2019/05/02

Espanha: Recuperar a memória


Dia 27 de Abril, 12 horas da tarde. Uma vintena de homens e mulheres, concentram-se junto à entrada principal do cemitério de S. Fernando, em Sevilha. Transportam cartazes e fotos de familiares, que dispõem ao longo do gradeamento, enquanto um dos presentes coloca, a seu lado, uma bandeira republicana. Motivo: assembleia mensal do núcleo local da Associação de Recuperação da Memória Histórica (ARMH) que, excepcionalmente, reúne naquele lugar, devido à proibição de manifestações públicas em véspera de eleições, "dia de reflexão". Têm mais de cinquenta anos em média e partilham histórias, relacionadas com amigos e familiares desaparecidos, a maior parte deles executados e enterrados em valas comuns, durante a ditadura franquista. Muitas dessas vítimas estão neste cemitério, em 8 dessas valas, duas das quais já foram prospectadas. A reunião tem lugar em frente à vala 7, onde se encontram "dissidentes e judeus". Um verdadeiro "buraco negro", silenciado pela repressão fascista que, mais de 40 anos depois, permanece um dos temas malditos da democracia espanhola. A razão deste "silêncio", conhecido pelo "pacto del olvido", reside na Lei de Amnistia, aprovada por todos os partidos parlamentares em 1977, segundo a qual "todos os funcionários e agentes implicados nas violações de direitos humanos durante o regime franquista, são amnistiados". O "ponto de retorno" nesta situação, dá-se a 5 de Março de 2000, quando, durante uma investigação para escrever um livro sobre a história do seu avô, Emilio Silva encontrou um homem que sabia onde o tinham enterrrado. O avô, republicano, fora assassinado por falangistas em 1936. Com outros 12 presos, que tiveram a mesma sorte, foi enterrado numa vala comum, em Priaranza del Bierzo, Léon. Conseguiu exumá-lo em Outubro desse ano, sem ajuda do Estado e com pouco eco mediático. Mas, o primeiro passo estava dado e a exumação dos que ficaram conhecidos pelos "Os 13 de Priaranza", abriu o debate na sociedade espanhola.
"Quando abrimos a vala, não estávamos conscientes do que ia acontecer, mas aquilo despertou o interesse da sociedade pela memória histórica, sem medos e com argumentos legítimos", conta Francisco Etxeberria, médico forense e professor da Universidade do País Basco, responsável pela exumação. "Que em Espanha existissem valas comuns, no monte, com pessoas assassinadas, cujo destino nunca fora investigado, despertou uma ideia de injustiça", explica.         
A partir daí, Etxeberria começou a receber telefonemas de pessoas que procuravam os corpos dos familiares, vítimas da guerra civil ou da ditadura e que faziam parte dos 115.000 desaparecidos do conflito. "A Espanha tinha milhares de valas comuns e ninguém falava disso. Eu próprio ignorava que houvesse gente enterrada fora dos cemitérios. Foi um choque", recorda.
Desse choque, nasceu um movimento civil que deu origem à ARMH, liderada por Emilio Silva e que se dedica à localização e exumação de valas comuns e a pressionar para conseguir o que estipula o direito internacional para as vítimas: verdade, justiça e reparação.
Em 2007, o governo de Rodriguez Zapatero aprova a Lei de Memória Histórica que, pela primeira vez, condena o franquismo de forma explícita. Entre outras coisas, estipulava uma "reparação moral das vítimas"; declarava a "ilegitimidade dos tribunais civis da guerra civil e das condenações por motivos políticos, ideológicos ou religiosos"; autorizava "a localização e a identificação de valas comuns"; determinava "a retirada dos símbolos de exaltação franquista"; definia que o Vale dos Caídos "não poderia exaltar a guerra civil ou a ditadura"; e garantia "o acesso a todos os arquivos públicos".
A Lei, seria contestada à direita (PP), que receava pelo julgamento de todos os responsáveis dos crimes franquistas e pela esquerda (PSOE) mais crítico, apesar da Lei nunca pôr em causa o "status quo" de uma elite franquista que continuava a existir. A Lei, seria igualmente criticada por não se adequar ao direito internacional, não satisfazer o direito da verdade e a reparação e justiça das vítimas.
Foi precisamente para tentar satisfazer esse direito à justiça que, em 2008, o juíz Baltasar Garzón abriu um inquérito e declarou que os abusos cometidos se enquadram no contexto dos crimes contra a humanidade. O Juíz atribuiu a Franco e a outros 34 dirigentes do regime, um plano de repressão e extermínio dos opositores, que terminou com mais de 100.000 desaparecidos (115.000 segundo a ONU) e se enquadra nos crimes contra a humanidade.  A Espanha é o 2º país do Mundo, depois do Cambodja, com o maior número de desaparecidos.  
O Ministério Público recorreu e pediu a anulação do caso, por considerar que os crimes prescreveram ao abrigo da Lei de Amnistia, de 1977. Fechava-se, assim, a porta ao julgamento.
Para Garzón, "a Lei da Amnistia, foi usada por sectores políticos e judiciais para evitar a investigação sobre os crimes do franquismo. É uma interpretação errónea, porque os crimes de lesa-humanidade não prescrevem". Afastado dos tribunais, após ter instaurado um processo ao PP por corrupção (caso Gurtel), o juíz Garzón ficou impedido de exercer a magistratura até 2012, quando foi absolvido. Entretanto, em 2010, dá entrada, num Tribunal em Buenos Aires, uma denúncia, que acusa o Estado espanhol de crimes de genocídio e contra a humanidade, com base no caso de Dario Rivas (um galego exilado na Argentina, cujo pai fora assassinado em 1936 e cujas ossadas foram recuperadas em 2005, juntamente com mais 318). As diligências do colectivo argentino de juízes (dirigido por Maria Servini), para julgarem os responsáveis espanhóis na Argentina, através de um processo de extradição, esbarraram sempre na recusa por parte do governo de Rajoy. Até hoje, nenhum dos imputados foi detido ou extraditado, apesar das pressões por parte de organismos como a ONU. O argumento era sempre a Lei de Amnistia de 1977. Foi este caso, denominado como a "Querella Argentina", que esteve na origem do celebrado documentário "El Silencio de Otros" de Almudena Carracedo e Roberto Bahar (2018). O filme, nomeado para diversos prémios, entre os quais o prestigiado Goya e o Óscar, para o melhor documentário estrangeiro, pode ser visto, actualmente, em diversas salas portuguesas.
Dezanove anos após a sua criação, a ARMH dispõe hoje de delegações em todo o território espanhol, conta com mais de 5000 voluntários (entre arqueólogos, antropólogos, médicos forenses e estudantes), tendo contribuido para a localização de 400 valas comuns e exumado mais de 150, num total de 1400 vítimas do franquismo. Uma tarefa ciclópica, muito longe de terminada e sobre a qual pesam dificuldades de todo o tipo, desde as orçamentais às políticas, os principais obstáculos à recuperação e preservação de uma memória que muitos pretendem esquecer.      
  
  

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