2021/02/16

Pandemia: avanços e recuos

Há um ano atrás, o Covid19 ainda não tinha chegado a Portugal. Seis meses mais tarde, e apesar de todas as vicissitudes conhecidas, o país orgulhava-se de ter um dos melhores "ratios" de internados/mortes, por milhão de habitantes, em toda a Europa. O "milagre português", como chegou a ser apelidado pela imprensa estrangeira, deveu-se fundamentalmente a três ou quatro medidas atempadas: confinamento severo (que incluiu escolas, recintos desportivos e espectáculos em geral); encerramento de fronteiras e suspensão de todas as actividades não essenciais. Factores aleatórios, como a situação geográfica, a diminuição de turismo em fim de estação ou um clima mais ameno, contribuíram para este sucesso, mas não explicam tudo. O medo, perante um vírus desconhecido para o qual não eram conhecidos antídotos e o "respeitinho", inculcado ao longo de décadas no espírito dos portugueses, fez o resto. 

Embalados pelo "sucesso" desta campanha e convencidos que o pior já tinha passado, os portugueses voltaram a fazer o que sempre fizeram no Verão: férias e praia. Diga-se, em abono da verdade, que também o governo contribuiu para a euforia geral, já que Portugal se candidatou a tudo o que era prova desportiva internacional (Fase Final da Taça dos Campeões Europeus, Grandes prémios de Fórmula 1 e de Motos no Algarve...) certamente na esperança de obter receitas extraordinárias, num ano de pandemia. Como se tudo isto não chegasse, descurámos a 2ª vaga, anunciada desde Janeiro do passado ano pela OMS, quando o vírus foi detectado na China. 

Como previsto, a segunda vaga chegou e, para nosso "azar", mais cedo do que esperávamos. Pior: não só chegou mais cedo, como continuava a não haver uma vacina que pudesse limitar os danos. Estávamos em Novembro e o aumento exponencial de infectados e de mortes era já um dado adquirido. Perante as projecções conhecidas, que fez o governo? Anunciou um novo confinamento, mas "suave": Ao contrário do primeiro, que teve 25 excepções, este segundo teria 52, as escolas manter-se-iam abertas e haveria computadores para todos os alunos que necessitassem de seguir as classes em casa. Um confinamento, pensado para um mês, que obrigaria a um sacrifício inicial, mas seria compensado com uma abertura na época natalícia, quando as famílias estão juntas "para oferecer prendas e comer o bacalhau e o bolo-rei"... Já a nível internacional, não haveria limitações e toda a gente (emigrantes incluídos) podia visitar Portugal por esses dias...

O que se passou, entretanto, é conhecido: com a abertura de fronteiras e a ausência de testes nos aeroportos, aumentaram os contágios, agora também provocados por estirpes novas (a inglesa, a brasileira e a Sul-Africana), para as quais não sabemos se, as vacinas existentes, são efectivas. Junte-se a este cenário, uma das populações mais envelhecidas da Europa, as temperaturas excepcionalmente baixas de Janeiro (o Inverno mais frio dos últimos 20 anos!), num país onde a maioria das casas são mal isoladas e temos aqui reunidos os ingredientes para a chamada "tempestade perfeita": o número de incidências, atingiu proporções catastróficas, com picos diários de 15.000 infectados e 305 mortos, um "record" mundial em termos relativos!   

Perante tal calamidade, "soaram as campainhas" no governo. Portugal pediu ajuda ao estrangeiro, para colmatar as insuficiências de pessoal qualificado, no que foi correspondido pela Alemanha, França e Luxemburgo, que já enviaram equipas médicas para a área de Lisboa. Entretanto, também a Áustria se mostrou disponível para receber doentes portugueses e outros países poderão seguir-se. No terreno, os hospitais montaram tendas de rastreio e tratamento diferenciado, agora que os doentes Covid foram separados dos restantes. 

Resta falar das vacinas: as da Pfizer, começaram a chegar em Dezembro e, desde o dia 27 desse mês, que a população prioritária (idosos com mais de 80 anos, residentes em lares e pessoal sanitário) começou a ser vacinada. De acordo com os números apresentados até ontem (15/2) teriam sido recebidas 694 800 doses, com as quais foram vacinadas 533 070 pessoas. Meio milhão de vacinas em 51 dias dá uma média aproximada de 10 000 vacinas diárias (1ª e 2ª dose). A manter-se tal ritmo, no fim do ano terão sido vacinados cerca de 3 650 000 portugueses (1/3 da população), quando a meta anunciada pelo governo é de 7 milhões de portugueses vacinados até ao fim do Verão (o que corresponde aos tais 70% necessários para atingir a "imunidade de grupo"). A justificação do governo, para uma tão baixa percentagem de vacinados nestas primeiras 7 semanas, deve-se à falta de vacinas. Um problema de produção/distribuição das farmacêuticas, que não têm cumprido com os contratos feitos com a UE. Acresce que Portugal comprou uma quantidade menor de vacinas a que tinha direito (quota de cada país) e parte das vacinas excedentes foram para França e para a Alemanha. Por outro lado, países como Israel, compraram directamente às farmacêuticas, ainda que a um preço mais elevado (a troco do fornecimento de dados dos seus pacientes aos fornecedores), o que lhe permitiu vacinar metade da população em 6 semanas. É caso para dizer "o barato, sai caro"...

Outra questão que parece não reunir consenso é o do encerramento/abertura das escolas. Os professores/pedagogos são unânimes em reconhecer que o ensino presencial é sempre preferível ao ensino à distância. Até porque nem toda a gente tem computador em casa e, quando tem, muitas vezes não tem "rede" que lhe permita seguir as aulas "online". Acontece com frequência no interior de Portugal. Acresce que muitos dos computadores prometidos não chegaram aos interessados. Por outro lado, o encerramento das escolas nas últimas três semanas, parecem ter contribuído para uma redução significativa dos contágios. Os números demonstram isso: após o "pico" de Janeiro, as incidências têm vindo a diminuir significativamente e ontem já totalizavam 4482 internados e 90 mortes, respectivamente. Uma queda de mais de 70%. Algo é algo.   

Estamos em plena 3ª vaga e todos os especialistas dizem que virá uma quarta, lá mais para o fim do ano. No início de um processo que se prevê longo e difícil, muita coisa pode e deve ser melhorada. Desde logo, a preparação atempada, o tal planeamento que continua a ser uma pecha portuguesa. Com plano, podemos falhar; sem plano, falhamos de certeza. Para que da próxima vaga, possa correr melhor. 

2021/01/25

Eleições Presidenciais: O esperado e as surpresas

O resultado das eleições presidenciais, ontem realizadas, não deve surpreender os seguidores destas coisas, tanto mais que o vencedor estava anunciado há muito e a questão principal nunca se pôs em termos de quem podia ganhar a Marcelo, mas qual o candidato que mais hipóteses tinha de forçar uma segunda volta. Esta era a questão central.

Depois, havia outras questões secundárias, mas nem por isso menos importantes (em termos simbólicos), que era a de saber se, atrás de Marcelo, ficaria uma democrata (Ana Gomes) ou um populista de extrema-direita (André Ventura). 

Finalmente, o nível de abstenção que, em tempos de pandemia, podia comprometer o próprio acto eleitoral. Marcelo, que "não dá ponto sem nó", chegou a aventar a hipótese de uma 2ª volta, caso a participação eleitoral fosse baixa, o que impediria o vencedor de conseguir os almejados 50% + 1, necessários para  uma vitória à primeira.

