2009/05/24

Desenrascanço

Mãos amigas (como sói dizer-se...) fizeram-me chegar a referência de um site cuja leitura atenta parece revelar mais do que a curiosidade, divertida e anódina, poderia indiciar.
Dez palavras, diz o site, que fazem falta na língua inglesa. Por ordem de importância. E a palavra que, segundo os autores do site, mais falta faz na língua inglesa é, imaginem, desenrascanço! Assim mesmo, em português.
Uma qualidade que, sem dúvida, os portugueses sobrevalorizam, mas também subvalorizam.
Foi com base no desenrascanço --mais do que na cartografia, tenho quase a certeza...-- que os portugueses foram levados a desbravar novos territórios. Outras nações, à época mais ricas, com mais gente, maiores recursos, nem sequer o tentaram. Mas, os portugueses, na altura já certamente mestres na arte do desenrascanço, lá foram por aí fora. Não foi a cultura do conhecimento, da reflexão filosófica, a capacidade invulgar de organização ou a queda para o planeamento rigoroso que nos levaram a partir por aí. Foi este desenrascanço que nos conduziu mais longe porque, face ao desconhecido e à ausência de receita para o enfrentar, a capacidade de improviso era certamente a única resposta possível, era mesmo a resposta adequada.
Os portugueses são desenrascados por natureza, vá-se lá saber porquê. Não serão certamente os únicos, mas foram e são aqueles que, em determinado momento, melhor souberam usar essa capacidade.
O desenrascanço terá sido o factor chave que nos fez partir e foi, sobretudo, o método de eleição usado na resolução dos nossos desafios expansionistas. O feito foi inequívoco, mas os resultados finais do esforço ficaram-se pelo medíocre. O desenrascanço serviu-nos para atingir a costa do Malabar e sugar ao infiel os recursos abundantes, enquanto era fácil fazê-lo e o resto da malta andava ainda distraída. Quando se perdeu o efeito surpresa e o empreendimento se tornou mais complexo, exigindo mais organização e planeamento, outros tomaram conta das operações.
O exemplo da cortiça é também eloquente. Não é por acaso que o maior produtor e exportador do mundo de cortiça não tem um único centro de investigação sobre o produto e que o assunto raramente merece as atenções dos académicos. Não é por acaso que os produtos de grande valor acrescentado baseados na cortiça são raros. O ataque dos vedantes sintéticos deixou a indústria corticeira portuguesa com as suas debilidades totalmente à mostra... Enquanto se trata de desenrascar a extracção da cortiça e de produzir umas simples rolhas a coisa ainda vai. Quando o grau de rigor aperta e exige mais organização e menos desenrascanço, a indústria baqueia completamente. Numa área sem concorrência significativa, esta indústria não conseguiu passar da fase do desenrascanço.
É que os portugueses, e sobretudo os seus dirigentes, demonstram ao longo da história gloriosa um horror patológico ao planeamento e à organização. E o desenrascanço é uma espécie de desporto nacional e solução única para todos os nossos problemas. Os portugueses teimam em recorrer a uma solução, o desenrascanço, que serve nalgumas ocasiões, mas parece uma qualidade inútil (ou mesmo contraproducente) noutras.
Neste sentido, esta qualidade é manifestamente sobreavaliada por nós.
Mas, por outro lado, paradoxalmente o "génio" português não parece levar este assunto suficientemente a sério. Não soube nunca tirar partido duradouro deste seu talento e não conseguiu criar um "produto" que incorpore esta qualidade e se distinga pela presença implícita desta qualidade.
O MacGyver devia ser português!
Outros povos sabem valorizar as qualidades que os distinguem. Os alemães são frios pensadores e sabem organizar-se como ninguém. Os suiços são rigorosos e precisos. Os italianos têm um sentido estético sublime. Os espanhóis distinguem-se pela sua bravura e destemor. Os japoneses são exímios na extracção da essência das coisas. Souberam todos transformar essas qualidades em mais valias para a sua vida, souberam exportá-las ou acrescentar esse valor aos produtos por eles criados. Souberam inventar produtos que incorporam essas suas características. Um automóvel alemão ou um relógio suiço não são só parafusos e porcas. Um sapato italiano não é simples couro cosido. Um walkman não é só chips de silício.
Os alemães não são os únicos pensadores, os italianos não são os únicos estetas e os espanhóis não são os únicos bravos. Mas, todos eles conseguem reflectir na sua economia as suas qualidades únicas, que são tão estimáveis como o nosso desenrascanço.
Os portugueses esgotam-se na efemeridade do improviso, e o produto do seu labor desfaz-se antes dessa, digamos, marca de água deixar o seu cunho nos bens tangíveis por si produzidos. Não deixam lastro. Têm uma qualidade única que se perde no seu próprio exercício. Tocam uma espécie de jazz sem escola...
Nesse sentido subavaliam o impacto deste desporto do desenrascanço que tão bem cultivam.
O desafio tem, pois, de ser outro! Estará na altura de apostar na institucionalização a sério do desenrascanço. Está na hora de criar mais valia e enriquecer o país com esta qualidade. Esqueçam as perfeitas patetices que são o Allgarve ou o Portugal: West Coast da Europa, ou a aposta nas "novas tecnologias" como panaceia para os nossos males.
O que precisamos é saber aplicar correctamente a capacidade de desenrascanço portuguesa, institucionalizá-la e transformá-la numa prática sustentada e erudita. Nem que para isso os portugueses tenham que chamar alguém mais organizado para teorizar sobre o desenrascanço e ajudar a estruturar e planear a exploração dessa qualidade sui generis... Saibamos criar uma economia em volta desta nossa qualidade inata, em vez de impôr a criação de qualidades de que não fomos dotados, para servir conceitos económicos lambidos à pressa entre passagens administrativas, como agora se tenta fazer.
Desenrasquemo-nos! Mas, a sério...
Que diabo, até a Cracked Entertainement, editora de publicações de humor e proprietária do site Cracked.com, sendo uma empresa que se leva a sério, reconhece e valoriza perante os seus leitores esta qualidade e lamenta a falta do conceito na língua inglesa... Isto vale ouro meus amigos!

