2007/04/04

engenharias

A "saga" do diploma de Sócrates tornou-se no "fait-divers" nacional. Uns dizem que não lhes interessa nada se o homem é licenciado ou não (só querem saber se está registado de acordo); outros, pensam que a notícia é um "não caso" (pelo que não merece ser publicada). Enquanto jornais e programas televisivos de "referência" continuam a encher páginas e noticiários com esta "não notícia", o governo é acusado de pressionar as redacções para evitar o pior. Com tanta confusão, não é para admirar que a Wikipédia tenha actualizado dezenas de vezes o curriculum do primeiro-ministro. Eu. se fosse ele, estaria preocupado em ter um diploma passado pela Universidade Independente...

2007/04/03

Magnólia

Soube hoje pelo Público que as magnólias existem no mundo pelo menos há 95 milhões de anos, (grandeza que, diga-se de passagem, é para mim completamente inimaginável). Existiram antes das próprias abelhas. Ou, se calhar estas formaram-se enquanto espécie por poderem alimentar-se nestas flores. Admitindo-se esta especulativa e tendenciosa hipótese, sem magnólias era capaz de não haver hoje abelhas. Portanto também, o mel e a cera.
Pois apesar de terem uma, mesmo em termos do reino vegetal, invejável longevidade (parece que se conhecem uns exemplares com uns 800 anos), estes arbustos, ou pequenas árvores estão em perigo: 131 das 245 espécies selvagens de magnólias estão em vias de desaparecer.
O que, segundo o artigo, é uma espécie de barómetro em relação à saúde das florestas em que elas se criam.
Há umas gerações, era costume dar-se nomes de flores às meninas. Algumas privilegiadas recém-nascidas herdaram, assim, o nome desta flor: magnólia.
Tem uma sonoridade linda, magnólia.
A minha mãe chamava-se Magnólia.

Campeonato da Língua Portuguesa 6

Senão e se não
15. Nas opções seguintes, assinale a correcta:
A. Ele é distraído, se não parvo.
B. Aquele cuja casa falei.
C. Eles fizeram mesmos aquilo de que foram acusados.
D. O mais pequeno não chegava à mesa, o maior batia nela com os joelhos.
A resposta certa é: D, «O mais pequeno não chegava ao chão, o maior batia nela com os joelhos».
Na primeira, devia estar «senão» (significando: «mas também»). Na segunda, devia estar «de cuja casa» («falar» rege a preposição «de» neste caso). «Mesmo» como advérbio não se pluraliza. Não pode dizer-se «o mais grande», mas é legítimo dizer-se «o mais pequeno».

Abordei esta pergunta procurando as frases erradas. Não foi, pois, difícil excluir as opções B e C.
Quanto às outras duas, confesso não descortinar qualquer erro. Debrucemo-nos sobre a opção A, por ser a que assinalei como correcta.
Mas antes atentemos na correcção que foi feita. A primeira nota é que o dicionário de referência não considera mas também como significado de senão. A segunda nota é que, nessa interpretação se estaria a subentender a expressão não só na primeira oração do período., sendo a frase completa: Ele não só é distraído, mas também parvo. Eu nunca me lembraria desta interpretação, ao ler a frase; mas é possível que alguém pudesse levar a coisa para esse rebuscado lado...
A minha interpretação da frase foi bem mais simples: não estando o predicado expresso, subentendi na segunda a forma verbal da primeira oração. A frase seria: «Ele é distraído, se não é (ou for) parvo», ou, em formulação equivalente, «... se é que não é parvo».
A estribar esta interpretação cito José Neves Henriques no CiberdúvidasQuando o se é uma conjunção e o não é um advérbio de negação.1 - Neste caso, o se está ligado a um verbo, claro ou subentendido:b) Homens iguais se não superiores, temos hoje. (= ... se não forem superiores ...).c) Amaram-se um pouco, se não muito. (= ... se não se amaram muito)».Opinião que é confirmada por Maria Regina Rocha, também no Ciberdúvidas2.1.2. Com o verbo subentendido: "Estavam lá dezenas de jovens, se não centenas." Subentende-se aqui a mesma forma verbal da primeira oração ("estavam").Uma regra simples para se verificar esta situação (2.1.2.): neste caso é possível introduzir a expressão "é que" entre o "se" e o "não": "Estavam lá dezenas de jovens, se é que não estavam centenas!"».
Apesar de a formulação da pergunta admitir apenas uma resposta correcta, supus que, propositadamente ou por engano, fossem possíveis duas, à semelhança do que se passara com a pergunta 2 do 2.º teste, e se passa quanto à pergunta 24 deste teste.
No processo de escrever este texto deparei com o que me parece (e também ao Ciberdúvidas) ser um erro do dicionário de referência: assim como o plural de não é nãos, o plural de senão é senãos e não senões.

2007/04/01

Campeonato Nacional da Língua Portuguesa 5

Uso do calão
Eis uma das perguntas do 3.º teste e a respectiva resposta:
14. «Dar tanga a alguém» significa:
A. enganá-la
B. oferecer-lhe uma sunga
C. divertir-se à sua custa
D. passear com ela, de barco à vela
A resposta certa é: C, «divertir-se à sua custa».
Ver obra de referência, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, página 1470.

Era de caras; bastava ir ver ao dicionário. Mas isso é o que fazem os marrões. Eu, como sempre utilizei o vocábulo tanga, em calão, como significado de mentira, por amor à língua portuguesa, preferi investigar. Eis o que encontrei:

O Dicionário de Calão, de Albino Lapa (prefaciado por Aquilino Ribeiro; 1.ª edição, 1959), refere, a propósito:
«TANGA – É o nome dado ao jornal que o carteirista finge que está a ler, pois só olha e estuda os passos do indivíduo que há-de ser a sua vítima do roubo.
TANGA – Nome que se dá ao indivíduo que distrai a vítima para o roubar. O mesmo que tanguiar.
TANGUEAR – Trocar as voltas; entreter; gozar.»

Já o Novo Dicionário de Calão, de Afonso Praça, estabelece:
«Tanga – Mentira [dar uma tanga = enganar alguém; contar histórias que não são verdade; inventar]». Inclui, de seguida, os sentidos da palavra acima citados, admitidos por Albino Lapa.
«Tanguear – Trocar as voltas; distrair; entreter».