Em termos globais, as votações nos principais candidatos, não estiveram muito longe das sondagens publicadas nas últimas semanas: Marcelo (60,7%), Ana Gomes (12,97%), André Ventura (11,9%), João Ferreira (4,32%), Tiago Mayan (3,22%) e Vitorino Silva (2,94%), cumpriram os mínimos esperados. As abstenções atingiram 60,51% o que, sendo imenso, ficou abaixo das piores estimativas. Também aqui, não houve propriamente surpresas, para mais se tivermos em conta o período de confinamento que atravessamos. 

Primeira conclusão: venceram as forças democráticas (88%) que derrotaram as forças anti-democráticas (11,9%).

Segunda conclusão: os dois primeiros classificados (Marcelo e Ana Gomes) concorreram sem o apoio dos seus partidos o que, no caso de Marcelo, não era necessário, pois o presidente recebeu votos de todos os quadrantes políticos. Já Ana Gomes, que se apresentou como candidata à revelia do seu partido, seria ignorada pela direcção do PS, que escolheu apoiar Marcelo, o candidato preferido do primeiro-ministro. 

Terceira conclusão: os partidos de esquerda (PCP, BE) concorreram com candidaturas próprias (João Ferreira e Marisa Matias) abdicando de uma convergência à esquerda (que podia passar por um apoio a Ana Gomes) o que lhes foi fatal. Foram os grandes perdedores da noite.

Quarta conclusão: o bom resultado, conseguido pelo candidato "anti-sistema", não deve surpreender, já que todas as projecções apontavam nesse sentido. Mais surpreendente, foram as percentagens obtidas nos distritos de Portalegre, Évora e Beja, onde tradicionalmente o PCP tem mais apoiantes e onde Ventura ficou à frente dos comunistas. 

Quinta conclusão: Tiago Mayan, o candidato da Iniciativa Liberal, conseguiu melhor resultado do que o partido a que pertence, o que pode indicar uma subida (relativa) dos "liberais" no futuro. 

Sexta conclusão: em termos globais, pode dizer-se que a "direita" (a democrática e a autoritária) ganhou estas eleições e que a "esquerda" foi a grande derrotada. Porque se trataram de eleições presidenciais, onde as candidaturas são uni-pessoais e os militantes são livres de votarem em candidatos da sua preferência, os resultados de ontem dificilmente poderão ser extrapolados para eleições futuras, sejam as autárquicas sejam as legislativas. De resto, já depois de apurados os votos, a RTP/Católica apresentou uma sondagem feita à boca das urnas, sobre eleições legislativas. À pergunta "se houvesse eleições legislativas hoje, em que partido votaria?", responderam 4000 entrevistados: PS 35%, PSD 23%, Chega 9%, BE 8%, IL 7%, CDU 6%, Pan 2%, CDS 2%, Livre 1%. De acordo com esta sondagem, a Esquerda teria 52% dos votos e a Direita 41%, o que possibilitaria uma nova coligação maioritária de esquerda no parlamento.  

Sétima conclusão: votos como os de Ana Gomes, por exemplo, não servirão de muito no futuro, já que o seu espaço de acção diminuiu dentro do PS, onde os anti-corpos gerados são agora maiores. Já o voto em Ventura, serviu para testar a popularidade do líder num partido uni-pessoal, criado à sua imagem. Ventura, que tinha prometido demitir-se da liderança do partido (caso ficasse atrás de Ana Gomes), cumpriu a promessa para (no minuto seguinte) anunciar recandidatar-se, caso fosse esse o desejo dos militantes...Já vimos este "filme" em qualquer lado (Sá Carneiro, Cavaco Silva, etc...) pelo que nem sequer é original. Muito usado por ditadores em potência, que se apresentam como líderes insubstituíveis (Berlusconi, Conti, Chavez, Salvini, Wilders, Baudet...).       

Oitava conclusão:  Os fracos resultados de João Ferreira e de Marisa Matias, ainda que por razões diferentes, devem obrigar os partidos a que pertencem (PCP e BE) a reflectir sobre temas e políticas de unidade que esses mesmos temas podem gerar no futuro. Para o PCP, a sua incapacidade em lidar com temas fracturantes, é notória (eutanásia, aborto, adopção, touradas) para não falar no apoio a regimes ditatoriais como a Coreia do Norte, Angola, Russia ou a Venezuela, que alienam o partido das gerações mais jovens. O resultado de Marisa Matias, terá mais a ver com a posição do Bloco na votação do último OE e a transferência de votos do BE para Ana Gomes (voto útil), que impediu o 2º lugar de Ventura.

Para Marcelo, o vencedor incontestado, a tarefa não se afigura fácil: o governo (minoritário) do PS, está a braços com a maior crise epidémica, económica e social do seu mandato. Ao falhar uma "2ª geringonça",  o governo hipotecou a possibilidade de um acordo à esquerda. À direita, Marcelo também não tem alternativa, já que a direita está agora mais fragmentada que nunca e refém do um partido anti-sistema, com o qual ninguém parece querer governar. As trapalhadas do governo sucedem-se e não é improvável que a legislatura não chegue ao fim. Nesse caso, haveria de novo eleições, um cenário que ninguém, à excepção do Chega, deseja. Adivinha-se um segundo mandato difícil e mais interventivo.

Finalmente, a organização: não se compreende que continuemos a votar pessoalmente e a perder horas em filas, para mais numa situação de pandemia, que recomendava um maior distanciamento e regras sanitárias apertadas. Porque não instituir o voto por correspondência e alargar o período eleitoral por mais do que um dia? Ou introduzir o voto electrónico que, de resto, já foi testado no passado? Depois: o boletim de voto, tinha 8 candidatos. O primeiro candidato do boletim, nem sequer tinha obtido as 7500 assinaturas necessárias para a sua legalização, mas tinha o seu nome e foto impressa no boletim! Custava muito mandar imprimir novos boletins de voto?

Seguem-se, no Outono, as eleições autárquicas. Até lá, resta-nos o combate à pandemia e as suas consequências. A prioridade das prioridades. Para o presidente e para o governo. 

2021/01/23

Eleições Presidenciais: contas (im)prováveis

Em dia de reflexão, as reflexões possíveis sobre umas eleições atípicas que, no último mês, mobilizaram os portugueses - candidatos e votantes - para mais um acto eleitoral. 

Desde logo a especificidade destas eleições, em meio de uma pandemia que, inevitavelmente, vai influenciar o resultado, dado o nível de abstenção esperado. O próprio presidente da república admitiu, esta semana, não ser improvável uma segunda volta, caso a percentagem de votantes seja inferior a 30%. Percebe-se o receio de Marcelo: se a abstenção ficar acima de 70%, é bastante provável que haja uma distorção das percentagens previstas e, nesse caso, o candidato mais votado (o próprio Marcelo) pode não atingir os 50%+1, necessários para eleger um presidente à primeira volta. A única vez que tal aconteceu foi em 1986, quando Soares e Freitas do Amaral necessitaram de uma segunda volta para apurar o vencedor. Todos os restantes presidentes (Eanes, Sampaio, Cavaco) ganharam sempre à primeira volta as eleições que disputaram, da mesma forma que todos (inclusive Soares) fizeram dois mandatos (dez anos no total). 

Depois, a pandemia em si, que nas últimas semanas atingiu números impensáveis há um mês e tornou Portugal o país do Mundo com mais mortes por milhão de habitantes (!?). Perante tal quadro, seria avisado adiar estas eleições ainda que, do ponto de vista formal, tal não fosse possível sem alterar a Constituição, o que, desde logo, se revelou uma impossibilidade de calendário. É, portanto, em clima de estado de excepção (próximo do estado de calamidade) que as eleições vão disputar-se amanhã. Com vista a reduzir as filas de votantes e os perigos de contágio implícitos, foi possível aderir ao "voto antecipado", no qual participaram cerca de 250.000 votantes, que já votaram no passado dia 17. De mal a menos. Como sempre acontece nestas coisas feitas em "cima do joelho", os votantes do passado fim-de-semana esperaram horas nas filas para poderem votar, o que não abona em favor da organização. Porque não prolongar a votação por dois dias (sábado e domingo, por exemplo)? 

