2021/05/02

"Frutos Vermelhos": A economia não pode parar...

No dia do trabalhador, nada mais obsceno do que ler e ver as reportagens diárias, sobre as condições em que vivem e trabalham os imigrantes asiáticos nas estufas do sudoeste alentejano. 

Para quem não sabe, Portugal é, a par de Espanha, um dos maiores exportadores de produtos hortícolas para a Europa do Norte. Especialmente apreciados, são os vegetais, os citrinos e os denominados "frutos vermelhos" (morangos, framboesas, etc...) que têm cada vez mais procura nos mercados internacionais e nos restaurantes do grandes "chefs". A razão, é simples: dadas as favoráveis condições climatéricas da região, que possibilitam mais de uma colheita anual, é possível manter os mercados do Norte (leia-se, países frios) abastecidos durante todo o ano, com produtos de qualidade, a preços competitivos. Até aqui, tudo bem. Onde há procura, a oferta deve adaptar-se. É "o mercado a funcionar", como gostam de repetir os adeptos do mercado livre.

Só que estas excepcionais condições, atraentes para quem compra e para quem vende, tem um senão. Só é rentável, porque assenta em condições de exploração dignas do Terceiro Mundo. 

Tomemos o exemplo das explorações de "frutos vermelhos" no Sudoeste Alentejano, onde existem mais de 100 herdades e estufas ao longo da costa, que abrangem as freguesias de Odemira, Sto. Teotónio, Almograve, Aljezur e Odeceixe. Há mais de 10 anos que funcionam, empregando, neste momento, uma população flutuante calculada em mais de 10.000 "apanhadores" sazonais. O que começou por ser um projecto de sucesso, apoiado com fundos europeus (a "Vitacress" é, apenas, o mais conhecido), rapidamente se tornaria um exemplo de más práticas laborais e ambientais, devido à sobre-exploração dos solos através de culturas intensivas, muitas delas criadas em zonas ambientais protegidas, ao arrepio dos PDM aprovados pelas autarquias da região. Nada que demovesse os proprietários locais, que descobriram ali a "galinha dos ovos de ouro". Nessa época, a maioria dos trabalhadores era ainda portuguesa. 

Após a crise económica de 2010, que obrigou mais de 400.000 portugueses a procurar trabalho noutras latitudes, os proprietários locais viram-se obrigados a contratar mão-de-obra estrangeira, disponível para trabalhos não-qualificados e sujeita a leis laborais arbitrárias, que os próprios desconheciam. Foi nesta altura em que começaram a aparecer os primeiros imigrantes de origem asiática (paquistaneses, bengalis, nepaleses e afegãos) que voltavam anualmente para fazer a temporada das colheitas. Poucos destes imigrantes residiam no país e a maior parte regressava ciclicamente na "apanha", depois de temporadas em Itália ou Espanha, onde trabalhavam em estufas similares. 

O que começou por ser um trabalho sazonal, tornar-se-ia um hábito, rapidamente aproveitado por engajadores sem escrúpulos, que angariam trabalhadores estrangeiros noutros países europeus com a promessa de trabalho certo e remunerado. O "modelo" é conhecido e praticado em toda a bacia mediterrânica, com destaque para a Itália (Saviani, no seu livro "Gomorra", fala disto) e em Espanha, onde a exploração nas estufas da Andaluzia é frequente motivo de denúncias na imprensa espanhola.

Actualmente, vivem e trabalham na região das estufas do Alentejo, mais de 10.000 imigrantes, a maior parte em regime sazonal. São trabalhadores temporários, que recebem 2,50euros por hora de trabalho (média de 400euros/mês) e que chegam a pagar por um beliche 120euros, num contentor dividido com 4 pessoas. Cozinham onde dormem, em condições sanitárias deploráveis. Muitos são ilegais e, por essa razão, não pagam segurança social. Todos eles são pagos pelos engajadores (intermediários) que gerem os salários atribuídos pelos empresários agrícolas. 

Para esta situação, que tem vindo a ser denunciada pela imprensa nacional e é do conhecimento geral, nunca foi encontrada uma solução condigna, até à semana passada. Isto aconteceu, quando o governo anunciou o fim do "estado de emergência" para todo o país, à excepção de meia-dúzia de freguesias, entre as quais Odemira, Sto. Teotónio e Aljezur. A razão, prende-se com o elevado número de contágios de Covid naquela região, muito acima da média nacional, o que fez disparar os sinais de alarme da Direcção Geral de Saúde. Porquê ali e não noutras regiões? Porque naquela zona, os contágios, devido à promiscuidade existente e à falta de condições sanitárias dos trabalhadores das estufas, são mais frequentes entre os trabalhadores e a população local com quem interagem. Porque os trabalhadores das estufas não utilizam o Serviço Nacional de Saúde, nunca são testados e raramente sabem que estão infectados. Dado o número de incidências detectado, o governo decidiu criar uma "cerca sanitária" para as freguesias mais atingidas. A partir de agora, os habitantes de Odemira e das vilas adjacentes (trabalhadores das estufas incluídos) estão impedidos de sair ou de entrar no concelho e são obrigados a um período de quarentena. Todos estes imigrantes passaram a ter direito a assistência médica gratuita e a uma habitação temporária, num complexo turístico da região, requisitado pelo governo para o efeito. 

A história não terminou aqui, dado que os proprietários da complexo turístico não concordaram com a medida governamental e recorreram para o Tribunal. Independentemente do resultado, uma coisa é certa; não fora a pandemia e, ainda hoje, os responsáveis políticos por esta vergonha civilizacional, não se tinham dignado a resolver um problema que nos devia envergonhar a todos. Há males que vêm por bem. 

No primeiro de Maio, hoje comemorado em honra dos trabalhadores, esta é a homenagem possível a todos os imigrantes que trabalham nas estufas do Alentejo.

(Imagem de Edvard Munch, Cadernos de Esboços, Punho com Martelo 1909-1910)

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