Por seu turno, o Dicionário de Calão do Mundo do Crime (compilação e pesquisa do Subcomissário Paulo Jorge Valente Gomes, ed. Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna), livro de estudo da Escola Superior de Polícia, portanto obra que deveria ser de referência quanto ao uso do calão, estabelece:
«Tanga – Envolver a vítima para lhe furtar a carteira ("fazer-lhe o cerco"). Mentira». (Terá de se levar em conta o facto de o Subcomissário Paulo Gomes não ser certamente um linguista, nem um especialista em português, para aqui dar um verbo como significado de um substantivo; "envolver" melhor será, pois, "dar tanga", "tanguear").

O vocábulo tanga terá, pois, sido utilizado inicialmente para nomear um objecto, "o jornal que o carteirista finge que está a ler". Isto faz todo o sentido se repararmos que tanga é uma «peça de roupa usada à volta das ancas por nativos de países quentes», isto é, um objecto que esconde alguma coisa: no sentido próprio, os pudendos; no uso marginal, a intenção de quem se apresta para enganar e roubar outrem. Por extensão o termo terá passado a significar o "indivíduo" que finge ler o tal jornal ou, por qualquer outro processo, "distrai a vítima para o roubar".
A evolução sofrida a partir desta origem não foi significativa, mantendo-se no âmbito do engano do outro, da "mentira".
O significado expresso no dicionário de referência do Campeonato («Coloquial dar tanga a (alguém) divertir-se à custa de (alguém)») pode ser que seja uma acepção mais "civilizada", «coloquial», derivada da, mais crua, terminologia do mundo do crime. De facto, é admissível que enganar outrem em proveito próprio proporcione divertimento a quem o faz.
Mas uma coisa é certa: uma tanga é uma mentira. Portanto dar tanga a alguém é enganar esse alguém. A resposta certa deveria ser a A.

2007/03/30

representatividades

O mês de Março tem sido fértil em notícias curiosas. Atente-se nas coincidências:
Presidente de câmara prossegue cruzada pela instalação de um museu Salazar em Sta. Comba Dão; movimento de extrema-direita concorre com lista em associação de estudantes; concurso televisivo consagra Salazar como o "maior" português da História; partido de extrema-direita coloca "outdoor" no Marquês de Pombal, com apelo racista contra os imigrantes. Enquanto as autoridades não vêem mal nenhum nestas singelas manifestações, os comentadores do costume dizem que não nos devemos preocupar: tudo não passará de um epifenómeno, sem qualquer representatividade. Fiquei muito mais descansado...

2007/03/29

Campeonato Nacional da Língua Portuguesa 4

Os verbos defectivos
Verbos defectivos são os que «não têm a conjugação completa consagrada pelo uso» (Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, página 443 da 17.ª edição).
Atentemos na pergunta do 2.º teste sobre este tema e na respectiva resposta:

«24. Qual a forma da primeira pessoa do singular do verbo «imergir» no presente do indicativo:
A. imerjo
B. não tem
C. imergo
D. imirjo

Resposta - B.
A resposta correcta é a B, não tem. Na 8ª edição da Nova Gramática do Português Contemporâneo, livro de referência segundo os regulamentos, a páginas 445, em «Verbos Defectivos», dá-se claramente como exemplo o verbo banir, e mais se afirma que pelo seu modelo se conjuga, entre outros, o verbo «imergir», que não possui, portanto, a 1ª pessoa do presente do indicativo.»

Tudo certo. Mas não inequívoco.
É que, se é certo que a gramática de referência estabelece que não existe a primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo imergir, é também certo que o dicionário de verbos do Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, também ele de referência quanto à sinonímia, admite a forma "imirjo".
Teria ou não sido de bom-senso não incluir perguntas em que este tipo de contradição se verifica?

Campeonato Nacional da Língua Portuguesa 3

A flexão do infinitivo
O português é uma língua bastante complicada, porque tem regras e mais regras, a propósito de tudo e da nada.
Um dos assuntos mais controversos e sobre o qual não existem regras taxativas é o da flexão do infinitivo.
Para toda a malta perceber, tomemos por exemplo o verbo andar. O infinitivo impessoal não tem sujeito próprio e é o nome do verbo: andar. Quando tem sujeito próprio o infinitivo pode flexionar-se, isto é, variar consoante o sujeito: andar, andares, andar, andarmos, andardes, andarem.
Quanto à questão de se saber quando é que o infinitivo deve ou não ser flexionado, vale a pena citar a "conclusão" constante da gramática de referência do Campeonato ("Nova Gramática do Português Contemporâneo", de Celso Cunha e Lindley Cintra, página 487 da 17.ª edição):
«Como vemos, «a escolha da forma infinitiva depende de cogitarmos somente da acção ou do intuito ou necessidade de pormos em evidência o agente da acção» (Said Ali). No primeiro caso, preferiremos o INFINITIVO NÃO FLEXIONADO; no segundo, o FLEXIONADO.
Trata-se, pois, de um emprego selectivo, mais do terreno da estilística do que, propriamente, da gramática.»
Este reparo deveria pôr de sobreaviso quem elaborou os testes, pois são frequentes os casos em que são admissíveis tanto a forma flexionada como a não flexionada.
Evitar-se-iam contradições como a que acontece em relação ao 1.º texto do 2.º teste. Transcrevamos a parte do texto em questão (antes da correcção dos vocábulos aqui em análise):
«Consideravam discutível não merecerem castigo pelos crimes do passado, uma vez que estavam arrependidos. De qualquer forma, mesmo que fossem punidos, estavam decididos a nunca mais pervaricarem.»
Foi esta a correcção feita pela Comissão Técnico-Científica do Campeonato (CTC):
«Não merecer castigo em vez de não merecerem castigo. Porque o sujeito da oração infinitiva é o mesmo de «consideravam discutível», isto é, «eles». Quando assim acontece, o infinitivo é impessoal.
Prevaricarem em vez de pervaricarem.(do latim praevaricar), infringir uma norma estabelecida.»
Quer dizer, o merecerem passa a merecer, mas o prevaricarem não passa a prevaricar! Mas o que é facto, é que também neste segundo caso o sujeito da oração infinitiva é o mesmo de «estavam decididos», isto é, «eles», e aqui a CTC manteve o infinitivo flexionado, apenas emendando o erro de morfologia.
Fica bem evidente a contradição entre estas correcções. É capaz de haver duas facções na CTC. A primeira coloca mais a ênfase na acção e escolhe merecer em vez de merecerem; a segunda põe em evidência o agente da acção e escolhe prevaricarem em vez de prevaricar.

