseguir vereadores nas principais cidades, ainda que tivesse ficado à frente do CDS, PAN e IL, os seus competidores mais directos. 

Contas feitas, estes resultados foram um "cartão amarelo" ao governo de António Costa, que nos últimos dois anos cometeu erros de palmatória, ao alimentar uma rede de clientelas nefastas e mantendo em função ministros que há muito ultrapassaram o prazo de validade. Na capital, deslumbrado com a "galinha de ovos de ouro" do turismo, Medina pagou caro os erros urbanísticos e a cedência à especulação imobiliária, que expulsou dos bairros históricos os residentes tradicionais. Sem população, não há votantes e sem votantes é mais difícil ganhar. Moedas ganhou nos bairros da classe média-alta de Lisboa (Estrela, Lapa, Alvalade, Areeiro, Restelo) e esses votos acabariam por ser decisivos numa vitória arrancada a ferros (34% versus 33%), contra todas as sondagens. Quem adormece com o inimigo, às suas mãos morre...

2021/09/25

Autárquicas: futurologia

Constatações:

As autárquicas, ainda que desvalorizadas, são sempre importantes: servem para dar "cartões amarelos" aos partidos do governo e mostrar tendências de voto.

No caso presente, o partido que governa (PS) poderá levar um "cartão amarelo", mas dificilmente levará um "cartão vermelho". 

O mesmo relativamente ao maior partido da oposição (PSD): poderá recuperar algo do que perdeu, mas insuficiente para causar preocupações a quem governa. 

Restam os outros partidos. Destes, a nível autárquico, só o PCP conta verdadeiramente, pois é o único que detém câmaras importantes. Os outros apenas concorrem a lugares de vereação. 

Contas feitas, o PS ganhará, ainda que possa perder. O PSD perderá, ainda que possa ganhar. O PCP, em curva descendente, dificilmente reconquistará as câmaras perdidas. 

Sobre os novos partidos (de ideias velhas) não é de esperar grandes votações. Já a sua importância na formação de vereações à direita, pode ser significativa. 

Mais dispersão de votos e maior abstenção é o mais provável nestas eleições.

Independentemente do resultado, o que interessa é votar. Contra a direita, marchar, marchar!  

2021/09/22

San Fernando de Cádiz: na Rota de "Camarón"

VIVER DEPRESSA, MORRER JOVEM 

José Monge Cruz (1950-1992), mais conhecido pelo seu nome artístico "El Camarón de La Isla" (o camarão da ilha) foi um cantor cigano de Flamenco. Considerado um dos maiores "cantaores" de sempre, colaborou e.o. com Paco de Lucía e Tomatito, três dos mais importantes intérpretes do revivalismo Flamenco da segunda metade do século XX. 

Nascido em S. Fernando de Cádiz, numa família Roma espanhola, foi o sétimo de oito filhos. A sua mãe, Juana Cruz Castro, "La Canastera", fabricava canastras que vendia no mercado local. O seu avó, José, alcunhou-o de "camarão", devido ao cabelo ruivo e à tez clara da sua pele. Após a morte do pai, quando tinha apenas oito anos de idade, o jovem "Camarón" viu-se na necessidade de ganhar a vida, o que fazia cantando em bares e paragens de autocarro, acompanhado pelo seu amigo de juventude, o famoso cantor flamenco, Rancapino.

Ainda jovem, começou a cantar na famosa "La Venta de Vargas", uma tertúlia flamenca, onde os aficionados do género se reuniam, para escutar os grandes cantores andaluzes que se deslocavam a San Fernando. Aí seria descoberto pelo empresário Miguel de Los Reys, que o convenceu a tentar a sorte em Madrid, para onde partiu em 1968 para se tornar cantor residente no famoso "tablao" madrileno "Torres Bermejas", onde permaneceu doze anos.

