2010/05/01

Indústrias criativas

Estamos a viver uma situação verdadeiramente sui generis em Portugal. O governo quer fazer o que quer. Tem a legitimidade governativa para o fazer. Mas a oposição não quer que o governo faça o que quer. Quer que o governo faça o que ela quer. Mas sem a legitimidade governativa. Embora com outra  legitimidade para assim proceder, por ser maioria. O governo divide-se. Uma parte anuncia que quer fazer o que quer. Outra parte anuncia que quer fazer o que a oposição quer. Assim, a oposição faz o que quer, sem querer e sem ter legitimidade para o fazer, e o governo faz de oposição a si próprio já que vemos a oposição a limitar-se a querer fazer de governo. Sem poder.
Nem tudo o que o governo quer e faz, nem tudo o que a oposição quer ou pode fazer, porém, interessam minimamente ao País.
Mas governo, oposição, presidente da república, presidente do supremo, procuradores, procurados e demais individualidades, excelências, lá teimam em ir fazendo o que querem e o que não devem. Sem pudor.
O País vai assistindo a tudo isto, atónito e exaurido, com os seus horizontes cada vez mais acanhados. Iminentemente teso, vai ouvindo dizer que cada português deve não sei quantos milhões ao estrangeiro. Iminentemente aterrado, vai assistindo aos "ataques" dos "mercados" --que fazem o que querem e querem o que fazem, com ou sem legitimidade, pouco importa. Iminentemente incrédulo, vai ouvindo falar, de uma crise sem precedentes e de uma situação excepcional, que requer medidas excepcionais.
O País ouve falar da crise, observa a proeminente curva abdominal dos seus anafados arautos, repara no anel brilhante que reluz nos seus dedos, olha para a sua própria barriga encolhida, para os seus dedos desanelados, e deduz, com sabedoria, que a excepção das medidas excepcionais vai pesar sobre as costas dos clientes habituais.
Enquanto, olha para tudo isto, teso, aterrado e incrédulo, o País vai vendo o desfile carnavalesco das inacreditáveis comissões de inquérito e suas inúteis inquirições. Vai-se dando conta de que a máquina de produção de escândalos os cospe a uma cadência incomensuravelmente maior do que a capacidade das ditas comissões para os investigar. Vai-se dando conta de que a máquina judiciária não pode nisto ajudar porque gripou. Vai olhando para os gestores da massa falida pagos a peso de ouro, que conduzem grandes carros puxados por juntas de boys. Vai ouvindo falar das viagens da Medeiros e das incríveis justificações inventadas para as pagar. Vai ouvindo falar de uns submarinos que assentam que nem luvas nos desígnios de não se sabe bem ainda quem, embora se suspeite. Submarinos que, à falta de batalha naval, serão preciosos --as excelências têm disso a certeza-- para vigiar um mar cuja exploração o senhor presidente da república acha que pode no futuro --quando os submarinos já estiverem, quiçá, a precisar de peças novas--  ajudar a evitar que a economia meta ainda mais água. O País vai sendo seduzido, tele-guiado, conduzido a aceitar uns megaprojectos absurdos, de méritos e propósitos duvidosos ou mesmo estruturantemente inúteis. Projectos que lhe são enfiados pela goela abaixo, à força e sem dó, e lhe custarão um dinheirão, que o País não tem, mas que as agências de rating vão cuidando que lhe saia a um preço que os grandes especuladores farão o favor, sem preço, de o obrigar a pagar. Se não pagarem desce-lhe o rating para ter de pagar mais! Assim o País já tem objectivos pelos quais pode lutar. Luta para pagar o preço dos olhos da cara que tudo isto lhe vai custar, pelos séculos dos séculos que aí hão-de vir, amen, amen!, que o País vai afinal poder parar porque o Papa vai cá estar e que jeito que vai dar.
Certamente por tudo isto se fala hoje tanto --e mais uma vez com a ajuda preciosa do senhor presidente da república-- de "indústrias criativas."
Porque tudo o que aqui se passa hoje, em matéria de orientação e actuação política, é de facto o produto de uma pujante, dinâmica, eficiente e nunca como hoje tão espantosamente delirante, indústria criativa. Qual música, qual pintura, qual literatura, qual teatro! A criatividade mudou-se hoje para a política. De S. Bento a Belém está estendida uma linha de montagem que cria fa(c)tos às riscas, à medida destes artistas, moda radical com casaco de banda larga, gravata bordada a ponto-crise e PEC à tiracolo.
A pachorra para aturar tudo isto é que já há muito se esgotou. Trata-se de uma linha de montagem cujo turno era urgente substituir.

3 comentários:

Rui Mota disse...

Entretanto, lá longe, na Grécia...

Carlos A. Augusto disse...

... vislumbra-se o nosso velho calcanhar de Aquiles!

Unknown disse...

Pois é, eles comem tudo, eles comem tudo, eles comem tudo e deixam-nos a conta...