Esta questão, apesar de ter sido levantada no dia 16 deste mês, infelizmente ainda não mereceu resposta por parte da CTC.

Campeonato Nacional da Língua Portuguesa 2

Numa leitura não exaustiva do Regulamento do Campeonato Nacional da Língua Portuguesa encontrei os seguintes dislates:
«1. A correcção das provas que constituem o Campeonato Nacional da Língua Portuguesa serão divulgadas neste sítio web e far-se-á sobre o controlo da comissão Técnico Cientifica do Júri Nacional» (Art.º 10.º).Este período registava dois gravíssimos erros:Na primeira oração, falta de concordância entre o sujeito ("a correcção") e o predicado ("serão divulgadas"); por outro lado, em vez da preposição "sobre" deveria estar "sob". Além disso, Técnico-Científica escreve-se assim, com hífen. E não dava para entender por que razão a palavra "comissão" estava escrita com minúscula quando todos os outros vocábulos da expressão levavam maiúscula.
Também no art.º 9 (« 3. Para efeitos de aceitação dos testes qualificativos dos concorrentes apenas serão admitidos os testes distribuídos com o Expresso e o Jornal de Letras, não se aceitando quaisquer cópias ou fotocópias dos mesmos ou os testes disponibilizados neste sítio web, após registo.») a expressão "não se aceitando quaisquer cópias ou fotocópias dos mesmos" deveria estar entre parêntesis ou, no mínimo, entre vírgulas. Como está, parece que não se aceitam "os testes disponibilizados neste sítio web, após registo".

Alertados por carta que lhes enviei, eles lá emendaram os principais erros do art.º 10, tendo, no entanto, mantido Científica sem acento no i. No art.º 9.º nem tocaram.
Tal é o cuidado que os organizadores põem no uso da língua portuguesa.

Campeonato Nacional da Língua Portuguesa 1

Proponho-me escrever alguns posts acerca da minha participação no Campeonato Nacional da Língua Portuguesa.
Poderá interessar a quem, como eu, goste da língua portuguesa.
O primeiro teste passou-se sem problemas.
Quanto ao segundo já não posso dizer o mesmo.
Começo por fazer alguns reparos a propósito dos dois textos desse teste. São textos que vêm propositadamente com erros que os concorrentes devem corrigir.
O primeiro texto é sobre três salteadores. Diz, na sua parte final (versão com as correcções do júri):
«Consideravam discutível não merecer castigo pelos crimes do passado, uma vez que estavam arrependidos. De qualquer forma, mesmo que fossem punidos, estavam decididos a nunca mais prevaricarem.»
Faz algum sentido que os salteadores achem que merecem castigo por causa de estarem arrependidos? Aquele "não" subverte toda a lógica do discurso; o natural era que os salteadores considerassem discutível merecer castigo, já que "estavam arrependidos" e "decididos a nunca mais prevaricar", "mesmo que fossem punidos". Só faria sentido usar o tal "não", se na última oração estivesse "apesar de estarem arrependidos". O arrependimento poderá ser motivo de perdão ou redução de pena; nunca do contrário.
Mas isto não fica por aqui. Atentem neste naco do segundo texto:
«Era um homem de um vigor titânico e as pessoas ainda hoje vêem nele um verdadeiro rei da força.
Desde há anos que todos lembram a sua intenção de não aumentar os salários para incentivar o investimento empresarial. Antes de o conseguir, morreu, há um mês, de uma insurreição popular dirigida por anarco-sindicalistas.»
Esse fantástico "homem de valor titânico" só por ter morrido em vésperas de o conseguir, não cometeu a proeza de "não aumentar os salários para incentivar o investimento industrial". Se não tem morrido lá teria ele, com certeza, não aumentado os salários.
No mesmo texto há a seguinte passagem completamente desprovida de lógica:
«No cumprimento dos deveres do novo mandato, o herdeiro foi ratificado pelo fórum, pois que os seus membros, mesmo com dúvidas, não queriam originar um precedente eleitoral, e decretaram a dispensa de provas. O recém-eleito é que não achou graça, entendendo que estavam a discriminá-lo.»
Primeiro, havendo ratificação pelo fórum, só depois desta o "herdeiro" encetará o "cumprimento dos deveres do novo mandato"; antes não estará ainda mandatado.
Segundo, diz o texto que "o escolhido era quase perfeito"; mesmo assim os membros do fórum tinham "dúvidas" e só "decretaram a dispensa de provas" por não quererem "originar um precedente eleitoral".
Terceiro, como é que o recém-eleito poderia entender que o estavam a discriminar se os membros do fórum até "decretaram a dispensa de provas", atitude que, além de ser a habitual (a exigência de provas teria sido "um precedente eleitoral"), facilitava a sua escolha?

Num Campeonato sobre a Língua Portuguesa, valia a pena porem uns textos que não fossem tão inacreditavelmente mal escritos.