Durante a sua permanência no clube, conheceu Paco de Lucía, frequentador e acompanhante habitual de cantores residentes, com quem estabeleceu uma longa amizade. Juntos, gravariam um total de nove álbuns entre 1968 e 1977, numa das mais bem sucedidas parcerias da história do flamenco moderno. Durante esse período, viajaram e actuaram em inúmeras tournées dentro e fora de Espanha. Mais tarde, devido à carreira solista de Paco de Lucía, o cantor iniciou um período de colaboração com Tomatito, com quem gravaria os últimos álbuns. Voltaria a gravar com Paco de Lucía, no seu último disco "Potro de Rabia y Miel", datado de 1992, ano da sua morte.  

Em 1976, com 25 anos de idade, casaria com Dolores Montoya, uma cigana de La Línea de La Concepción, conhecida como "La Chispa". Quando se casaram, "La Chispa" tinha 16 anos. Tiveram quatro filhos.

Muitos consideram "Camarón" o solista mais popular e o mais influente "cantaor" (cantor) do período moderno do Flamenco, iniciado na década de setenta do século passado. Ainda que o seu trabalho tenha sido criticado por alguns tradicionalistas, foi um dos pioneiros na utilização de um baixo-eléctrico nas suas canções. Este foi um "point of no return" na história do Flamenco, que ajudou a distinguir o "nuevo" do "tradicional" Flamenco.

Na década de oitenta, no auge da fama, recebeu convites para se deslocar ao estrangeiro, que amiúde recusava. Das poucas vezes que aceitou, destaque para as históricas actuações no Madison Square Garden em Nova Iorque, no Cirque de L'Hiver em Paris e no Festival de Jazz de Montreux, onde foi apresentado por Quincy Jones, como o génio do Flamenco moderno. Estávamos em 1987 e, de todos estes concertos, há registos áudio e vídeo, que não mentem. Arrebatadora, a arte de Camarón. 

Nos últimos anos de vida sofreu diversos internamentos hospitalares, devido ao precário estado de saúde, deteriorado por uma longa vida de fumador e uso abusivo de drogas. Em 1992, Monge Cruz morreu de cancro de pulmão, numa clínica de Badalona (próximo de Barcelona), não sem antes ter gravado o seu último trabalho, sob a direcção e produção de Paco de Lucía. 

Foi sepultado numa cerimónia católica, no cemitério de San Fernando, como era seu desejo. No funeral, estiveram presentes mais de 100.000 pessoas, vindas de toda a Espanha. Nesse dia, 4 de Julho de 1992, a região autónoma da Andaluzia decretou luto nacional.

LA RUTA DE CAMARÓN

Esta foi a segunda vez que visitámos San Fernando, depois da malograda visita de 2018, quando a maior parte dos lugares de "peregrinação" (la ruta de Camarón) indicados pela "oficina de turismo" da cidade, estavam encerrados (era um sábado de Verão e as horas de expediente não se coadunavam com as nossas). Desta vez, confirmámos os horários e, após reserva gratuita "online", lá fomos ver o moderno "Centro Interpretativo El Camarón", inaugurado a 2 de Julho deste ano, dia da morte do cantor. 

"El Camarón" (Centro Interpretativo), é um museu multimédia, situado paredes-meias com "La Venta de Vargas", que serve refeições durante o dia e funciona como "peña" flamenca à noite. Um lugar mítico, por onde passaram inúmeras figuras do "cante" e onde o mais famoso filho da terra iniciou a sua carreira. Ao construir o Centro Interpretativo ao lado da "Venta",  a autarquia de San Fernando escolheu um lugar estratégico da cidade, já que os visitantes de carro, oriundos de Cádiz, têm de contornar a rotunda que antecede a Calle Real (via principal do burgo), onde está situada a Venta, o monumento a Camarón e, agora, o Museu. Só não visita os três lugares, quem não quiser. Para além destes três locais, "La Ruta", inclui mais três sítios de visita obrigatória: a Casa onde nasceu Camarón, situada no antigo bairro de pescadores; a "Frágua", onde a família possuía uma forja de ferreiro; e o mausoléu de Camarón, no cemitério da cidade.