Para além da pandemia, outra das razões que podem contribuir para a pouca participação, é o facto do vencedor ser conhecido antecipadamente. Marcelo Rebelo de Sousa é, de há muito, o político mais popular do país e, não por acaso, foi o último a anunciar a sua candidatura, pois sabe não necessitar de fazer campanha para ganhar estas eleições. Basta-lhe "estar". De resto, também aqui se repete a história: todos os presidentes, depois do 25 de Abril, foram reeleitos.

Finalmente, a campanha eleitoral, que decorreu ao longo de um mês e constou de duas partes distintas: os debates e as acções públicas, ao ar livre e em espaços confinados. Foi uma campanha atípica, como não podia deixar de ser, onde rapidamente se perceberam as tendências predominantes. Nos debates, em que os candidatos tentaram em 30 minutos (15 para cada lado) apresentar as suas ideias; e nas acções, onde não havia contraditório e as posições ficaram mais claras. 

Os debates

Foram "mornos" e pouco motivadores. Entre um presidente em funções, experiente em evitar provocações (Marcelo) e as arruaças de um candidato sem ideias, que fez da provocação a sua arma (Ventura), restavam cinco candidatos democratas, três dos quais representantes de forças partidárias (Marisa Matias, João Ferreira e Tiago Mayan) e dois independentes (Ana Gomes e Vitorino Dias). Mais do que apurar "vencedores", ainda que nalguns momentos a clarividência de Marcelo tenha sido evidente, a sensação que ficou, foi a da maior parte dos candidatos, terem um discurso mais próximo de um candidato a 1ª ministro do que um candidato a presidente da república. Pelos vistos, nem todos conheciam os poderes atribuídos pela Constituição. Neste campo, o único candidato que propôs alterar a Constituição (para limitar os poderes do Parlamento) foi o candidato da extrema-direita que, como todos os ditadores em potência, não gosta de ser escrutinado....Já ouvimos este discurso em qualquer lado.

As campanhas 

Foram esparsas e confinadas, o que não aumentou a interesse pelo acto eleitoral. Marcelo (vencedor antecipado) deixou praticamente de fazer campanha de rua, limitando-se a aparecer em lugares ou cerimónias escolhidas, enquanto os restantes candidatos procuraram um contacto mais pessoal, ainda que reduzido em participantes. Foram utilizados mais meios tecnológicos (plataformas "zoom" e outras) o que permitiu abrir o leque de participantes, mas nem tudo correu bem. Ter trazido a campanha para a rua, ajudou, no entanto, a melhor compreender a mensagem e o comportamento dos candidatos. Isso foi mais visível na campanha de Ana Gomes (a candidata democrata, mais bem posicionada, depois de Marcelo) e na campanha de André Ventura, que usou e abusou da demagogia habitual, para chamar as atenções dos incautos. Aparentemente, o "tiro saiu-lhe pela culatra", seja pelas manifestações de repúdio que encontrou em Serpa, Coimbra, Évora e Setúbal (foi o único candidato vaiado), seja pela perda nas intenções de voto, onde seria ultrapassado por Ana Gomes, que recolhe desta forma os dividendos do "voto útil" de outras candidaturas democratas. 

Chegados aqui, resta-nos esperar por domingo. De acordo com a maioria das sondagens, publicadas na última semana, os resultados não devem afastar-se muito do quadro abaixo. Isto, no que respeita o lugar dos candidatos. 

Partimos de um cálculo simples: somámos as percentagens, de cada candidato, apuradas pelas quatro principais sondagens publicadas (RTP/Público/Católica, SIC/ISCTE/ICS, TVI/Pitagórica/Observador e TSF/JN/DN) e dividimos o total de cada um, por 4. Os resultados, deste inquérito "caseiro", foram:

Marcelo Rebelo de Sousa - 61,5%

Ana Gomes - 14%

André Ventura - 10%

João Ferreira - 4,9%

Marisa Matias - 4,2%

Tiago Mayan - 3,1% 

Vitorino Dias - 1,5% 

Vale o que vale, mas podia ser pior...

Até lá e para quem possa votar: máscara, gel, caneta e cartão de cidadão, bastam. 

Votem! 

2021/01/19

EUA: Aftermath


Em vésperas da tomada de posse do presidente Joe Biden, a cidade de Washington mais parece uma fortaleza, do que a moderna capital de um estado liberal e democrático, como são os Estados Unidos da América. Não é caso para menos. Depois da invasão do Capitólio do passado dia 6, levada a cabo por milhares de manifestantes, instigados por um presidente paranóico que se recusou reconhecer a derrota nas urnas, as autoridades nacionais (após informações fornecidas pelo FBI) puseram em marcha a maior operação de segurança em cerimónias congéneres: para além das barreiras e sebes, levantadas em redor dos edifício do congresso, foram mobilizados 25.000 elementos da Guarda Nacional, parte dos quais já dorme permanentemente dentro do Capitólio. Os moradores de Washington não se lembram de uma coisa assim e teremos de recuar a 1871 (Guerra Civil) para encontrar medidas similares em cerimónias oficiais.

Como chegámos aqui,  é a pergunta que todos fazem, dentro e fora do país, onde foi fundada a primeira democracia dos tempos modernos. Uma sociedade assimétrica, caracterizada por uma cultura de violência estrutural, primeiro dos colonos europeus contra os seus habitantes originais (os índios de diversas etnias) e, mais tarde, contra outros povos e países, um pouco por todo o planeta, sempre que os seus interesses geo-estratégicos são ameaçados. É esta, a par dos feitos e conquistas, a História do país mais poderoso do Mundo, hoje em decadência económica, mas ainda suficientemente forte, militarmente, para impor a sua lógica de "xerife" mundial. 

Como todos os impérios, também o americano já conheceu dias melhores e, fatalmente, irá perdendo influência, agora que novos actores surgem na arena política e económica mundial. É a "lei da vida dos impérios" e a História está cheia de exemplos, dos Gregos aos Romanos, dos Otomanos aos Britânicos, não esquecendo Portugal e Espanha, os impérios dominantes nos séculos XV e XVI. 

A cronologia é extensa, mas, resumidamente, podemos afirmar que a duração média dos impérios, ao longo da História, oscila entre os 100 e 150 anos. Segue-se a decadência, seja por factores externos como invasões, epidemias, cataclismos naturais (como aconteceu com as civilizações Inca, Maia e Asteca, na América do Sul); seja por implosão dos próprios regimes (caso da ex-URSS) incapazes de renovação interna e a consequente degeneração dos modelos adoptados.

O caso recente da presidência de Trump (depois de oito anos de Obama) ainda que em contra-ciclo, insere-se na onda populista (de direita) que atravessa grande parte do Mundo Ocidental: dos Estados Unidos ao Brasil, da Hungria à Polónia, do Reino Unido à Itália, todos estes países são, ou foram, em dado momento, governados por partidos cujos líderes partilham de uma ideia comum: a oposição ao que eles apelidam de "sistema". 