2007/03/04

Perturbador

O Público de hoje noticia que um homem foi injustamente condenado por homicídio. "Devido a um erro grosseiro no depoimento do médico e na realização da autópsia", acrescenta o Público. Verificado o erro, o homem processou os dois médicos do Instituto de Medicina Legal cujo depoimento esteve na base da condenção a 12 anos de cadeia. Oito anos depois o STJ, apesar de reconhecer a ilegitimidade da detenção, não aceitou a queixa contra os médicos, simplesmente, por esta ter dado entrada fora do prazo e condenou o homem ao pagamento das respectivas custas judiciais.
É a vida de uma pessoa. Um cidadão foi portanto condenado injustamente pelo Estado, devido a um erro do sistema e privado de ser compensado por esse erro da justiça, apenas por ter ultrapassado uma data meramente convencional. Para cúmulo, é condenado a pagar as custas de um processo que interpôs com a intenção de ver o evidente erro reparado. Parece brincadeira mas não é...
Erros judiciais ocorrem por todo o lado e em todos os tempos. Alguns até deram direito a enredo de filme ou a tema de romance. Serão difíceis de erradicar totalmente, mas neste caso eu não creio que se trate de uma excepção. É a norma.
A forma como o sistema judicial português está montado e o seu modo de funcionamento real levam a que o recurso à justiça esteja vedado à generalidade dos cidadãos e que esse recurso não seja garantia de que a justiça seja efectivamente exercida. De tudo isto resulta que a vítima acaba por ser de certa forma condenada, quanto mais não seja porque vê a justiça ser-lhe negada.
Nada disto nos pode deixar tranquilos. A injustiça é o caminho certo para a revolta. O exercício da justiça é um sinal de civilização. No caso presente, fico perturbadíssimo com a facilidade que permite ao sistema judicial português criar revoltados potencias e como recusa o exercício dos princípios mais elementares de justiça.
Mal de nós se tivermos o azar de cair nas suas malhas...

2007/02/15

Afinal ainda há poder popular


De como uma pequena, mas inteligente, mudança de hábitos e atitudes pode transformar a vida das pessoas.
As impiedosas secas que atingiram o Níger nos anos 70 e 80, somadas a uma explosão populacional e a práticas de cultivo e armazenagem destrutivas, estavam a desertificar vastas áreas de terra.
Foi então que os agricultores decidiram não mais remover os rebentos de novas árvores dos seus campos antes da sementeira, como tinha sido prática durante gerações e gerações; em vez disso começaram a protegê-los e a regá-los, cultivando à sua volta painço, sorgo, amendoim e feijão.
O que é de realçar neste processo é que o mesmo foi desencadeado pelas próprias populações.
Descrente como tenho andado em relação à capacidade de acção popular em Portugal, é este um exemplo que muito me alegra.
Obrigado a “a causa foi modificada”, onde colhi a referência.

2007/02/03

Pior que o que se pensava


Dia 2 de Fevereiro
Dia de festa no mar
Eu quero ser o primeiro
Pra salvar Iemanjá

Dorival Caymmi, Dois de Fevereiro
Foi no dia em que se festeja Iemanjá, que ‘estourou’ o relatório de um painel das Nações Unidas formado por centenas de peritos de todo o mundo e aprovado por todos os respectivos governos (Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC) para estudar o problema do aquecimento global. Segundo o Guardian, é o mais severo aviso até hoje feito sobre as consequências do falhanço na redução dos gases que produzem efeitos de estufa: tal acarretará devastadoras alterações climáticas em poucas décadas.
As consequências são conhecidas: desaparecimento de centenas de espécies, escassez extrema de comida e água, desalojamento de centenas de milhões de pessoas na sequência de inundações catastróficas, etc..
Mas há um ponto sobre o qual o relatório é esclarecedor: pouca margem de dúvida fica de que as actividades humanas têm culpas no cartório. Achim Steiner, director executive do Programa Ambiental das Nações Unidas disse: "February 2 2007 may be remembered as the day the question mark was removed from whether people are to blame for climate change."
Calma, malta! Não se preocupem! Podem continuar a abrir as torneiras e a ir de carro para o emprego. A maior parte de vocês já cá não vai estar para sofrer as consequências!

2007/01/28

Ser humano

Yi-Fu Tuan é um autor americano de origem chinesa que admiro desde há muito. Aqui há algum tempo escrevi uma curta nota no meu blog pessoal sobre este geógrafo, verdadeiramente, sui generis e sobre os seus ensinamentos. Tuan mantém um secção no seu site intitulada Dear Colleague Letters, leitura que recomendo vivamente a todos.
Pois, na última Letter, Tuan conta-nos o episódio que ocorreu em Chicago de um fulano que apanhou um táxi do aeroporto de Midway para casa. A corrida perfazia 28.25 dólares e ele estendeu-lhe 40 dólares que incluiam 11.75 dólares de gorjeta, dizendo-lhe "$11". O motorista terá entendido que ele queria os 11 dólares de troco, devolveu-lhe essa quantia e ele, cansado e sonolento, recebeu-a distraidamente. Só no dia seguinte percebeu que lhe tinha dado apenas 75 cêntimos de gorjeta, o que o terá deixado especialmente incomodado porque o motorista lhe tinha dado uma enorme ajuda com a quantidade de bagagem que ele tinha.
Não se lembrava do nome do motorista, nem sequer do nome da companhia de táxis. Mas, lembrava-se do número do táxi. E, assim, facilmente localizou o motorista em questão. E porque é que ele se lembrava do nome do táxi? Porque tempos antes tinha-se esquecido da carteira num outro táxi. O motorista desse táxi localizou-o, telefonou-lhe e devolveu-lhe a carteira, recomendando-lhe que tomasse sempre nota do número do táxi em que viajava porque dessa forma seria mais fácil localizá-lo se houvesse algum problema. Tuan pergunta "o que se passa aqui? Um motorista de táxi que oferece conselhos valiosos. Um passageiro que se preocupa a ponto de desviar o seu caminho para dar uma gorjeta que considera justa..."
Aqui há bastantes anos, lembro-me que fiquei sem gasolina na autoestrada Cascais-Lisboa. Deixei o carro parado e comecei a andar a pé em direcção a uma bomba de gasolina, com a minha mulher e o meu filho (que teria 2-3 anos na altura) e viajavam comigo. Alguns metros à nossa frente parou uma carrinha. O motorista, saiu e perguntou-me se precisava de ajuda. Disse-lhe o que tinha acontecido, que ia levar a minha mulher ao trabalho e o filho à escola e que tinha ficado sem gasolina. Pois esta criatura desviando caminho e dando uma longa volta por Lisboa, levou a minha mulher ao emprego, o meu filho à escola, foi comigo a uma bomba de gasolina e voltou ao local onde o meu carro tinha ficado. Enquanto eu lhe agradecia ainda estupefacto, ele dizia-me com uma enorme simplicidade que aquilo não era nada, que tínhamos de ser uns para os outros. A lição, acreditem, ficou marcada para sempre.
Não haverá certamente outro ponto de contacto entre Chicago e Lisboa senão aquele está contido na pergunta final que Tuan faz na sua última Letter: "Quanta bondade humana será necessária a uma qualquer sociedade para, não só, sobreviver, mas também florescer?"