Iniciámos a visita pela "Venta" à hora de almoço, quando o restaurante está a funcionar e os visitantes, nacionais e estrangeiros enchem o local para degustar o excelente menu e verem o pátio interior, pejado de cartazes e fotos alusivos à passagem de Camarón e outros ídolos flamencos. Ao lado do palco, a reprodução em azulejo da efígie do cantor, assim como um cartaz icónico, de uma homenagem feita poucos meses depois da sua morte, onde participaram os grandes nomes da arte flamenca. 

Porque o tempo o permitia, aproveitámos a hora da "siesta" para uma visita ao cemitério, situado na colina da cidade. Após algumas perguntas, foi fácil dar com o lugar. O mausoléu, encontra-se à entrada do lado esquerdo ("Não há que enganar", avisaram-nos). De facto. Um dos maiores mausoléus do cemitério, todo em mármore, onde se destaca, num pedestal, a figura do Camarón sentado, como estivera a cantar. A tumba estava coberta de flores e, pormenor curioso, nela se encontra também o seu irmão Manuel Monge, falecido em 2019, que víramos no documentário "A Lenda do Tempo", num longínquo Festival de Cinema em Roterdão. Apesar do calor, imenso àquela hora da tarde, não faltavam visitantes, a maioria estrangeiros. 

De volta à "baixa" da cidade, tempo para visitar o "Centro Interpretativo", onde uma longa fila de visitantes esperava a sua vez, pois as últimas visitas começam às 19h. Um edifício moderno, de dois andares onde, após uma breve introdução feita pelo guia, somos conduzidos ao primeiro andar. Neste piso, está exposta uma vasta colecção de objectos pessoais (cartas pessoais, documentos vários) e troféus diversos (discos de ouro, estatuetas, etc...) cedidos pela família, a troco de uma remuneração vitalícia. Para além deste vasto espólio, existem gravações em áudio e vídeo, que podem ser escutadas nos diversos "postes", espalhados por todo o andar. Há ainda ecrãs gigantes onde podem ser vistas imagens dos concertos mais icónicos do cantor enquanto, numa sala paralela, são exibidos adereços que Camarón utilizou em vida (trajes de actuações, sapatos, bonés, óculos, etc...). 

De regresso ao rés-do-chão, tempo para admirar a peça central da exposição, um mercedes-benz de luxo, que o cantor conduzia nas inúmeras digressões que fez por Espanha. Dado que o Centro se encontra em fase experimental, ainda não dispunha de uma loja de "souvenirs" a funcionar. Uma falta sem remissão, que nos obrigará a voltar a San Fernando, um destes dias. Sempre uma boa desculpa para revisitar os lugares por onde passou Camarón...

 

 

2021/09/17

Grândola: "Que é feito dos cantautores?"

Realizou-se no passado fim-de-semana, em Grândola, mais uma edição dos "Encontros da Canção de Protesto", uma iniciativa do "Observatório da Canção de Protesto" (OCP), organismo resultante da parceria entre a Câmara Municipal local, entidade promotora, a Associação José Afonso (AJA) a Sociedade Musical Filarmónica Operária Grandolense, os Institutos de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, o Centro de Estudos de Sociologia Estética e Musical (CESEM), o Instituto de Etnomusicologia (INET-md) e o Instituto de História Contemporânea (IHC). 

Trata-se de um projecto, lançado em 2007, então denominado "Observatório Mundial da Canção de Protesto" que, numa primeira fase, foi apadrinhado pela autarquia em exercício e que, posteriormente (2015) seria recuperado com o nome actual, agora mais consentâneo com os fins a que se propõe. "Os seus objectivos são o estudo, a salvaguarda e a divulgação do património musical tangível e intangível da Canção de Protesto, produzida durante os séculos XX e XXI, através da realização de iniciativas culturais diversas" (dos objectivos). 