20 comentários:

José Mourinho disse...

"if it isn't cork, take a walk!"

Maria Ribeiro disse...

CARLOS:o desenrascançõ é pol´tica nacional!Basta olhar para esse circo que está a correr o país, na onda das "europeias"...Veja só como sócrates se desenrasca de toda e qualquer acusação... Enem é preciso falar dos "casos",que enchem as páginas dos jornais!
Abraço de lusibero

Rui Mota disse...

Não acredito que portugueses, como Vasco da Gama ou Pedro Álvares Cabral, fossem apenas aventureiros. Há muito trabalhinho na preparação daquelas viagens. Muito método, rigor e ciência. Logo, é possível. Devemos antes interrogar-nos porque é que perdemos essas qualidades. O Oliveira Martins dizia que a decadência de Portugal começou com o desaparecimento de D. Sebastião. Talvez...
Outras teses, mais recentes, apontam para períodos de domínio de uma determinada nação (os impérios) que se sucedem ciclicamente:
Foi assim com os Gregos (Alexandre), os Romanos, os Otomanos, o imperio britânico e, mais recentemente, o império americano. Os portugueses tiveram 150 anos de glória (entre os séculos XV e XVI) e, desde aí, nunca mais. Vêm aí os chineses e os indianos que, provavelmente, não chegarão ao século XXII. "É a vida", como diria um ex-primeiro ministro. O pior é não sermos capazes de manter-nos actualizados. Perdemos a "modernidade" e continuamos atados a preconceitos e "teias de aranha" herdadas da Inquisição e do fascismo que estão na cabeça da maioria da população. Perante as dificuldades, refugiamo-nos sempre na "fuga em frente", essa grande figura de estilo, cultivada por maratonistas e não só...

Iris Restolho disse...

Houve mesmo muito trabalho pr trás de Vasco da Gama, que aquela gente demorou como o caraças para descobrir o caminho marítimo para Índia, obrigando o rei a usar o Colombo como agente secreto e desviando o olhar dos Espanhóis para outro lado do oceano.

Isso não foi desenrascaço, foi fruto de muita determinação, planeamento e olho vivo.

Quanto ao resto, se sombra de dúvida que nos desenracamos muito, mas mesmo muito bem, basta ver como e que conseguimos viver menos mal, com o tão pouco que temos.

Carlos A. Augusto disse...

Essa do "método, rigor e ciência" ainda é uma questão para avaliar com...método, rigor e ciência. Não tenho dúvida que das viagens portuguesas resultou grande melhoria nos métodos de navegação e na cartografia, mas não podem ter sido (na minha opinião) esses os factores que determinaram o sucesso.
Isto porque as condições em que decorriam essas viagens e as enormes limitações dos conhecimentos nessa altura (mesmo com todo o "método, rigor e ciência" os conhecimentos eram altamente limitados!!) levam a concluir que seria a capacidade de invenção e o golpe de asa e de rins que prevalecia.
Se de tudo isso resulta depois conhecimento estruturado é outra conversa.
Os portugueses não foram os primeiros a aventurar-se (há _sempre_ uma dose enorme de aventura numa coisa como os descobrimentos...) mas foram os primeiros a ter enorme sucesso. E isso (é a minha tese!) deve-se ao enorme talento para ir navegando à bolina...
Já uma outra aventura como a exploração espacial não se faz à partida sem sólida organização. Ter de improvisar numa nave a milhares de quilómetros da Terra é mau sinal e só mesmo nos filmes...
Mas, nas Caraíbas ou nas Índias é possível e, como disse, em certa medida era mesmo a única solução.
A prova que esta capacidade é a que deve prevalecer no nosso "código genético" é que mesmo a estruturação do conhecimento que se dá posteriormente é feita por outros. Não produzimos um botânico, um zoólogo, nem tão pouco um cientista no campo das ciências sociais de nomeada. Outros países os produziram à custa dos conhecimentos que lhes proporcionámos. Nem as artes reflectem o império como noutros países. Ou seja: não aprendemos grande coisa com o empreendimento. Outros o fizeram e o nosso conhecimento vem deles e não da nossa experiência directa.
Já para não falar na exploração comercial de toda essa aventura inicial que ficou a cargo de comerciantes situados um pouco mais a norte, que tinham outros métodos de trabalho...
O atavismo que referes tem se calhar origem nessa nossa incapacidade em transformar o "desenrascanço" em algo mais profundo, ou como digo no post, numa prática mais erudita. Se tivéssemos conseguido reflectir sobre o nosso desenrascanço a coisa teria sido certamente diferente.