2007/01/03

France 24 - um protesto


Um protesto veemente pelo facto da TV Cabo ter escolhido a versão inglesa do novo canal France 24. Como se não tivéssemos suficiente inglês nos canais nacionais e internacionais por cabo!

2006/12/30

Recomenda-se

Hoje, em especial hoje, gostaria de recomendar aqui a leitura de um livro chamado Bem Vindo ao Deserto do Real de Slavoj Zizek (Relógio d'Água, 2006).
"O liberalismo capitalista globalizado que se opõe ao fundamentalismo muçulmano é, ele próprio, um modo de fundamentalismo, pois na «guerra» actual «contra o terrorismo», estamos de facto perante um choque entre fundamentalismos," escreve Zizek.
Uma reflexão sobre a nova ordem ideológica depois do 11 de Setembro. Leiam, leiam que vale a pena.

2006/12/28

Educação de adultos

Os relatórios indicam que houve um aumento significativo do número de acidentes rodoviários, de mortos e feridos durante a operação de Natal montada pela BT-GNR, em relação, claro, ao que sucedeu no ano passado. É tristíssimo que isto aconteça.
O presidente do ACP veio logo aproveitar para zurzir no governo por causa das verbas supostamente retiradas às campanhas de prevenção que a PRP efectuava. A culpa de tudo isto seria, segundo ele, da educação. Ao não apostarmos no futuro, ou seja, ao não preparamos as crianças para mudar o actual status quo, estaremos, segundo ele, a agravar o problema. Mas, o porta-voz da BT disse, preto no branco, que a culpa é da falta de civismo dos condutores portugueses. Tudo o resto decorre daqui. Ou seja: mesmo que estejamos a dar toda a formação nesta matéria aos futuros condutores, o problema existe hoje. E não me parece que possamos contar com os prevaricadores de hoje para educar e formar a consciência cívica dos condutores de amanhã.
Não parece haver imagens-choque, estatísticas arrepiantes, alertas angustiados, agravamento significativo de multas e novas regras mais apertadas que ponham fim a esta barbárie. Uma barbárie que só encontra paralelo em momentos e episódios históricos que me dispenso de explicitar aqui. Mas, como diria um grande pensador da bola, português de Palmela, vocês sabem do que estou a falar... As notícias (e neste capítulo a imprensa tem tido um comportamento estranhamente exemplar) mais chocantes, as imagens mais selvagens, não parecem afectar ninguém: os números já de si vergonhosos, agravaram-se.
É profundamente triste, repito. E é estranho que continuemos a ver gente, alguma até com grandes responsabilidades, eventualmente, exemplares pais e mães de família, quem sabe, zelosos cumpridores das regras nas suas casas e no seu trabalho, que mal se sentam ao volante se transformam no mais reles "serial killer" em potência! Sem qualquer peso na consciência por aquilo que faz ou que deixa fazer. E, pior ainda, vangloriando-se de um comportamento que, se ocorresse noutros ambientes, mais 'fashion', decerto verberaria!
Face a isto, podemos perguntar: quem pode dar formação aos condutores de amanhã? De que servirão as tais campanhas na escola se quem está na estrada hoje e quem pode dar essa formação hoje não merece sequer ter o privilégio de conduzir?
Precisamos é de uma campanha de educação de adultos, desses que andam para aí a matar-se e matar-nos. E de re-implementar a reguada...



PS- Já agora, a este propósito, assisti há dias a um programa da SIC Comédia chamado "Prazer dos Diabos". Habitualmente divertido, este programa conta com um participante com quem simpatizo, quanto mais não fosse pelo sentimento anti-benfiquista que demonstra (!). Ora num destes dias, resolveu ele atirar-se à "Associação dos Cidadãos Auto-Mobilizados" (ACA-M), produzindo uma série de piadas de péssimo gosto sobre esta organização que luta pelo fim do que designa "guerra civil nas estradas". Não sei se o membro do "Prazer dos Diabos" a que me refiro se chegou a auto criticar pela figura triste que fez, mas daqui lhe digo: tomáramos nós que existissem muitas associações deste género em Portugal. O envolvimento cívico nas questões que nos dizem respeito, a todos, está longe de constituir sinal de cinzentismo. Não faz mal a ninguém e deveria ser quase uma regra da democracia... Quanto ao humor, em geral, nada contra!

2006/12/18

O Rivoli

Vamos por partes.
Não conheço Filipe La Féria, não conheço o dr. Rui Rio, não vivo no Porto. A questão do Rivoli interessa-me porque parece haver qualquer coisa de errado em tudo isto...
Filipe La Féria é um encenador profissional e tem ou faz parte de uma empresa chamada Bastidores, um produtora comercial. O dr. Rio é presidente da Câmara Municipal do Porto.
La Féria e a sua produtora procuram público. O dr. Rio gere um organismo público.
O dr. Rio questionava numa entrevista recente se seria legítimo colocar dinheiros públicos ao serviço de produções que não têm espectadores. Não se lhe conhecem quaisquer esforços feitos no sentido de apurar ou perceber porque razão essas produções não têm público. Sente-se (creio que é legítimo interpretar as coisas deste modo) que o dr. Rio entende que são as opções estéticas dos autores dessas produções, que contribuem para a ausência do público. Que estarão portanto erradas, estando assim a ausência do público justificada. O raciocínio é, em síntese, este, e é tão primário quanto isto: ausência de público=falta de qualidade=esbanjamento de dinheiros públicos...
Vai daí, o dr. Rio resolve propôr a atribuição da gestão do Rivoli a La Féria na esperança de que as opções estéticas deste gerem a atracção de público ao Rivoli que tem faltado. Isto depois de um "aturado processo de selecção", como refere o Diário de Notícias de ontem, que distinguiu uma proposta que garante "uma programação apelativa de elevada qualidade e mobilizadora de grandes públicos para a Baixa do Porto."
Não se conhece o conteúdo da proposta de Filipe La Féria para a programação do Rivoli, nem percebo como se pode garantir, à partida, que esse conteúdo vai ter todos aqueles atributos. Mas, uma coisa é certa: o dr. Rio, figura com um percurso artístico reconhecido por todos, diz-nos isso e os Portuenses podem assim ficar perfeitamente descansados. Tudo está previsto! O dr. Rio garante-o. Hordas de espectadores já se devem estar a preparar a esta hora para invadir o Rivoli.
Com garantias destas, dadas de forma tão enfática e exuberante, a produção anterior do Rivoli, se calhar, teria tido o público que lhe faltou. Que grande RP que o Filipe La Féria arranjou! Bingo!!!
O resto da malta que se desenrasque...
E se no final não tivermos as tais hordas de espectadores, a CMP vai certamente, para não perder a face, encontrar os meios para as mobilizar.