Esta foi a terceira edição dos Encontros, pelos quais têm passado alguns dos intérpretes nacionais mais marcantes da "Canção de Protesto", a que alguns chamam "Canção de Intervenção", "Canção de Resistência" ou "Canto Livre", de acordo com a época e os intervenientes do género musical.  Depois da edição de 2020, marcada pela pandemia que obrigou ao cancelamento de vários concertos (ex. Sérgio Godinho), esta edição, que decorreu entre 10 e 12 de Setembro, cumpriu rigorosamente a programação anunciada, ainda que nem sempre dentro dos horários previstos. Uma pecha menor já que, uma vez em Grândola, era difícil sair e os "encontros" servem para isso mesmo: voltar a encontrar quem não víamos há um ano...

Do programa desta edição, destaque para a comemoração dos 150 anos do hino "A Internacional", evocado em quatro momentos distintos: uma exposição de cartazes alusivos, produzida pelo OCP, que podia ser vista no Parque Central da vila; o concerto "Se toda a gente se juntar" pelo Coro da Achada, com textos e canções da Comuna de Paris; o documentário "The Internationale" (Peter Miller) e uma sessão testemunhal, que teve a participação de António e Carlos Moreira, Paulo Guimarães, Samuel Quedas e Hugo Castro, que evocaram as suas experiências com o hino em debate. 

Das sessões testemunhais mais concorridas, as dedicadas a "Grândola" (canção) e à sua gravação nos estúdios de Hérouville, por dois cantores presentes, Godinho e Fanhais (ao tempo a residir em Paris), constituíram momentos de emoção e humor, com histórias desconhecidas do grande público. Destaque ainda, no âmbito dos colóquios, para a comunicação de Anthony Seeger (sobrinho do grande Pete Seeger) que, dos Estados Unidos, participou por skype numa das mais interessantes sessões do certame, subordinada ao tema" A função política e social da canção", que teve a colaboração de Diana Dionísio, Mário Correia e Carlos Calixto. 

Finalmente, a parte musical, sempre a mais aguardada e participada, já que pelos palcos montados para os Encontros, passaram alguns dos nomes míticos da canção: 

Destaque para as boas intervenções do duo Grace Petrie (canto e guitarra) e Ben Moss (violino), dois "folkies" de gema, que deliciaram a assistência com canções de autoria própria, a comprovar que, em Inglaterra, o revivalismo folk dos anos setenta, continua vivo e de boa saúde. Outra agradável surpresa, seria o grupo "Al Sur", de nome espanhol, mas de origem portuguesa, que interpretou em modo pop-rock, baladas e canções de diversos autores, e.o. Saramago e José Afonso. Bom projecto musical.

Os momentos altos da festa estariam, no entanto, guardados para o palco principal, com as actuações (na primeira noite) de Sérgio Godinho e os Assessores que, em versão electrificada, recordaram canções dos primeiros álbuns do cantor, provando que a inovação não é inimiga da tradição; depois, o grande concerto de sábado à noite, com a presença dos míticos cantores espanhóis Paco Ibañez, Luís Pastor, Quico Pi de La Serra, Bernardo Fuster e dos portugueses Carlos Alberto Moniz e Samuel Quedas que, conduzidos pelo mestre de cerimónias José Fanha, alternaram em palco, nalgumas das suas mais conhecidas canções. Finalmente, o concerto de encerramento, evocativo do cinquentenário do LP "Cantigas do Maio", que foi integralmente cantado por Francisco Fanhais e João Afonso, acompanhados musicalmente por Rui Pato e pela Sociedade Musical Filarmónica Grandolense. Melhor final, era impossível. 

