2011/06/04

Sobre a estupidez e os espasmos da máquina alemã

Dois artigos que se cruzaram, por acaso, na edição de hoje do Público. Afinal acabam a cumprimentar-se (1). Paulo Varela Gomes reflecte sobre a estupidez. Na ciência, opina, é preciso ser-se, ou fazer-se um bocado estúpido, e explica porquê. "É evidente que a estupidez científica", diz, " é útil para impedir que se tirem conclusões precipitadas ou se generalize abusivamente (...) Para o bem ou para o mal, sem estupidez não há ciência."
A "estupidez" de que fala, em tom crítico, mas certeiro, Paulo Varela Gomes é uma outra forma de colocar a velha questão da pergunta científica (2).
Fernando Mora Ramos, noutro ponto do Público fala dos pepinos. "Uma bactéria no interior de pepinos espanhóis lança a morte entre os alemães", mas, argumenta, "é antiga a facilidade com que se encontra um bode expiatório a sul."
A verdade é que os austeros alemães, trabalhadores organizados, sólidos, dedicados, precisos, enganaram-se.
Pode-se argumentar: esta generalização é, como todas, abusiva. Mas, pode-se também especular: será que os alemães não foram sequer suficientemente estúpidos? Pode-se argumentar: ter-se-ão mostrado incapazes de formular a pergunta? Estranho, quando se observa a sua tradição e o seu progresso científico.
Ou terão os alemães afinal sido suficientemente estúpidos, mas, como bem diz o Paulo Varela Gomes, com aquela "estupidez científica [que] vem servir de suporte à estupidez (ou conveniência) política e social de quem não deseja outro futuro que não o da imbecilidade colectiva?"
Doravante podemos perguntar: serão ou não os alemães suficientemente estúpidos para podermos neles confiar? A dúvida está instalada e a suspeita de que a máquina alemã não é tão fiável como nos querem fazer supor é perfeitamente legítima. Só um estúpido é que não vê.


(1) Não tenho links; quem quiser ler terá de comprar o periódico.
(2) Sobre isto aproveito para aconselhar a audição desta entrevista de António Coutinho no programa "Quinta Essência" de ontem na Antena 2. Vale mesmo a pena ouvir toda a entrevista, sobretudo no que se refere a esta questão da tal pergunta. A incapacidade colectiva de a formular, a falta de uma cultura de formulação da pergunta (a falta de uma certa cultura de estupidez, por assim dizer...)  é, quanto a mim, a causa de todos os nossos males.

3 comentários:

Rui Mota disse...

É muito provável que a "dose de estupidez" dos alemães não seja muito menor do que a de outros povos.
O que vamos lendo por cá, são as opiniões dos líderes políticos alemães (i.c. Merkel) que, estúpidas ou não, são "soundbites" para o eleitorado da CHU.
Dito de outro modo, não sabemos se os alemães pensam da mesma forma que a sua lider política, ainda que possamos compreender as genuínas preocupações de quem empresta. É a velha história dos devedores: "se eu dever 1000 euros, quem está tramado sou eu; mas, se eu dever 1 milhão de euros, quem se trama é o credor"...
Dívidas à parte, não podemos culpar os alemães (os alemães!) pelos nossos erros. Quem viveu sempre à tripa forra, fomos nós. Não basta trabalhar mais horas, é preciso trabalhar melhor. E isso os alemães fazem-no melhor que nós.
Como escrevia o Alberto Pimenta, há uns anos no JL, "toda a gente pensa que os alemães trabalham muito e gostam muito de trabalhar. Eu, que trabalhei 10 anos na Alemanha, pude testemunhar o contrário. Eles gostam tanto de trabalhar como nós. Com uma pequena diferença: como sabem que têm de trabalhar, fazem-no o melhor possível".
Por isso, os seus produtos têm mais qualidade, vendem melhor e eles são mais ricos, acrescento eu.

Carlos A. Augusto disse...

Duas coisas. Primeiro, esta questão dos pepinos não tem a ver com o eleitorado da Merckl, nem sequer foi iniciado por ela. Aliás ela vai ser vítima inesperada disto, creio eu. O caso dos pepinos é o de uma falha clamorosa da "máquina alemã" que eles tentaram chutar para canto...
Segundo, a questão do trabalho e das virtudes do modelo de organização laboral alemão (embora não seja o tema deste post), são questões que temos de analisar com cuidado. Para que raio precisamos nós de Mercedes ou Audis fantásticos, produto de uma organização laboral perfeita (já nem falo de submarinos...)? É o produto que está em causa e tudo o que ele gera. Se os portugueses não tivessem comprado tantos Mercedes ou Audis, não tinham de pedir tanto dinheiro emprestado. E não gastavam tanta massa em combustível.
O que quero dizer é que o modelo de trabalho é indiferente se o produto não interessa e o modelo económico (que nos força a comprar carros alemães e a cavar a dívida para o fazer) se baseia em produtos que verdadeiramente não nos intereessam, nos são artificialmente impingidos, mas são feitos por uns gajos organizadíssimos. Que interesse tem trabalhar na perfeição para fazer coisas inúteis, socialmente injustificadas e injustas e corromper a sociedade com isso?!
Preferia um Portugal sem inutilidades, sem crédito bancário "vendido" como se a minha vida dependesse disso. Não depende! Preferia uma vida sem inutilidades, mas com sol, bons amigos e bom peixe... E preferia uma boa organização de trabalho para combater a fome, a guerra e a doença. Agora, para fazer Mercedes...!
O grau de organização e de perfeição do trabalho alemão ou chinês é tão imporantes como os produtos que produzem... E são igualmente constrangedores para os trabalhadores.
"Arbeit macht frei" uma ova!

Rui Mota disse...

Duas questões:
1) A Merkel "fala" para dentro do seu partido e defende a sua reeleição. A questão dos "pepinos" (que já foram espanhóis e agora parecem ser rebentos de "soja" alemães), é uma falha da máquina de propaganda. Nisso estamos de acordo.
2) Trabalhar mais ou menos tempo não interessa nada. O que interessa é trabalhar bem. A maior productividade alemã tem a ver com a organização do trabalho (por alguma razão a Auto Europa é uma das mais rentáveis empresas sediadas em Portugal: a gestão é alemã). Se os alemães (ou os finlandeses) produzem mercedes (ou nokias) e nós os consumimos, a culpa não é deles. Nós não os produzimos e quando vamos ao mercado para os comprar, compramos os melhores do mercado. Saíu hoje uma entrevista no "Publico" com o Augusto Mateus, onde ele explica isto muito bem.
Os problemas de Portugal só podem ser resolvidos no quadro europeu e nisso a UE também tem culpas. Mas, a UE são os países que a compõem e se Portugal não tem política europeia é difícil fazer face ás grandes potências. Na realidade, há muito pouca coesão e a economia europeia continua a ser feita a duas velocidades: os grandes países determinam a marcha dos acontecimentos. Não basta criticar os alemães, ou os países do Norte da Europa. Temos de olhar para dentro e ver porque estamos aqui. Ora bem, 70% dos portugueses votam há 35 anos nos dois partidos que sempre nos governram. Não vale a pena culpar os estrangeiros pelos nossos males...