Porque o "sistema" é, por definição, o modelo de sociedade que estes líderes rejeitam, a pergunta que se impõe é: qual o modelo de sociedade que os populistas têm em mente? Consultados os seus programas e ouvidas as suas proclamações, é fácil concluir que (quase todos eles) afinam pela mesma diapasão, a saber: todos são contra a corrupção (quem não é?); todos defendem uma sociedade de pessoas de "bem" (de preferência, homens de cor branca); todos têm um bode expiatório, a quem culpam pelos males da sociedade (negros e imigrantes na América, estrangeiros na Hungria e em Itália, imigrantes e argelinos em França, muçulmanos e marroquinos na Holanda, ciganos em Portugal, negros e índios no Brasil). Todos, em maior ou menor grau, têm discursos sexistas, homofóbicos e xenófobos; todos exercem um poder autocrático, não permitindo vozes discordantes dentro dos seus partidos; quando chegam ao poder, rapidamente tentam silenciar os orgãos independentes, como a Justiça e a Imprensa e (pormenor importante) raramente criticam ou atacam os poderosos que controlam e (mais) corrompem as sociedades onde vivem. Nalguns países, chegam a defender a pena de morte e a prisão perpétua, assim como a liberdade de porte de arma e a existência de milícias populares, ao arrepio do estado de direito; desrespeitam as Constituições existentes e pedem uma "nova ordem" política. Ou seja, sabemos o que detestam, mas raramente obtemos respostas concretas sobre o modelo de sociedade que propõem, ainda que possamos adivinhar o que desejam. 

Num recente artigo, "O presidente que tornou a verdade irrelevante" (NRC-Handelsblad, 15/1/21) o jornalista Bas Blokker, faz um balanço do mandato de Donald Trump e o que fica após a sua passagem pela Casa Branca. O resumo é devastador e, ainda que a maior parte dos factos sejam conhecidos da opinião pública, rememorá-los agora, torna mais claro (se ainda fosse preciso) a personalidade do homem que incitou os seus seguidores a invadirem o Congresso, para impedirem a confirmação de um acto eleitoral, legalizado por todas as instâncias jurídicas e políticas do país. 

Alguns números, citados no artigo: segundo o "fact-checking" publicado pelo "The Washington Post", Trump teria mentido (ou afirmado não-verdades) mais de 30 000 vezes, em todo o seu mandato (em  "twitters", nas conferências de imprensa, em entrevistas e em discursos, dentro e fora do país). Não é caso único, claro: todos os presidentes anteriores, mentiram: Richard Nixon (Watergate), Billy Clinton ("affaire" com a estagiária), W. Bush Jr. (armas de destruição maciça no Iraque), mas como Trump não há memória.

A carreira política de Trump começou com uma mentira, não sendo pois de admirar que terminasse com outra: a negação da vitória de Biden, que recusou validar, acusando os democratas de fraude eleitoral, mesmo depois dos votos por correspondência terem sido recontados e validados. O mesmo, já tinha acontecido, relativamente a Obama. Em 2011, quando não era ainda candidato pelos Republicanos, acusou Obama de não ter a nacionalidade americana e de ter nascido em África. Mentira, claro. Obama nasceu no Hawai, um estado americano. Também afirmou à imprensa ter enviado uma equipa ao Hawai investigar as origens de Obama (quando o seu advogado lhe lembrou que não podia provar isso, ele respondeu que o que interessava era a notícia sair nos jornais. Depois, as pessoas não se lembravam de mais nada). Relativamente ao doutoramento de Barak, na prestigiada universidade de Harvard, Trump afirmou que tinha sido obtido por "discriminação positiva". Também disse que Obama tinha vindo do nada e não era ninguém, pois não o conheciam na escola. Interrogados os alunos das escolas, frequentadas por Obama, todos se lembravam dele como bom aluno. Mais uma mentira. 

Em 1455 dias de presidência, Trump teria mentido 30 529 vezes (média de 21 vezes ao dia!).  

Logo no primeiro dia da presidência, mentiu, através do seu acessor de imprensa, ao declarar que tinha havido mais público na sua tomada de posse, do que na tomada de posse de Obama, em 2008. As fotos que circularam por esses dias nas redes sociais e nos jornais, desmentem categoricamente tal afirmação. 

42% foi a média da sua popularidade nos anos que esteve na Casa Branca. Teve a mais baixa taxa de todos os presidentes, depois de 1945, quando o Instituto Gallup iniciou as sondagens 

Retirou apenas 3200 militares do Afeganistão, Iraque e Somália, apesar de afirmar que iria retirar todos os militares dessas guerras, que ainda continuam. Mais uma mentira.

Anunciou 453 milhas do muro que faz fronteira com o México, mas destas, só 80 milhas foram realmente construídas, já em finais de mandato. As restantes 373, foram reparações e aumentos no muro existente. 

750 dólares, foi a quantia paga em impostos, nos anos 2016 e 2017, de acordo com a sua declaração fiscal publicada pelo "New York Times". 

Durante o seu mandato, Trump esteve ausente 298 dias, para jogar golfe, na sua propriedade da Florida. 

Apesar de declarar não usar dados contra os seus adversários, obtidos no estrangeiro, tentou convencer o presidente Zelesky (Ucrânia) a comprometer o filho de Biden, num negócio que nunca se efectuou e foi desmentido pelo próprio presidente ucraniano. 

A célebre "Trump Tower", foi anunciada na sua inauguração, em 1988, como tivesse 68 andares. Na realidade só tinha 58. 

 Enfim, a lista é infindável, e tornar-se-ia exaustivo, repeti-la. Como afirmou um dos seus biógrafos, "Trump não tornou a mentira, verdade; ele tornou a verdade, irrelevante". Não importava que fosse mentira ou "bluff", o importante é que as pessoas acreditassem.

Porque mentia Trump? A sua sobrinha Mary Trump, no livro "Too Much is Never Enough", explica que Trump mentia para fugir às críticas do pai, que o castigava por ele ser muito burro. Era o mais tonto dos quatro irmãos. Mentia, para provar que era melhor, do que na realidade era. Numa entrevista em directo ao NRC, Mary declarou que toda a família sabia que ele era um tonto: "O homem nunca lia um livro. Toda a gente sabia disso. Não tinha nada na cabeça. Ele é um tonto, mas é o "nosso" tonto". 

O seu narcisismo patológico, fez dele um mentiroso compulsivo, que desdenhava dos adversários, despedia colaboradores que o criticavam, ofendia mulheres e minorias, discriminava negros e mexicanos, proibia a imigração de muçulmanos e refugiados e apoiava movimentos supremacistas brancos, como aqueles que, juntamente com fundamentalistas cristãos e negacionistas, invadiram, no passado dia 6, o Congresso em Washington. Nas últimas eleições teve 74 milhões de votantes a apoiá-lo (contra 77 milhões de Biden), que acreditaram até ao fim que ele estava a dizer a verdade. Depois de tanta mentira, acabou por sofrer dois processos de "impeachment", o segundo dos quais ainda decorre.

Trump saiu, mas o "trumpismo" não morreu. Está enraizado nos milhares de americanos, que sentem não fazer parte do "sistema" (os "descartáveis" nas palavras de Hillary Clinton em 2016): os menos letrados, os rurais, que na sua maioria não possuem a escolaridade média e que, nas últimas décadas, foram ultrapassados por mulheres letradas, pelas minorias étnicas e pelos imigrantes mais classificados. Americanos de uma América profunda, que se sentem ameaçados pelo desemprego, pois o seu trabalho foi deslocado para outros países de mão-de-obra barata e por "robots" que ocupam, hoje, o seu lugar. São estas populações, na margem do "welfare state", que sentem ter perdido o "combóio da História" e esperam agora por um novo líder, que as convença a acreditar nas suas palavras. Mesmo que estas sejam mentira. 

2021/01/16

Confinamento Suave (here we go again...)

Portugal está, desde ontem, mais uma vez "confinado". Um confinamento esperado, já que a maioria dos países europeus, da vizinha Espanha à longínqua Suécia, seguem o mesmo padrão de comportamento.

É natural. De acordo com a ciência médica, só será atingida a "imunidade de grupo", quando 70% do grupo-alvo estiver infectado (ou vacinado). Um longo caminho a percorrer, portanto.

