Ontem perdi um amigo. Dos grandes. O Fernando Venâncio. Faleceu em Beja, onde estava internado há alguns anos.
Do Fernando Venâncio, estão hoje a lembrar-se os seus mais próximos, aqueles que tiveram o privilégio de o conhecer pessoalmente. Não podia ficar atrás. Junto o meu depoimento.
Morreu um homem bom. Bom na ciência, à qual dedicaria a maior parte da vida; na vida académica terminada com brilho; nas muitas publicações, editadas em livro e dispersas por jornais e revistas onde colaborou; na amizade, que nunca negou.
Conheci-o em 1971, poucos meses após a sua chegada à Holanda (hoje, Países-Baixos), numa das muitas assembleias de exilados políticos, vulgo "refugiados", que à época demandavam Amsterdão. Éramos centenas, mas faltava-nos o mais importante: uma organização representativa. Daí, os inúmeros encontros entre os mais antigos e aqueles que iam chegando e necessitavam de informações que os ajudasse numa integração mais rápida.
Era a fase da entreajuda possível, partilhas da habitação em colchões improvisados e acompanhamento durante o processo de legalização, o que implicava a passagem por uma das organizações sociais existentes, encontrar um advogado "pro-deum" e a ida à polícia de estrangeiros. Cumprido este ritual, que podia demorar meses, a polícia de estrangeiros fazia a triagem possível e atribuía, a cada um de nós, um estatuto. Aos desertores, como o Fernando, era aceite o pedido de asilo, que implicava uma habitação condigna e uma bolsa de estudo, para aprender a língua e prosseguir a formação académica. No caso do Fernando, não necessitou sequer de passar pela escola onde era leccionado o neerlandês, para falar fluentemente a língua, da mesma forma que lhe deram a equivalência ao bacharelato, para reiniciar os estudos na Universidade de Amsterdão.
Perdi-o de vista, entre 1971 e 1972, mas viria a reencontrá-lo, no início do ano académico de 1972-1973, na biblioteca universitária que ambos frequentávamos. A amizade continuou e, ainda que em faculdades diferentes, os encontros eram frequentes. Falava-se de tudo e havia sempre tempo para uma conversa no "coffeshop" ao lado da biblioteca. Tempos febris, mas de esperança, já que ninguém acreditava ficar muito tempo no exílio.
Com o 25 de Abril, a maior parte dos refugiados portugueses voltou à pátria. Ficaram os mais antigos e integrados na sociedade holandesa, os que constituíram família ou estavam a estudar com bolsas do estado. O Fernando pertencia ao segundo grupo. Uma vez terminado o curso, em 1976, candidatou-se a um lugar vago no departamento de português da Universidade de Nijmegen, onde leccionou durante anos e onde o visitei por diversas vezes.
Em inícios da década de oitenta (passados os "anos loucos da revolução"), um grupo de ex-exilados criou, em Amsterdão, o "Círculo de Cultura Portuguesa na Holanda", uma fundação que se propunha dinamizar e divulgar a cultura portuguesa nos Países-Baixos. Éramos subsidiados, o que permitia ter uma local de encontro, organizar exposições, eventos musicais e literários e publicar uma revista semestral cujo nome (Vertical) foi sugerido pelo Fernando. Desnecessário acrescentar que o Fernando se tornou um orador frequente, seja falando da sua amada língua, seja declamando, seja colaborando activamente na revista, onde era escritor residente.
A revista terminaria em finais da década, mas a colaboração do Fernando com o "Círculo" continuou, agora mais próxima, uma vez que ele passou a leccionar em Utrecht, o que facilitava a deslocação. Em caso de necessidade, pernoitava em minha casa, para não ter de regressar no último comboio.
Posteriormente, o Fernando seria convidado a leccionar na Faculdade de Letras de Amsterdão (onde substituiria o escritor Rentes de Carvalho, entretanto reformado), o que possibilitaria novos e enriquecedores encontros. Aproveitei para convidá-lo a participar num documentário para a televisão holandesa, por mim escrito e coordenado, sobre "ex-exilados na Holanda". Aceitou de imediato. Uma semana de convívio inesquecível, onde pudemos mostrar as suas diversas facetas: familiares, académicas e de escritor.