"Que fue de los cantautores?" (Que é feito dos cantautores?), perguntava-se Luís Pastor no seu poema-manifesto, que vem declamando há décadas e voltou a cantar em Grândola. Bom, eles continuam por aí e não desistiram, como os Encontros de Grândola comprovaram. Resta saber por quanto mais tempo. Para o ano, há mais. 

2021/09/02

Theodorakis, a alma grega

A primeira vez que recordo ter ouvido música de Mikis Theodorakis (1925-2021) foi no Inverno de 1967. Vivia, então, num centro holandês em De Bilt (Holanda) onde refugiados de diversos países,  aprendiam neerlandês 6 horas por dia. Éramos cerca de duas dezenas de estudantes, entre os quais, um grego. Eu tinha recusado a guerra colonial e ele a ditadura dos coronéis. As afinidades eram muitas e a língua não era obstáculo, já que ambos falávamos inglês e estávamos a aprender uma língua comum. 

Nos poucos meses em que convivemos, vinha sempre à baila a situação em ambos os países, sujeitos a duas das mais cruéis ditaduras da Europa Ocidental. Também falávamos da oposição e das formas culturais, que essa resistência assumia. As músicas (da canção de denúncia ou de protesto) eram temas aflorados. Eu falava de José Afonso (recém-regressado de África, onde tinha sido banido do ensino) e ele de um certo Mikis Theodorakis (preso e deportado para uma ilha grega). Nenhum de nós tinha discos, muito menos gira-discos e a música dos nossos países não passava na rádio holandesa.  

Até que um dia...uma amiga holandesa, que morava nos arredores e era visita habitual do centro, surgiu com um LP na mão, acabado de ser editado pela His Master Voice/EMI holandesa. A capa era cinzenta, com olhos desfocados em fundo, encimados por duas filas de arame farpado. Tinha dois nomes escritos na capa: Mauthausen Cyclus e Mikis Theodorakis. Convidou-nos a ir a sua casa para ouvirmos o disco e lá fomos no mesmo dia. 

À medida que escutávamos as canções, interpretadas pela magnífica Maria Farandouri, o grego chorava de emoção e alegria, enquanto eu, sem perceber patavina, senti que algo de transcendente se passava. Uma verdadeira epífania. Por esses dias (inícios de 1968) Theodorakis seria libertado do degredo grego e a sua música passou a fazer parte das emissões de rádio holandesas que, dessa forma, prestava homenagem ao compositor e resistente helénico. 

Não demoraria muito a adquirir o meu primeiro gira-discos (modelo Philips, de plástico, com altifalante incorporado na tampa) tendo o Mauthausen Cyclus, sido uma das primeiras aquisições. Ainda o guardo, apesar de, posteriormente, ter comprado duas versões em CD: a original grega, adquirida no aeroporto de Atenas e uma edição alemã, intitulada "Mauthausen Cantata", esta mais longa, com versões cantadas em hebraico (Eli Noar Moav Veniadis), grego (Maria Farantouri) e inglês (Nadia Weinberg). A condução da orquestra é de Mikis Theodorakis, Alexandros Karozas e Yossi Ben-Nun. O CD inclui ainda um discurso, em alemão, de Simon Wiesenthal, o conhecido "caçador de nazis". Os arranjos são mais solenes e lentos, mas a beleza musical é, se possível, ainda maior. Um monumento musical. 