Aquando da primeira "vaga" de contágios no Ocidente (Março do ano passado), alguns países tentaram adquirir essa imunidade, através da chamada "imunidade do rebanho" (herd's immunity). É o caso da Suécia, durante muitos meses considerada a "nação-modelo" que todos invejavam, ou a Holanda e o Reino Unido e, no outro lado do Atlântico, os EUA e o Brasil. Entre "intelligent lockdown" e negativismo anti-científico, os respectivos governos tentaram tudo para conciliar o inconciliável: saúde e economia. Ainda que toda a gente "ache" que a saúde é mais importante, a verdade é que sem economia (para as pessoas) não há saúde e vice-versa. Uma "pescadinha de rabo na boca". Portugal, nesses primeiros meses, esteve relativamente bem, com poucos infectados e poucas mortes. A explicação para o "milagre português" (como chegou a ser apelidado pela imprensa internacional), prende-se essencialmente com o relativo isolamento do país (fora dos circuitos internacionais), fim-da-época turística e desertificação do interior, o que dificultou uma rápida propagação do vírus. O célere encerramento das escolas e a proibição de eventos desportivos e culturais, contribuíram para o bom desempenho do sistema de saúde, que nunca atingiu o estado de sobrecarga de outros países como a Itália, a Espanha, a França, ou a Bélgica, neste período.   

Entretanto, e logo nessa fase, a Europa foi avisada pela China (onde o vírus foi detectado pela primeira vez) que, a esta 1ª vaga, se seguiria uma segunda, quiçá mais mortífera. Esta 2ª vaga, surgiria no Outono, quando as temperaturas baixassem no Hemisfério Norte e as populações, mais vulneráveis, fossem atingidas pela pandemia. 

E que fez a maioria dos países, Portugal inclusive?  Relaxaram, após 3 meses de "stress pós-traumático", provocado pelo confinamento obrigatório. Foram (também fui) de férias, pensando que o sol e o mar "limpavam" tudo. No intervalo, baixaram as defesas e não se prepararam devidamente (a prevenção, lá está) para a anunciada 2ª vaga. 

Como previsto, a 2ª vaga chegou em fins de Setembro, ainda que tenha abrandado ligeiramente em Novembro. Perante tal resultado ("achatamento" da curva), os governantes portugueses exultaram, optando por manter o confinamento, mas só até ao Natal. Nessa quadra, as famílias poderiam reunir-se de novo, em pequenos núcleos para comer o bacalhau e o bolo-rei do costume, pois o Natal é uma tradição e a "tradição ainda é o que era"...

Não é preciso ser bruxo, para adivinhar o que se seguiu. Quinze dias depois das festas e dos jantares familiares, o número de infectados disparou exponencialmente. Portugal passou de 3000 infectados, em finais de Novembro, para 10 600 em 16 de Janeiro (a maior taxa de incidência mundial!) e já é o quarto país em número de mortos (por milhão de habitantes). Consequentemente, o número de mortos também aumentou e já ultrapassa os 160 diários, uma das maiores percentagens europeias. Os serviços hospitalares estão à beira da ruptura, casos dos hospitais públicos da região de Lisboa, Torres Vedras, Évora, Santarém, Coimbra, Porto, Braga, Viana do Castelo, enquanto na morgue de Lisboa, os cadáveres se amontoam. Um cenário dantesco, que nos remete para a Itália e a Espanha, dos primeiros meses da pandemia. 

É neste quadro, que o governo, apesar das promessas anteriormente feitas de que não haveria um confinamento igual ao de 2020, se viu obrigado a decretar um novo estado de excepção. Desta vez, por 30 dias. Chamou-lhe "suave", como o cigarro de boa memória, para não assustar o pessoal. Em comparação com 2020 (quando 70% das pessoas chegaram a estar confinadas), nestes primeiros dias do ano novo, apenas 39% das pessoas ficaram em casa (dados da DGS). 

A boa notícia, é que as primeiros carregamentos de vacinas (da Pfizer) já começaram a chegar. Na primeira quinzena deste ano, foram vacinadas 100 000 pessoas (1% da população). A manter-se esta média, no fim do ano haverá 2,4 milhões de portugueses vacinados (25% da população). Ou seja, um terço dos 70% necessários para atingir a tal imunidade de grupo...Até lá, o "rebanho" tuge e não muge. Por comparação, Israel já vacinou cerca de 2,5 milhões da sua população e espera, em três meses, ter toda a população (9 milhões) vacinada. Toda a população, à excepção dos palestinianos (!?), acrescente-se... Também o Reino Unido já vacinou 2 milhões de cidadãos e tem uma das maiores percentagens de vacinados no mesmo período de tempo.

Porque parte do comércio se manterá aberto (há 52 excepções à regra) e ninguém percebe os critérios adoptados, o pessoal continua a sair e a consumir nos centros comerciais, pois sem consumo não há economia e sem esta...

Pior: os critérios são tão "suaves" que, em comparação com Espanha, onde me obrigaram a fazer um teste PCR quando cheguei ao aeroporto de Sevilha (e ameaçaram-me de multa, por não ter feito um teste 72h. antes),  ninguém me controlou quando voltei a Lisboa. Nem a mim, nem a nenhum passageiro. Somos uns "bacanos"...

Não há de ser nada, é a "consigne". 

2021/01/07

A "Golpada"



Uma tentativa canhestra de Golpe de Estado, alimentada por um narcisista patológico e apoiada por milhões de atrasados mentais que, na impossibilidade de ganhar nas urnas, tentam subverter a democracia, através da violência, a única linguagem que entendem. 

Ora, como sabemos dos livros de História, uma das características do Fascismo (hoje, neo) sempre foi a violência. Qual o espanto? 

Que tenha sucedido na primeira democracia moderna, só prova que nenhum regime democrático está imune a "golpadas" destas. Seja nos Estados Unidos da América, no Brasil, em Portugal, em Espanha, na Itália, na Hungria, na Polónia ou, até mais a Norte, em sociedades mais civilizadas...

Estamos avisados.

 

2021/01/02

Carlos do Carmo, o maior do (fado) "maior"



Começou mal, o ano. 

Com a morte de Carlos do Carmo (1939-2021) desaparece o mais emblemático intérprete da canção de Lisboa e, certamente, uma das suas melhores vozes. Para muitos, o maior intérprete masculino do Fado e aquele que (a par de Amália) maior reconhecimento teve no estrangeiro. A sua carreira, sabiamente gerida, prolongou-se por 57 anos. Entre 1963, ano da primeira gravação em disco e 2020, um ano depois do último concerto em Lisboa, gravou centena de fados e canções, algumas das quais são já parte do património nacional. Quem nunca ouviu e troteou os fados "Loucura", "Por morrer uma andorinha", "Fado da Saudade", "Gaivota", "O Cacilheiro", " Canoa", "Os Putos", "Lisboa, Menina e Moça", "Um Homem na Cidade", ou o "Fado do Campo Grande"?...

Dono de um timbre e dicção inconfundíveis, Carlos do Carmo foi, para além de intérprete de excepção, um esteta preocupado com a dignificação do Fado e a sua renovação. Entre os muitos artistas e poetas que cantou, merecem referência especial Ary dos Santos, Paulo de Carvalho, Fernando Tordo, Vitorino de Almeida, Vasco da Graça Moura, José Afonso, José Saramago, Manuel Alegre, António Lobo Antunes e Maria do Rosário Pedreira.  