2006/11/27

Mário Cesariny










Conheci-o, ainda ele estava 'ali para as curvas'.
Morreu o homem que dizia:
"Ganhar, sim; mas pouco. É de alguma debilidade económica que vem a minha liberdade".
A minha humilde vénia.

2006/11/22

As aulas de substituição

Temos assistido desde há algum tempo a "manifestações" de estudantes do secundário contra as aulas de substituição. O assunto não teria importância nenhuma se não se adivinhasse por trás de tudo isto interesses e manobras absolutamente vergonhosas.
Penso que ninguém contestará a ideia de que a questão da educação é mesmo crucial para o País. O panorama nesta área é tristemente mau e é fácil concluir, em consequência, que as nossas fraquezas nesta matéria nos tornam especialmente vulneráveis aos efeitos da "globalização" e de outros fenómenos mais ou menos sazonais. As consequências de tudo isto são devastadoras.
Por todas estas razões o assunto educação merece ser tratado por todos com uma seriedade, quase diria, sagrada. Por todas estas razões também, a todos os agentes da educação (não só professores profissionais, mas também pais, governantes e funcionários) se exige que se coloquem ao nível das circunstâncias e das respectivas responsabilidades.
Pois é neste quadro que surgiram por todo o País, desde há alguns dias, "manifestações" de alunos que começaram por ser contra as aulas de substituição. Os alunos já vêm apresentando entretanto outras razões para o "protesto". Estou seguro que da escalada resultará, em breve, o protesto contra as aulas em geral...
De todo este folclore a que temos vindo a assistir, porém, há uma coisa que fica clara: ninguém afinal contesta as aulas de substituição, a não ser alguns, poucos, professores. Mas, os argumentos que tenho ouvido da boca dos representantes desta ruidosa troupe que agora aprendeu a sair à rua são justamente contra os professores escalados para dar estas aulas. São os professores que se revelam, aos seus olhos, incompetentes para cumprir a sua tarefa.
É tempo de, como se diz, fazer um ponto de ordem à mesa...
Ninguém acredita na espontaneidade destas "manifestações". Parece no entanto que os desígnios de quem anda a manipular toda esta maltinha fizeram ricochete: são os professores que saem mal na fotografia! A conclusão que tiramos de todas estas "manifestações" só pode ser esta: os educadores profissionais, a quem todos nós pagamos salário para educar os nossos filhos, não estão à altura da sua tarefa.
Todos saimos um pouco beliscados por tudo isto. Mas, há hierarquias de responsabilidades e estou certo que a maioria dos professores não se revê nestas manobras e repudiará certamente a manipulação a que os alunos têm sido sujeitos. Era bom que o tivesse manifestado claramente.
O comportamento leviano em matéria de educação é criminoso.

2006/10/29

A internet e os donos do megafone

Gostaria de ter tido a possibilidade de dispôr de um meio como a internet há quarenta ou cinquenta anos. O universo estava mais próximo de nós, conhecíamos “menos” gente, os nossos interesses estavam mais limitados, havia menos “notícias”. Imagino como a internet teria, certamente, tornado bastante interessante a gestão deste meu pequeno universo...
Mas, hoje, os nossos contactos multiplicaram-se muito para além do suportável e daquele valor mágico dos cento e tal que os cientistas apontam como sendo o nosso número “natural” de contactos. As nossas fontes de referência alargaram-se. Hoje podemos saber tudo sobre tudo! E os novos meios usados para as trocas de informação parecem nunca chegar para este fluxo tão grande de infobits em constante e exponencial crescimento.
Antigamente, a gente das nossas relações estava à distância de um passeio a pé, devotar o tempo necessário à nossa família e aos amigos, prosseguir os nossos interesses, ter hobbies, divertir-mo-nos, saciar a nossa curiosidade, enfim, tudo isso era possível e sobrava-nos ainda tempo.
Hoje, para contactarmos diariamente toda a gente que conhecemos no ciberuniverso, levar até ao fim todos os nossos interesses, saciar a nossa curiosidade, esclarecer as nossas preocupações, digerir toda a informação disponível, saber tudo o que se passa à nossa volta ao segundo, conhecer todos os “últimas horas” de todos os orgãos de informação on-line, teríamos de ter uma capacidade que manifestamente nos falta. E já não incluo aqui as matérias novas que toda esta situação por sua vez veio gerar! É um horror. Devíamos ter um cérebro mil vezes maior e uma esperança de vida multiplicada por um factor mil vezes superior.
Mas, não serve de nada culpar o meio. É tão ridículo culpar a internet por tudo isto, como culpar um lápis e o papel que nos permitem escrever as nossas notas, ou um envelope e um selo por permitirem transmitir uma qualquer mensagem a alguém que precisamos de contactar. Em tempos de revolução total no domínio da formação e transmissão do pensamento nunca se viu tanto reaccionarismo na abordagem de todas esta matérias. Platão, no Fedro, também já zurzia forte e feio na escrita porque, dizia ele, obrigava o pensamento a ficar fora do meio onde originalmente tinha sido produzido. A escrita convidava à preguiça. Hoje sorrimos perante estes pensamentos que nos foram, curiosamente, transmitidos através da escrita...!
Muita gente ainda pensa de modo semelhante em relação aos computadores. Mas, nem todos terão a dimensão de Platão...
É verdade, hoje através da internet conhecemos mais gente do que toda aquela que conseguiríamos gerir no curto período das nossas vidas, temos ao nosso dispôr enciclopédias, dicionários e outras fontes de informação que jamais teremos capacidade para absorver mesmo parcialmente, sabemos na hora o que se passa no outro lado do mundo, com links relativos a toda a matéria que se encontra relacionada com o assunto que estamos a analisar, falamos e vemos amigos do outro lado do planeta e usamos livremente som e imagem fixa e em movimento como parte integrante do nosso discurso.
Há por aí uns escribas que se levantam contra tudo o que cheira a tecnologia digital porque não preserva a pureza do lápis e do papel ou o cheiro “natural” das tintas de impressão. Por acaso, eles também tecnologias, sem nada de “natural”...
A internet deve ser, o assunto sobre o qual, a par de coisas novas e importantes, hoje mais asneiras se escrevem...! Sobretudo por estes arrivistas do digital, estes novos-ricos da ciber-sociedade que não dispensam os computadores, mas desdenham dos outros que descobrem novos modos de o usar... Gostaria de ver estes velhos do Restelo digital a voltar ao balcão dos bancos para levantar um cheque! E é verdadeiramente escandaloso o coro de idiotas que, por motivos estrictamente pessoais, se insurge contra as virtudes do novo meio de criação e expressão do pensamento. Cheira-me que toda esta indignação se fica a dever apenas ao facto de terem percebido que perderam o privilégio do uso exclusivo do megafone. É isso que os preocupa. E não me admiraria que fossem os primeiros a querer a instauração de um regime de lápis digital azul se pudessem...