Reproduzo, em tradução livre, as palavras de Theodorakis, na contra-capa desta última edição: "Um bom amigo meu, o poeta Iakovos Kambellis, foi prisioneiro em Mauthausen, durante a II Guerra Mundial. No início dos anos sessenta, escreveu as suas memórias desse tempo, com o título "Mauthausen". Em 1965, também escreveu quatro poemas sobre este tema e ofereceu-me a oportunidade de musicá-los. Fi-lo com grande prazer, primeiro porque gostei da poesia dos textos e, segundo, porque eu próprio estive encarcerado durante a ocupação nazi em prisões italianas e alemãs, mas, fundamentalmente, porque estas composições dão-nos a oportunidade de lembrar às jovens gerações da história, a história que nunca deve ser esquecida. Primeiro e acima de tudo, claro, a "Mauthausen Cantata" é dirigida a todos aqueles que sofreram sob o Fascismo e o combateram. Devemos ter os crimes nazis, continuadamente, nas nossas mentes, porque esta é a única garantia e a única forma de assegurar que eles não se repitam. E nós podemos ver isso, todos os dias: que o fantasma do fascismo está longe de derrotado. Raramente mostra a sua verdadeira face, mas culturas e mentalidades Fascistas existem em todo o Mundo. Para nós, que tivemos de viver neste tempo de horror, a tarefa mais importante é a de proteger os nossos filhos contra este perigo". Mikis Theodorakis.

Theodorakis morreu, mas a sua obra é imortal. Certamente, o maior compositor grego do século XX e um dos maiores vultos culturais da Europa e do Mundo. Um gigante. O governo grego decretou três dias de luto nacional pela sua morte. É bom saber que há países onde os seus heróis são homenageados. 

2021/09/01

Do período clássico ao período barraca

A imagem clássica: o comboy (também conhecido como o “mocinho”, no Brasil), no fim da fita, cavalgava em direcção à luz do Sol, depois de derrotar os “maus”, sorriso sereno e espírito de missão cumprida. Banda sonora heróica, a fechar a cena. 

A imagem actual: o major general Donahue, no fim da fita, o último cowboy a sair do Vietname, perdão, do Afeganistão, “return to sender”, pela calada da noite, furtivo, câmara de infravermelhos. A banda sonora de fecho é dada pela voz do novo patrão talibã, que diz que se cá voltares levas um tiro nos cornos! Com as armas que cá deixaste! 

Yahooooo!!!

2021/08/17

Afeganistão (here we go again...)

Não há inocentes nesta história. 

De um lado, um povo (o afegão) que sempre deu "porrada a quem passa" (para citar o Zeca, a propósito de outro povo conhecido...). Deu porrada nos macedónios do Grande Alexandre, nos ingleses (sempre bons na política de dividir para reinar), nos russos (nessa altura ainda eram soviéticos) e, como não podia deixar de ser - "noblesse oblige" - nos americanos, republicanos e democratas. Um fartote. 

Os actuais Talibãs, (criados nas madraças do Paquistão) sempre lá estiveram, mas só começaram a ganhar notoriedade depois de apoiarem Bin Laden que, de guerrilheiro Mujahidin (aquele que combatia pela Jihad) contra os russos, passou a ser terrorista contra os americanos. Em rigor, o Bin (saudita) não gostava nada da monarquia do seu país, que acusava de ser aliada dos Estados Unidos da América, a quem comprava armas, a troco de petróleo.

Apoiado pelos Talibãs, que entraram no Afeganistão e tomaram conta do poder nos anos noventa, o Bin criou o Al Qaeda e fez do Afeganistão a sua base. Isto, até ao 11 de Setembro, quando os americanos, como represália aos ataques às Torres Gémeas, decidiram bombardear e invadir o país. Destruídas as bases do Al Qaeda, os Talibãs recuaram estrategicamente para as montanhas (Tora-Bora) e para as fronteiras do Paquistão, onde continuaram a alimentar a guerrilha até aos dias de hoje. A partir daqui, a história é conhecida. 

Com a saída dos americanos e a confusão instalada, assistimos ao reescrever de mais um capítulo desta triste história. Os "senhores da guerra" voltaram ao palácio real para uma "fotografia de grupo" e esperam agora que o seu governo seja legitimado pelo Mundo Ocidental e outros países (Irão, Russia e China) que necessitam de ter acesso aos "pipe-lines" da região para exportarem o petróleo e o gás natural. Isto para não falar das célebres papoilas que, desfeitas em pó, provocam alucinações. Ou pesadelos.