Actuou nas mais prestigiosas salas do Mundo, no Olympia em Paris, no Canecão no Rio de Janeiro, na Alte Oper Frankfurt, no Concertgebouw em Amsterdão, no Vredenburg em Utrecht. Ganhou o Prémio Goya para a melhor canção no filme "Fados de Saura" (2008) e o Grammy Latino (2014), pela sua carreira. Destaque, ainda, para inúmeros prémios e condecorações, para além do prémio SPA, prémio José Afonso, diversos Globos de Ouro e as Ordens de Comendador da Ordem do Infante, Grande Oficial da Ordem de Mérito, Chaves da Cidade de Lisboa e Medalha de Mérito Cultural.

Penso ter começado a gostar de Fado, com Carlos do Carmo. Mais exactamente, em 1970, quando recebi como prenda de anos na Holanda (onde vivia) um EP, gravado ao vivo, com apenas 3 canções: "Pedra Filosofal", "A Voz que tenho" e "Menino de Oiro". O cantor era acompanhado por uma orquestra e as letras cantadas em tons de fado-canção. Uma aproximação ao fado tradicional que eu desconhecia e que, durante muito tempo, acompanharam as minhas noites de exílio. Foi já depois do 25 de Abril que vi, pela primeira vez, o cantor. Estávamos em 1976 e Carlos do Carmo representou Portugal no Festival de Eurovisão que, nesse ano, teve lugar em Haia. No dia seguinte ao Festival, a Embaixada Portuguesa, ofereceu uma recepção em Amsterdão, onde o fadista cantou para a comunidade portuguesa residente naquele país. Uma revelação. Tornei-me fã. 

No ano seguinte, seria editado "Um Homem na Cidade", por muitos considerado o seu disco mais emblemático e que revolucionaria a linguagem do Fado. Já em 1978, em férias, confirmei a sua popularidade, durante um Festival de Música de Intervenção, no histórico Clube Atlético de Campo de Ourique. Sala à "cunha" para ver e ouvir Mário Viegas, José Mário Branco e o GAC, Fausto, Vitorino, Samuel e Carlos do Carmo. No meio de canções revolucionárias, os fados de Carlos do Carmo seriam os mais aplaudidos da sessão. Um cantor todo-terreno. 

Os anos oitenta, marcariam a internacionalização da sua carreira. Em Dezembro de 1980, Carlos do Carmo e o grupo "Trovante", são convidados para actuarem no auditório da Vrije Universiteit de Amsterdão. No intervalo do concerto, chega-nos a notícia do assassinato de John Lennon. Nos bastidores, gera-se uma consternação absoluta. No regresso ao palco, o fadista alude ao assassinato do ex-Beatle. Aplausos da sala e mais uma actuação memorável. Outras se seguiriam naquele país, onde regressava amiúde.

Em 1989, o Círculo de Cultura Portuguesa na Holanda, em colaboração com a Cooperativa Cultural Etnia, produz o espectáculo "Portugal: a raiz e o tempo", dedicado à música urbana.  Do programa, constava uma comunicação, a cargo de Eduardo Paes Mamede e um concerto interpretado por Carlos do Carmo (fado), José Mário Branco (canção de intervenção) e António Pinho Vargas (jazz). No total, doze músicos em palco, que actuaram em Amsterdão, Haia e Roterdão. Quatro dias de cumplicidades e amizades fortalecidas. 

Em inícios dos anos noventa, Carlos do Carmo voltaria à Holanda, para actuar em diversos casinos do país. À excepção de alguns funcionários do Consulado de Amsterdão, não havia portugueses na sala do Lido, em Amsterdão. A produção, dessa vez, ficou a cargo de um empresário francês. 

Estamos em 1995. No último ano da minha permanência na Holanda, recebo um telefonema do Vredenburg (Utrecht), uma das salas mais prestigiadas do país: Anneke van Dijk, a programadora de música ligeira, queria organizar um ciclo de Fados, mas não conhecia ninguém,  para além de Amália, que já lá tinha actuado. Preferia um fadista masculino, mas podiam ser dois...Sugiro Carlos do Carmo e um jovem, em início de carreira, Camané. Ela aceita. Seis meses depois, regresso definitivamente a Portugal. Estabelecidos os contactos e firmados os respectivos contratos, Carmo e Camané, partem para a Holanda onde, em Outubro de 1996, inauguram o ciclo de Fados do Vredenburg, que se prolongaria por  mais de dez anos. No dia do concerto, impaciente, apanho o avião para a Holanda onde assisto a mais um concerto memorável. Não podia perder a oportunidade...

Em 1997, por ocasião do 1º da primeira edição do "Festival Ibero-Langue D'Oc" (Portugal, Espanha e Occitania) em Toulouse, desloco-me a convite da organização, para falar sobre música popular portuguesa. Para além das comunicações, havia música das regiões representadas. O representante português era (who else?) Carlos do Carmo. Surpresa mútua e ocasião para festejarmos e pensar num novo projecto. 

A ocasião, surgiria em Junho de 2000, no âmbito de um encontro Luso-Brasileiro, organizado pelo Inatel na FIL de Lisboa. Encarregaram-me de programar a parte musical da sessão. Sugeri o Carlos do Carmo. O presidente do Instituto "franziu o sobrolho" e perguntou se o Carlos era "caro" e se "ainda" era do Partido Comunista...Respondi que não sabia ao certo, mas tratava-se de um fadista de qualidade e a qualidade paga-se. Convencido, o homem, anuiu. Como era esperado, mais um concerto memorável. No fim, o Carlos, visivelmente satisfeito, confidenciava-me que nunca tinha sido convidado pelo Inatel (foi preciso eu trabalhar na instituição, para que isso pudesse acontecer). Bom, valeu a pena, pensei...

Em 2003, voltávamos a encontrar-nos, agora no Museu do Fado, em Lisboa, por ocasião de uma exposição sobre os seus 40 anos de carreira. Um marco. Seguir-se-ia novo encontro, em 2006, no âmbito do filme "Fados de Carlos Saura", onde seria apresentado o projecto do filme do mesmo nome. Anos mais tarde, foi a vez da Candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade (UNESCO), que comemorámos juntos nas instalações do museu, em 2011. Em 2013, voltaria a encontrá-lo, desta vez, nos Jerónimos, num concerto ao ar livre, comemorativo dos 50 anos de carreira.  

A última vez que o vi cantar, foi no Teatro Thalia, durante o velório do pintor Júlio Pomar, de quem chegou a gravar um fado. Uma singela homenagem, onde apenas interpretou duas canções. 

Quando, em Fevereiro de 2019, anunciaram o seu último concerto (para 9 de Novembro desse ano), tentei arranjar bilhete. Debalde. O Coliseu esgotou com 10 meses de antecedência. Era expectável. Resta o vídeo, recentemente editado e transmitido, por estes dias, na televisão. 

Surge agora, a notícia da sua morte. Uma perda imensa, de um amigo e companheiro de múltiplas aventuras. Estamos todos mais pobres. Resta o seu legado.

Obrigado, Carlos.

2020/12/24

O novo normal


A esteva (Cistus ladanifer) é uma planta muito comum em Portugal. A época da floração decorre entre Março e Junho. Nessa altura, os campos e os caminhos ficam marcados por extensas zonas cobertas pela sua flor branca e algumas pessoas referem-se-lha até como a “neve,” porque, de facto, faz lembrar um nevão tardio. São lindíssimos os campos cobertos de flor de esteva. Pessoa muito querida, todos os anos me manifestava um singelo e comovente, mas muito poético espanto perante o espectáculo, sempre igual mas sempre renovado, desta neve-esteva. 