2006/10/24

O roubo da carteira

Foi no local de encontro, antes do jogo com o Porto, junto às rulotes. Na adrenalina que prenuncia a entrada das equipas em campo, há abraços de amigos indiferentes ao barulho do gerador e ao gorduroso cheiro dos couratos, entremeado pelo de um ou outro clandestino charro.
Fui buscar uma rodada de imperiais, puxei da carteira e paguei. À coca, os carteiristas viram que ela voltou para o habitual bolso de trás das calças. No grupo de amigos era-lhes, no entanto, difícil dar o golpe. O erro fatal aconteceu quando um clamor percorreu a multidão: o Benfica sofrera o golo do Estrela. Desloquei-me um pouco da roda dos amigos para tentar ver na TV de uma das rulotes se era o primeiro golo do jogo. O homem de meia-idade que ia à minha frente (disfarçado de adepto, com cachecol e tudo) estacou subitamente, sem razão aparente e sei que foi nessa altura que um seu cúmplice me deu a palmada.
Dei pela ausência da carteira quando quis tirar o cartão para o mostrar à entrada do estádio. Quando me convenci de que não havia nada a fazer tomei um táxi e, macambúzio, regressei a casa para ver o jogo na TV, sem querer pensar no incidente. No intervalo do jogo telefonei para o banco a anular os cartões.
Dormi muito mal, pensando em quão nabo tinha sido e rogando pragas aos carteiristas, que me iriam obrigar a perder muitas horas a pedir novos documentos de identidade, carta de condução, cartões bancários, de saúde, etc..
No entanto, no dia seguinte de manhã cedo, recebi um telefonema de um senhor que me disse ter a minha carteira em sua posse. Contou-me então que deu por ela quando, a dada altura, meteu a mão ao bolso.
Os carteiristas, esvaziada a carteira apenas e tão-só do dinheiro que continha, correndo o risco de, apesar da sua perícia, serem apanhados ao fazê-lo, em vez de atirarem com a carteira para um caixote do lixo, puseram-na no bolso daquele senhor!
Pode ser que eu esteja a efabular e que este gesto tenha sido um reflexo de sobrevivência. Mas prefiro pensar que os carteiristas acharam que bem bastava o prejuízo que estavam a dar ao desconhecido ao palmar-lhe o dinheiro e resolveram fazer as coisas de modo a dar a menor chatice possível.
Levaram o profissionalismo ao seu mais alto nível. Pensaram no seu próximo.
Não inscritos, pela natureza marginal da sua actividade, são muito mais admiráveis que muitos ‘cidadãos exemplares’, dos normais, dos que resolvem os seus pequenos problemas e por aí se ficam. Ao correrem os riscos que correram para me devolverem a carteira, os carteiristas inscreveram-se como cidadãos.
Eu andava à procura de um acontecimento que me levasse a escrever coisas agradáveis, positivas. Longe estava de suspeitar que quem me iria dar esse motivo eram os tipos que me abafaram a carteira...

2006/10/22

Despenalização do aborto

Mais de metade dos portugueses em condições de votar afirmam que não irão pronunciar-se sobre a despenalização do aborto.
Eu gostava de ‘dizer bem’ de alguma coisa, mas os meus concidadãos não ajudam nada. Continuam a demitir-se.

2006/09/29

Olhar-se ao espelho

Registo a perplexidade de Miguel Vale de Almeida:
Parece que um quarto dos portugueses não se importavam que Portugal fosse parte do Estado Espanhol. A mim não me choca nada, desde um ponto de vista nacionalista - um ponto que não tenho. O que me choca é que haja tanta gente que pensa que para ter uma sociedade (mais) decente é preciso imaginar a pertença a outro estado, em vez de mudar o estado das coisas no sítio onde acontece viver-se.

