2014/10/21

Outono quente, cinema brilhante



Não se podem queixar os cinéfilos portugueses neste reinício da temporada, agora que as salas da capital iniciaram a sua programação habitual. Assim, ao correr da pena, eis alguns dos filmes mais marcantes, actualmente em exibição em Lisboa:
Ciclo dedicado ao indiano Satyajit Ray, com a apresentação de seis títulos da sua vasta obra, todos em versão restaurada, no cinema Nimas.
"Festival do Cinema Francês", a decorrer em diversas salas onde, entre outros, passam as duas últimas obras de Alain Resnais (recentemente falecido) e o novo filme de Mathieu Amalric.
A continuação da saga alemã "Heimat" (partes 1 e 2) de Edgar Reitz, agora em versão cinematográfica, no cinema Monumental.
A 12ª edição do Festival Internacional de Cinema (DOC's) com sede na Culturgest e sessões, e. o, no S. Jorge e na Cinemateca, a decorrer até ao próximo domingo.
Permanecem ainda, em cartaz, os filmes portugueses, "Os Maias", de João Botelho e "Os gatos não têm vertigens" de António Pedro-Vasconcelos e, para o próximo mês, já se anuncia o Festival de Cinema Estoril-Lisboa, este ano com surpresas várias, entre as quais o semiótico e activista Chomsky e o jornalista, exilado na embaixada colombiana em Londres,  Assange (!?)...
Entre a vasta escolha, e porque o tempo não dá para tudo, algumas impressões, necessariamente breves sobre alguns dos filmes vistos: de Satyajit Ray, o mestre do cinema indiano, os clássicos "A Grande Cidade" (1963) e "Charulata" (1964), obras maiores deste ciclo, onde, de forma magistral, Ray analisa as contradições da sociedade indiana pós-colonial, em retratos críticos, mas sempre humanos, nos quais os dramas individuais são, muitas vezes, resolvidos pela tolerância e o amor entre os personagens. Magníficos quadros de uma sociedade de classes, onde as castas e a crítica mordaz ao ex-colonizador e seus costumes, são subtilmente introduzidos ao longo de histórias admiravelmente filmadas. Se o cinema é a "arte de contar histórias em imagens", Ray é o seu paradigma.
Depois, a grande festa que é o DOCs, hoje um dos melhores festivais de cinema documental europeu, com obras inéditas, que constituem o núcleo central da sua programação e ciclos temáticos, que incluem obras de renome em reposição. Destaque para a retrospectiva do documentarista holandês, Johan van der Keuken, do qual são exibidos 23 títulos, num dos maiores ciclos desta Mostra. Revimos "De weg naar het Zuiden" (O caminho para o Sul) de 1981, uma longa reflexão (143') sobre as relações sociais e económicas entre o Norte e o Sul: de Amsterdão, ao Cairo, passando por Paris, a região do Drome, os Alpes e Roma, num filme "on the road" que permanece actual, apesar dos anos, entretanto, decorridos. Na próxima quarta-feira, dia 22, haverá uma mesa-redonda na Culturgest (14.30h.) sobre o significado da obra de Van der Keuken (um dos grandes documentaristas do século, nas palavras do director da Cinemateca) que contará com a presença da viúva e colaboradora (sonoplasta) do realizador.
Ainda no âmbito do DOC´s, vimos um bom filme francês "Brûle La Mer" (2014) de Nathalie Nambot e Maki Berchache, sobre a odisseia deste último, um jovem tunisino que, após a "Revolução do Jasmin", decide ir ter com um primo a Paris onde, após variadas e traumáticas experiências, opta por regressar ao seio da família. Filme iniciático que, mais do que relatar a vivência dos emigrantes ilegais em França, mostra de modo introspectivo o processo de libertação e auto-conhecimento de um jovem emigrante árabe.
Finalmente, duas obras seminais do "free cinema" britânico, corrente inglesa surgida na década de cinquenta, respectivamente "Together" (1956) de Lorenza Mazzetti e "We are the Lambeth Boys" (1959) de Karel Reisz que, conjuntamente com Tony Richardson e Lindsay Anderson, foram os nomes mais importantes desta geração. Trata-se de dois pequenos documentários de 50', filmados a preto e branco, sobre a Londres dos anos cinquenta, fortemente influenciados pelo realismo italiano da década anterior.
Para quem tiver tempo e disposição (o filme dura 338 minutos!), não podemos deixar de recomendar o filme "Mula sa Kung ano ang noon" (From what is before) de 2014, do filipino Lav Diaz, já considerado um dos filmes do ano. Apesar de Diaz continuar a ser um desconhecido em Portugal, ele é, muito justamente, considerado um dos grandes directores da actualidade. Ver os filmes de Diaz (não raramente abaixo das 4 horas de projecção) é sempre uma experiência devastadora. A não perder!
E pronto, por aqui ficamos, que as próximas sessões começam dentro de momentos...

6 comentários:

Carmo da Rosa disse...

Aqui tens:

http://www.dagelijksestandaard.nl/2014/10/isis-beesten-stenigen-jonge-vrouw-in-syri

um ‘drama individual resolvido pela tolerância e o amor entre os personagens.’ Mas aviso já, faz parte dos dramas que tu nunca abordas...

rui mota disse...

Eu não escrevi sobre a realidade da Índia hoje (que aliás é complexa e não unidimensional). Eu escrevi sobre dois filmes de ficção, feitos por um autor de cinema. O que me interessou foi o filme, em tanto que objecto cinematográfico (contar uma história através de imagens) e não do que eu gostaria (ou não) de ver nele. Para isso, existem as reportagens televisivas e o documentário, que não é a mesma coisa que cinema. Estamos a falar de duas coisas diferentes.

Carmo da Rosa disse...

"Estamos a falar de duas coisas diferentes.

Sim, é verdade, estamos a falar de coisas diferentes: tu falas de umas coisas para não ter que falar nas outras. Eu continuo a falar nas outras, como no tempo da outra senhora, porque me parecem mais urgentes… :-)

rui mota disse...

Eu falo (escrevo) sobre o que quero. É para isso que existe a liberdade de opinião. Também acho muito bem que fales nas outras (coisas) do "tempo da outra senhora"...O que prova, em última análise, que determinadas coisas não mudaram tanto assim...

Carmo da Rosa disse...

Precisamente, determinadas coisas não mudaram, creio que até estão piores que no tempo da 'outra senhora'….

rui mota disse...

Concordo. Uma regressão, em determinados aspectos. O Mundo tornou-se um lugar perigoso, como diza o outro. Demasiado poder em poucas mãos e nem sempre nas melhores, como sabemos. Aparentemente, a informação generalizada, não tem contribuido para melhorar o ser humano, quando devia ser o contrário. Uma lástima. Valham-nas as "Malalas" deste Mundo.