Em meados da década de noventa, regressei a Portugal. Os encontros começaram a rarear, ainda que nas minhas visitas anuais a Amsterdão, ou na Feira do Livro de Lisboa, houvesse sempre tempo para trocar dois dedos de conversa.
Quando o convidei para apresentar um livro sobre "exílios" onde colaborei, nem hesitou. Seria em Outubro de 2016, em Amsterdão e ele foi um dos "mestres de cerimónia". No ano seguinte, repetimos a "dose". De novo na capital holandesa, agora numa sessão organizada pela Q'art sobre música e literatura portuguesa. O Fernando, seria o principal orador e falaria sobre a "inveja" e a "competição" no meio literário português. Tudo, em neerlandês, com o ar mais sério deste Mundo. O que eu me ri...
Em 2017, telefonou-me: "Olha, afinal, sempre vou regressar a Portugal! Vendi a casa de Amsterdão e vou para Mértola. Tenho lá uma casa e vive lá uma das minhas filhas, com o meu neto". Óptimo, pensei.
Em Mértola, visitei-o por duas vezes: em 2019 e em 2021. Achei-o bastante fatigado, mas ocupado e entusiasmado como sempre. O seu livro "Assim nasceu uma língua" já ia na terceira edição e tornara-se um "best-seller". Não entendia como é que os linguistas portugueses não tinham ainda chegado às mesmas conclusões. Bastava ter estudado mais um pouco, concluía...
Soube pela família do seu internamento, numa residência sénior em Beja, vai para três anos. Visitei-o em 2023 e em 2024. Nessa altura, planeavam homenageá-lo em Utrecht e pediram-lhe um depoimento gravado. Escrevi um texto, a pedido, que ele aprovou. A última conversa, seria telefónica, em Agosto de 2024. Passava por Beja, e desejava vê-lo. Preferiu não receber-nos, por considerar não estar a passar um bom momento...
Ontem telefonou-me um jornalista do "Público", também amigo de longa data: "se eu sabia alguma coisa do Venâncio? Não, porquê? Consta que morreu". Pus-me em campo e confirmei a notícia.
Agora é tarde. Resta a "despedida" em Mértola, a terra que o viu nascer. Mais do que um intelectual de craveira, perdi um amigo de excepção. Afinal, foram mais de cinquenta anos de convívio fraternal e solidário. Inesquecível, o Fernando Venâncio. Não me conformo.
Nota- A foto foi retirada do blogue 7Margens. Familiares e amigos de Nuno Teotónio Pereira em 1970, em Marvão, antes de Fernando Venâncio e Joel Pinto (segundo e terceiro à direita) saírem clandestinamente para Espanha, para desertar da guerra colonial. A foto foi captada pelo próprio Teotónio Pereira. Esta fotografia tem outro elemento de destaque: o sexto à direita é o "nosso" Raul Henriques.
1 comentário:
Triste notícia, a da morte do Fernando. Estive no grupo dos que o passaram na fronteira, graças a esse ser humano de exceção que era o Nuno Teotónio Pereira, que é quem está do outro lado da câmara, a tirar a fotografia. A única vez que vi o Fernando foi na altura em que o passámos para fora do país, mas nem sabia o seu nome nem o fiquei a saber. O nome, Fernando Venâncio, só se veio a cruzar comigo anos depois, quando eu próprio enveredei pela linguística. Vim a ler esse livro de sua autoria «Assim nasce uma língua», que considero seminal e com o qual aprendi imenso sobre a história da nossa língua. Mas não sabia que o autor era aquele tipo que um dia passámos na fronteira. Não sou exato quando escrevo que foi aquela a única altura em que estive com ele, pois viemos a reencontrar-nos 52 anos depois, de novo em Marvão, tendo feito o mesmo caminho e tirado uma foto idêntica, com todos os intervenientes em posições semelhantes. Essa foto já não se poderá repetir: morreu o Miguel Teotónio e morreu agora o Fernando Venâncio. Disse alguém que o dia da nossa morte é apenas um dos dias da nossa vida. É verdade, mas fica uma grande tristeza dentro do peito dos que cá continuam...
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