GK disse...

Admito que o desenrascanço em doses moderadas é óptimo... Agora, quando SE VIVE assim... PASSO-ME!!! E há EMPRESAS a serem geridas assim... Christ!

Anónimo disse...

Pronto, tá bem, podemos teorizar sobre o desenrascanço durante meses, se é ou não um atributo português, etc., etc.. Mas a única coisa que verdadeiramente me impressionou neste post foi o comentário de GK. Bom, não foi propriamente o comentário, foi a própria GK... por certo, muito longe do espirito do "desenrasca", GK reune atributos visuais e intelectuais que me parecem de grande qualidade. E quem será GK? E quem serei eu para perguntar tal coisa? Uma coisa é certa: a partir de agora GK terá sempre a minha máxima concordância (nem que seja apenas virtual, como GK o poderá ser também), a minha admiração e tudo o que lhe aprouver.
GK você, neste site um pouco caduco e senil, é mesmo uma miragem, um milagre estético. Obrigado!

Carlos A. Augusto disse...

"Site caduco e senil"?!
Só vejo uma coisa caduca e senil aqui: este comentário!
A GK que me desculpe... Não era propriamente este o tipo de diálogo que desejava.

Rui Mota disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rui Mota disse...

O anónimo escreveu "site um pouco caduco e senil". É só "um pouco". Não é grave.

Anónimo disse...

Obviamente que também assumo a minha parte de senilidade (talvez precoce) e alguma caducidade (sobretudo nos prazos do IRS). Aliás, nada mais caduco, decadente e senil que a própria blogosfera: só serve para quem já está reformado ou para quem é deputado, de preferência europeu. Ou ministro da economia também. E procurador-geral adjunto. Bem, não interessa.
O que me traz aqui, uma vez mais, é apenas e só GK. Mas diga-me, GK, você é apenas uma miragem, é o Carlos Augusto disfarçado de Monica Belluci, é virtual, ou existe mesmo? Se existe mesmo, tem-me desde já a seus pés. E, para acabarmos de vez com esta senilidade e caduquice que por aqui paira, combinemos um jantar. A escolha é toda sua. O seu bom gosto será, por certo,insuperável. Fico à espera...
NOTA: e não dê ouvidos ao "coro das velhas" ou a estes velhos do Restelo que por aqui vão fabricando algumas ideias interessantes, algumas tricas já gastas e um moralismo às vezes beato, que apenas perturbará um simples jantar entre GK e um anónimo que não pretende ser mais do que isso.

Carlos A. Augusto disse...

Pois, pois! O anónimo é bi-sexual...

sem eira nem beira disse...

BBC Alentejo CorkUm belo documentário que passou na sic há pouco tempo.

Rui Mota disse...

sem eira nem beira:
Bom documentário, sim senhor! Obrigado pela dica.

Anónimo disse...

Carlos Augusto: sou bi-sexual?? Então? Explique lá isso melhor, ou é só para pôr um qualquer rótulo modernaço?
Bi-sexual, eu?!? Se ainda fosse tri-sexual (de ménage à trois), aceitava, agora bi...e, já agora, o Carlos Augusto, é quê? Ou a rotulagem é só para terceiros?
Anónimo que gosta da GK, a avaliar pela piquena foto...

Carlos A. Augusto disse...

Eu, caríssimo anónimo, eu sou hexasexual. A caminho do hepta! Nem tri, nem tetra, nem penta. Menos que isto já não me satisfaz...

Anónimo disse...

Pronto, temos conversa. Perguntei porque me "acusou" de ser bi-sexual e você não responde. Porquê? E porquê? Fico a aguardar o seu esclarecimento, pois de si não espero outra coisa.
Anónimo sexual

Carlos A. Augusto disse...

Anónimo sexual,
Não temos conversa não! O tema aqui é "desenrascanço".

Anónimo disse...

Porra, você afinal tem a escola toda! O bloco central precisa de gajos bons como você. Eu continuo a perguntar porque me chamou bi-sexual. Nada mais. Ó homem, só quero que me diga isso. Tenho direito a saber, acho eu.
Anónimo a fazer figura de parvo

Carlos A. Augusto disse...

Eh pá já chega...!!