A foto que acompanha este escrito foi tirada hoje, dia 24 de Dezembro de 2020. 
São as primeiras flores de esteva. 
Estamos em Dezembro....
Este é o ano da covid19, do vírus que era e que não era, dos estados de emergência on-off, das flores de esteva prematuras, dos crimes ambientais impunes, da miséria, das desigualdades e injustiças geradas por um sistema de que tantos beneficiam para prejuízo de tantos mais. O ano das escolhas, entre a injustiça escancarada, à vista de todos, e, perante ela, do quase generalizado assobiarismo--para-o-lado, a que também podemos chamar, talvez com mais propriedade, de cobardia criminosa. 
Este é também o ano em que tanta gente vestiu, agora sem qualquer sombra de vergonha de a exibir, uns, a roupa da estupidez sem limites e, outros, do oportunismo mais miserável, sem quaisquer escrúpulos. 
Ficará como sendo o ano do perdão a gente que devia ter sido encerrada em manicómio de alta segurança, imobilizada em câmara de dessensiblização, metida em colete de forças bem apertado e altamente sedada para não causar mais dano. 
Gente parida na “normalidade,” que já vinha de trás, uma “normalidade” que tantos ainda desejam retornar.
Por tudo isto, desejo uma excelente quadra natalícia e um ano novo profundamente anormal...

2020/12/13

Da cultura de violência e da irresponsabilidade em Portugal

Nove meses após o bárbaro assassinato do cidadão ucraniano Ihor Homenyuk, às mãos de agentes de "segurança" do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no aeroporto de Lisboa, já muito foi escrito e dissecado. Sabem-se os pormenores, mas desconhecem-se as razões de tal procedimento. Porquê torturar e deixar morrer um homem, portador de um passaporte válido que, aparentemente, só queria tentar a sorte no nosso país? Não sabemos.  

Conhecemos a história oficial: Ihor chegou ao aeroporto de Lisboa no dia 10 de Março último, onde lhe foi barrada a entrada por, alegadamente, querer trabalhar em Portugal e não possuir um visto, exigido a cidadãos que não pertencem ao "Espaço Schengen". Seguiu-se o interrogatório habitual e a detenção do cidadão, com vista à sua deportação para Istambul, onde tinha embarcado. Dado que Ihor só falava ucraniano, foi pedida uma intérprete, que confirmou a intenção de Ihor desejar trabalhar em Portugal. Até aqui, tudo normal. Aparentemente, Ihor terá recusado regressar à Turquia, o que conduziu à sua prisão numa sala especial, onde os passageiros em trânsito são mantidos em isolamento. O que aconteceu nos três dias em que esteve detido, foi mantido em segredo até ao dia 17, quando o médico-legista chamado para confirmar o óbito, reconheceu e denunciou sinais de tortura no corpo de Ihor, que apresentava escoriações várias, sinais nas pernas de fita isoladora e lesões graves no tórax, que acabariam por impedi-lo de respirar e causar a sua morte. Esteve 15 horas atado e virado de cabeça para baixo, após ter sido torturado por 3 agentes, com o silêncio cúmplice de 9 outros agentes, que sabiam da situação e encobriram o crime. Um crime, cometido por agentes do Estado português, num país da União Europeia. Imperdoável.

A história só viria a público em finais de Março, tendo havido reacções (tímidas) dos principais partidos e organismos como a Amnistia Internacional, a exigirem um inquérito rigoroso e a suspensão dos agentes em questão. Nove meses depois (até à passada semana) o governo manteve a directora do SEF em funções, não tinha contactado a viúva de Ihor (que teve de pagar do seu bolso a transladação das cinzas) e nunca apresentou condolências. Dado que ainda não houve julgamento (os 3 agentes acusados foram suspensos de funções e aguardam em casa pelo processo) está por atribuir uma verba de indemnização, normal em casos semelhantes. 

Há muito que Portugal é criticado nas relatórios da Amnistia Internacional. Devido a torturas, mas também por falta de condições dos detidos (prisões sobrelotadas e sem condições de salubridade), penas indiscriminadamente aplicadas, violência doméstica, etc... Um país, onde a justiça está ao nível de países do "3º Mundo". Lembremos que, ainda há bem poucos anos, apareceu um cadáver decapitado (pela polícia) numa esquadra de Sacavém. Outros casos, mais recentes, confirmam estas práticas (espancamento de residentes nos bairros da Jamaica e na esquadra de Alfragide, disparos mortais contra automobilistas em fuga e, ainda esta semana, espancamento numa esquadra de Vila do Conde, que custou dois dentes a outro cidadão ucraniano...). Isto, para não falar das recentes mortes de comandos recrutas, durante exercícios de treino, como é sabido. Todos estes episódios (e não sabemos tudo), denunciam uma cultura repressiva e de punição, praticada por indivíduos (instituições) que deviam zelar pelo bem-estar das pessoas (nacionais e estrangeiros) num país onde o estado de direito é suposto funcionar. 

Muitos destes funcionários são pessoas com pouca preparação e distúrbios mentais (psicopatas) que, provavelmente, foram recusados para outras funções e acabaram por ir parar às agências de segurança (aeroportos e não só), onde podem dar livre curso à violência reprimida. Tivemos 50 anos de fascismo e uma guerra colonial (que estropiou milhares de jovens) e muita gente foi educada nesta cultura de violência. Muitos ainda andam por aí (basta ler os seus comentários nas redes sociais) e não hesitariam em praticar idênticos crimes, se tivessem oportunidade para isso.  

Tudo isto tem de ser avaliado, revisto e renovado, sob pena de instituições como o SEF continuarem em "roda livre", tornando-se um "estado dentro do estado". Para isso, são necessários gestores da coisa pública (políticos, magistrados, directores de serviço) com coragem, uma coisa que não abunda na classe dirigente do país, onde "toda a gente é amiga de toda a gente" e tem medo de tomar decisões impopulares para "não ferir susceptibilidades". Todos eles têm "telhados de vidro" e, por isso, António Costa mantém Eduardo Cabrita -  um "yes man", burocrata e medíocre - como ministro da tutela. Os amigos são para as ocasiões. 

2020/12/07

Monólogos da Vacina

XI JINPING, presidente "ad eternum" (China):

"Fomos o primeiro país a descobrir o vírus. Também fomos o que vendeu mais máscaras. Já temos a vacina, que foi testada no Brasil".

VLADIMIR PUTIN, presidente e secretário-geral, em alternância (Rússia):

"Fomos os primeiros a produzir uma vacina, sem passar todas as fases exigidas. Os primeiros a recebê-la, serão os funcionários do estado. Até a minha filha, já tomou".

FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS (Rússia):

"Toma tu, primeiro!". 

DONALD TRUMP, presidente derrotado (EUA):

"Já encomendei as vacinas. Enquanto não chegarem, continuem a tomar lixívia. Não confio na ciência. Vejam o que fizeram com as eleições na Georgia!".

JAIR BOLSONARO, fascista grunho (Brasil)

"A Pandemia, não passa de uma gripezinha. Haverá sempre mortos. Todos temos de morrer, porra! Já encomendei a vacina chinesa. Podem tomar, se quiserem. Eu cá, não tomo porra nenhuma!".

BORIS JOHNSON, premier inglês (UK)

"Fomos os primeiros a sair da União Europeia e seremos os primeiros a vacinar os nossos cidadãos. Já falei com o Luís (enfermeiro português) que me tratou quando estive internado e será ele a dar-me a injecção".

MARCELO REBELO de SOUSA, presidente da república (Portugal):

"Não perco uma vacina. Lá estarei, no dia marcado, em "prime-time". Só falta combinar com o médico, se será em tronco nu ou na nádega".

BILL CLINTON, GEORGE BUSH Jr. e OBAMA, ex-presidentes (EUA)

"Combinámos tomar a vacina em público, para dar o exemplo. Será em tronco nu, como fez o Marcelo. Uma ideia genial". 

ANA GOMES, candidata à presidência (Portugal):

"Claro que vou tomar a vacina. Se não houver na minha farmácia, compro-a em França. É de confiança e não tenho de esperar no Centro de Saúde". 

