2020/02/24

Zambras Granaínas, Payos Flamencos

"Zambra" é o flamenco tradicional de Granada.
O seu "coração" situa-se no bairro cigano de Sacromonte, distrito de Albayzin, face ao Alhambra.
"Sacromonte" (a montanha sagrada) deve o seu nome a um cemitério muçulmano existente na área. Uma das suas características, são as habitações, escavadas na rocha, onde continuam a viver pessoas de etnia cigana, as famosas "caves". Vistas de fora, parecem casas normais, mas, uma vez dentro, apercebemo-nos da forma como foram construídas. As fachadas são parte integrante da rocha.
Após a conquista de Granada pelos reis católicos, os muçulmanos viram-se obrigados a abandonar as muralhas da cidade e a refugiar-se na "montanha sagrada". Uma vez aí, misturaram-se com os ciganos, uma tribo nómada que tinha chegado a Sacromonte anos antes, pelas mesmas razões. A partir de então, ambas as culturas coexistiram e misturaram-se em diferentes aspectos. Entre as muitas afinidades, o facto de serem considerados marginais, à luz da conversão iniciada pelo catolicismo. Em 1499, uma lei decretada pelos reis católicos, forçou os ciganos a abandonar a vida nómada. Por esta razão, e a posterior expulsão dos muçulmanos, Sacromonte tornar-se-ia um bairro exclusivamente cigano.
O nome "Zambra", deriva de "zumra", que significa "festa", o ritual tradicional dos casamentos marroquinos, proibido pela Inquisição no século XVI. Continuaram, no entanto, a ser celebrados clandestinamente. Os ciganos, acabariam por integrar esta tradição nas suas celebrações. Estes ciganos são, hoje, os únicos praticantes desta surpreendente dança marroquina.  
Entre os séculos XVII e XIX, quando os escritores e poetas românticos começaram a chegar a Granada, a Zambra e o Flamenco, já eram apreciados na cidade. Foi este reconhecimento, que transformou o Flamenco numa disciplina e num género musical. Tal popularidade, não agradou a toda a gente. Alguns intelectuais da chamada "Geração de 27" (García Lorca, Manuel de Falla), organizaram, inclusive, o "1º Concurso del Cante Jondo" (Granada, 1922) cujo objectivo primeiro era defender o "cante puro" que, argumentavam, se diferenciava do Flamenco popular, demasiado desligado da verdadeira arte. Posteriormente, Lorca, um apaixonado e especialista do género, aprofundaria o seu ponto de vista na famosa conferência "Arquitectura del Cante Jondo", apresentada, pela primeira vez, em 1932 (Salamanca).
Por sugestão do proprietário da loja de discos mais antiga de Espanha, situada junto à Catedral de Granada, visitámos uma Zambra, a histórica "Maria La Canastera". La Canastera, do seu nome, Maria Cortés Herédia, nasceu em Granada em 1913. Foi "bailaora" e "cantaora" e era conhecida por "La Canastera",  porque o seu pai era artesão e fabricava canastros. Desde muita nova dançava nas Zambras de Sacromonte. A primeira saída, que realizou como "bailaora", foi com 16 anos, à exposição Universal de Barcelona, integrando a Zambra de Manolo Amaya, tendo actuado ao lado da lendária Carmen Amaya, por muitos considerada a maior "bailaora" da história do Flamenco. Compartiu o cartaz, com outras figuras míticas do Flamenco, como La Niña de los Peines, Angelillo, Pepe Marchena e Pepe Grillo, entre outros. Gravou 19 albuns no total. Em 1953, tornou-se dona de uma "cueva" (cave) de Sacromonte, para fundar a sua própria Zambra, por onde passariam personalidades de todo o Mundo. Confirmámos a popularidade do local, nas centenas de fotografias que cobrem as paredes. O espectáculo presenciado, pese ambora a boa prestação de uma das "bailaoras" e do guitarrista que acompanhava o "ensemble" residente, deixou francamente a desejar, mas a experiência valeu a pena. De La Canastera, resta a estátua, uma homenagem da autarquia granaína, a meio da Avenida da Constituição, o "boulevard" mais sofisticado da cidade. Uma referência.
Outra referência na arte flamenca, é a "cantaora" catalã Mayte Martín. Vimo-la em Sevilha, no Teatro de La Maestranza, a sala de visitas da cidade. Esta foi a terceira vez que tivemos o privilégio de ouvir esta extraordinária intérprete, uma das melhores do género, que canta igualmente bem boleros, poesia espanhola e os seus próprios temas. Desta vez, num concerto comemorativo do 20º aniversário do seu terceiro disco "Querencia", editado em 2000. Sobre Maite, já quase tudo foi dito. Se dúvidas houvesse sobre a qualidade dos cantores "payos" (brancos), relativamente aos cantores de origem cigana (um debate mantido por muitos puristas do género), estas desvaneciam-se ao primeiro tema do concerto. Ainda que o programa fosse centrado no album que lhe deu o nome, Mayte passou em revista alguns dos seus maiores sucessos, incluidos numa discografia que conta com 9 albuns. Sobre "Querencia", a cantora explicou: "...Además, querencia es una palabra poco conocida. Mucha gente piensa que tiene que ver con el querer y no es asi. Significa esa tendencia a volver al origen, al lugar del que procedes...".
É isto. A evolução na tradição, implica conhecer bem as origens. Coisa que Mayte Martín continua a conhecer bem.