Pois aqui é que está o busílis.
A pergunta complementar que se deveria fazer neste inquérito era: "com o que é que está disposto a contribuir para mudar o estado de coisas que o faz responder assim?" E propor alternativas do tipo 'oferecer trabalho voluntário de limpeza das matas, um fim-de-semana por ano'; 'não trazer o carro para dentro da cidade umas quantas vezes por semana'; 'começar finalmente a escolher o lixo e colocá-lo dentro do recipiente apropriado'; 'suscitar e participar regularmente nas reuniões da escola dos meus filhos'; 'interessar-se pelos problemas do bairro em que vivo e participar nas associações de moradores'; 'abdicar de umas noites de copos e inscrever-me num curso de valorização profissional', e assim por diante. O previsível resultado não seria, no entanto, fiável: das preocupações das pessoas já há muito desapareceram quaisquer vestígios de cidadania activa e, portanto, dariam respostas baseadas em intenções nunca concretizadas.
O que muito mais que 25% dos portugueses, para não dizer quase todos, querem é que haja alguém que lhes trate da vidinha: "eu cá já pago os meus impostos, agora ‘os gajos’ que tratem de pôr as coisas a andar como deve ser". E como cá já ninguém tem esperança em que haja alguém que resolva os problemas, quem sabe se os espanhóis... "Afinal eles são muito mais ricos que nós!"
Só um quarto é que tomou aquela posição, mas foi por causa dos preconceitos nacionalistas. Se não, seriam muitos mais.
Eu, que também não vejo as coisas de um ponto de vista nacionalista, sou levado a concordar com os tais 25%. Dizem que somos tão bons como os melhores quando temos de emigrar; uma das razões será porque lá fora a hierarquia é mais clara, assim se tornando mais evidente quem manda e quem tem de obedecer.
Já que não temos capacidade de participação autónoma nos processos, se calhar é preciso vir alguém de fora para organizar as nossas capacidades. E, potenciado pela integração europeia, é isto mesmo que vai acontecer: vamos ser funcionários de segunda, mal pagos, ao serviço dos mandantes primodivisionários da Europa.
O tempo próprio para poder ter interferido neste estado de coisas foi quando entraram em catadupas fundos europeus destinados à valorização dos portugueses, nos primórdios da nossa entrada na Comunidade. Esse tempo foi perdido entre interesses comezinhos, que para tudo serviram menos para a formação profissional dos que nos cursos se inscreviam.
As entidades promotoras ficaram com mais capital para gerir; os formadores obtiveram ordenados muito superiores aos do ensino regular; os formandos ganhavam umas migalhas deste bolo que davam para desenrascar; finalmente o Estado também se interessou muito menos com o destino dado aos dinheiros do que com a apresentação estatística de cursos, que justificava a continuação dos fluxos de dinheiro.
Tudo se fez a fingir e é por isso que me custa a crer que se possa dizer que Cavaco foi o melhor PM a seguir ao 25A.
Ficámos um conjunto de ignorantes, académica, profissional, cívica, humanamente mal formados.
Ainda teremos de ir mais ao fundo para começarmos a olhar-nos ao espelho e vermos no que demos?

2006/09/25

ONG versus visão mercantilista do mundo

Transcrevo uma notícia do Jornal de Notícias de sábado passado:

O presidente da Assistência Médica Internacional (AMI), Fernando Nobre, acusa a actual administração norte-americana de pretender "subjugar toda a sociedade humana".
No último dia do encontro "Psiquiatria de Catástrofe e Intervenção na Crise", organizado pelo Hospital Militar de Coimbra, Fernando Nobre disse que o presidente dos Estados Unidos e os seus partidários encaram o Estado e os cidadãos "como simples sustentáculos ao serviço do seu único objectivo", que passa pelo "mercado livre, competição, diminuição do peso do Estado, desregulamentação, reestruturação dos sindicatos, mas desde que sejam domesticados".
Para o presidente da AMI, trata-se de uma "visão mercantilista" do Mundo e da humanidade e acusou os seus promotores de pretenderem "a maior acumulação possível de riqueza para alguns eleitos, mesmo que para atingirem tal fim seja necessário o desencadeamento de guerras injustificadas que matarão milhares ou milhões de seres humanos".
"Esta visão, que elegeu o mercado como novo bezerro de ouro, recusa-se a ver o sofrimento que provoca a milhões de seres humanos vistos como meros produtos descartáveis", sublinhou Fernando Nobre.
A "força motriz das forças actualmente dominantes" no Mundo, "os pobres, os desempregados e os fracos são vistos como meros incompetentes, culpados da sua triste sorte, não merecendo ser defendidos, nem ter voz", considerou.
A visão oposta, "que fiz minha, corporizada pelas Organizações Não-Governamentais, expressão da sociedade civil mundial organizada, quer colocar o ser humano no cerne de todas as questões", frisou Fernando Nobre.


Não conhecendo bem a AMI, tenho dela a melhor das impressões. Fernando Nobre é alguém que conhece os problemas in loco, já que é nos terrenos em que a ajuda humanitária é necessária que a sua entrega ao seu projecto se processa.
E também tenho a opinião de que as ONG são hoje em dia as instituições alternativas, "expressão da sociedade civil mundial organizada", num mundo dominado por estratégias meramente mercantilistas.
Mas, depois de ouvir da boca de José Mattoso (um inquestionável exemplo de entrega desinteressada a causas, conhecida a sua acção em Timor) que apenas 30% das receitas das ONG são, em média, de facto aplicadas para o fim em vista, é preciso tomar em linha de conta esta realidade.
Isto é, terá de haver um esforço de inverter o destino das despesas e aumentar a percentagem realmente gasta com o destino para que foram criadas as ONG.
Se não corre-se o risco de que os objectivos sejam subvertidos e de que a principal motivação das ONG passe a ser dar empregos (mais ou menos bem remunerados; no caso dos famosos pareceres técnicos especializados -- que muitas vezes nunca são utilizados -- são fortunas) a uns tantos habitantes dos países de origem.
Tenho a este respeito a opinião que Miguel Sousa Tavares expressou a propósito das Fundações. Diz ele que "entre nós as Fundações têm como objectivo principal a fuga aos impostos". Por isso recomenda que se investigue "quanto é que elas gastam realmente em filantropia e quanto é que recebem de volta em isenções fiscais e outros benefícios concedidos pelo Estado", e defende que as respectivas contas deviam ser tornadas públicas.
É o mesmo que defendo quanto à contabilidade (receitas e custos) das ONG, embora por motivos não necessariamente coincidentes.
É que, além do mais, seria uma boa maneira de os potenciais dadores decidirem a quem entregar os seus donativos, porque ficavam com uma ideia mais precisa de como estes seriam gastos.