MARQUES MENDES, PAULO PORTAS, especialistas em "picos" e "achatamentos" (Portugal):

"Explicamos tudo o que deve saber sobre vacinas. Desde a sua fabricação, até ao congelamento, redes de frio e distribuição. Também fazemos "take away". Não hesite em contactar-nos".

2020/11/24

Trump de saída: algo é algo

Só hoje, três semanas após as eleições, Trump parece ter dado os primeiros sinais de aceitação da vitória de Joe Biden, ao autorizar a passagem do testemunho (leia-se "dossiers") ao novo presidente que será empossado no próximo dia 20 de Janeiro. Ainda não foi o reconhecimento formal, normalmente expresso pelo presidente cessante ao vencedor das eleições através das felicitações habituais, mas anda lá perto. Trump nunca admitiu a derrota e, mesmo depois de repetidas as contagens nalguns estados, continuou a lançar suspeitas sobre o voto por correspondência, alegando manipulação dos boletins chegados após o dia das eleições. Os democratas tiveram uma vitória indiscutível, tanto em número de representantes no colégio eleitoral, como em número de deputados no Congresso. Também na votação global, a vitória dos democratas é clara (75 milhões de votos contra 72 milhões dos republicanos). Os protestos de Trump e dos seus acólitos, tornaram-se tão patéticos que, a determinada altura, algumas figuras do partido republicano, como o ex-presidente W. Bush Jr. e o ex-candidato à presidência M. Romney, viram-se na necessidade de vir a público reconhecer a vitória de Biden. Só os mais fiéis permaneceram ao lado do chefe, entre os quais Giuliani, cuja última aparição televisiva mais parecia a de um personagem da série "Os Sopranos", tanta era a tinta do cabelo que escorria pela sua cara. Se tivesse que escolher uma imagem destes quatro anos do consulado devastador de Trump, a conferência de imprensa do antigo "mayor" de Nova-York a suar (e a "derreter-se" literalmente) perante as câmaras, seria uma boa metáfora.

Sobre Trump já tudo foi dito. Um narcisista patológico, rico por herança e treinado a competir no mundo de negócios, que lhe deu fama e proveito: primeiro através da construção e do imobiliário, depois através da televisão, que o ajudaria a construir o nome e a "marca" que o celebrizou.  Empresário milionário, mas sem qualquer preparação política ou cultural, o "The New York Times" averiguou que Donald Trump só tinha pago impostos em sete dos últimos 18 anos, que gastava 70.000 dólares no cabeleireiro e que a sua filha mimada, Ivanka Trump, apesar de ser empregada da Organização Trump, recebia elevados honorários de consultoria....para o pai. Desde a sua chegada à Casa Branca, começou a despedir colaboradores a um ritmo nunca visto na história dos Estados Unidos. Agravou as relações com os seus aliados, que combateram ao lado da América na 2ª guerra mundial, pressionando-os para que "aumentassem os seus gastos de defesa" com o argumento de que a NATO não podia viver apenas da contribuição americana. Ao mesmo tempo, declarava que o chefe de estado que mais admirava era Vladimir Putin, com quem sempre manteve contactos suspeitos, devido aos seus investimentos na Rússia. Tudo isto, afectou as relações entre os EUA e a Europa Ocidental, a um ponto que não conhece precedentes. Porventura pior, foi a dureza dos ataques contra as migrações nos Estados Unidos, um país cuja grandeza se deve aos emigrantes vindos de todo o Mundo. Muitos são da América Latina, nomeadamente do México. Na memória de todo o Mundo, estão as palavras do presidente Trump sobre os mexicanos: "Não nos mandam gente boa, apenas ladrões, traficantes, bandidos e violadores". A sua obsessão pela construção de um muro electrificado, na fronteira entre os dois países, que devia ser pago pelos próprios mexicanos, foi outra irrealidade que nunca deixou de querer concretizar, apesar das críticas feitas dentro e fora do partido republicano. Os ataques aos emigrantes mexicanos e do resto do Mundo, são apenas um dos aspectos da sua campanha racista, que endureceu enormemente as tensões entre brancos, negros e mestiços, na maioria dos estados do país. Foi durante o seu mandato que voltaram a aparecer cartazes com a frase "Somos um país de brancos", conhecida dos velhos tempos do Klu-Klux-Klan, de quem recebeu apoio explícito através de milícias armadas que frequentavam os seus comícios. As frequentes mortes de negros às mãos da polícia, daria origem ao movimento "Black Lives Matter", que pôs o país a ferro e fogo, durante o último ano. As suas atitudes machistas e misóginas eram conhecidas e foram denunciadas por movimentos feministas americanos. Num Mundo globalizado, prometeu o regresso a uma América mítica (Make America Great Again) apelando aos residentes da "rust belt" (as industrias do carvão e do automóvel) e às populações rurais e conservadoras do "midwest", que constituem a maior parte dos seus eleitores. Tornou-se proteccionista na América e isolacionista no Mundo. No intervalo, "comprou" uma guerra com a Coreia do Norte e outra com o Irão, para além da guerra comercial com a China, a maior ameaça ao império americano.

Apesar deste percurso errático e criticável, ainda era o candidato favorito há um ano atrás. Não fora o COVID, por ele negado e subestimado (hoje, completamente fora de controlo), para além das consequências económicas e sociais decorrentes do vírus (desemprego, pobreza crescente em largos estratos da população, violência...) e Trump, contra tudo e contra todos, poderia ter ganho as eleições. Não imaginamos o que seriam mais quatro anos deste pesadelo. Com o seu afastamento definitivo (ainda faltam dois meses!) uma nova era parece abrir-se. Desde logo, no controlo da pandemia, a primeira prioridade de Biden, que acredita na ciência e não deixará de trazer para o seu lado os especialistas mais reputados do país. Depois, no relançamento da economia, a sua segunda prioridade, já que os últimos meses foram um desastre total para milhões de americanos, que perderam tudo de um dia para o outro. Outras áreas, às quais o novo presidente dará certamente atenção, serão as relações internacionais (ONU, OMS, NATO, Acordos de Paris sobre o Clima, Irão e, obviamente, a China) que, nalguns casos, são praticamente inexistentes.

Com Trump, desaparece igualmente o principal émulo e símbolo dos populistas de direita que, nos últimos anos, vêm ganhando influência em países ocidentais (Bolsonaro, Abascal, Marine Le Pen, Salvini, Farage, Wilders, Orbán, Erdogan, etc.). Se o seu desaparecimento político contribuirá para um refluxo dos populismos, ainda é cedo para afirmar, já que as consequências da Pandemia só no próximo ano serão sentidas internacionalmente e, nessa altura, os conflitos sociais podem agudizar-se. Uma coisa parece certa: sem Trump, o ar fica menos poluído. Algo é algo.

2020/11/18

Confinamento "Suave"

Dia 7.11.2020

Combóio: Trajecto Lisboa-Faro

Lugares ocupados: 10.  Máscara obrigatória. Para dormir, destapo o nariz. 

Minutos mais tarde, um ligeiro toque no ombro. 

- "Máscara para cima, sff." (era o revisor)

- Com certeza. Tem toda a razão.

-"Não volto a avisar!" 

- Como?

- "Já disse, não volto a avisar!"

- Deve estar a gozar comigo. Não estamos na tropa. E se fizesse o seu trabalho, em vez de pregar moral? 

Dia 8.11.2020

Autocarro: Trajecto Faro-Sevilha

Lugares ocupados: cerca de 1/3. Máscara obrigatória.

Motorista (em castelhano): "A máscara é obrigatória, durante toda a viagem. Estou a ver os passageiros pelo retrovisor. Quem não tiver a máscara posta, rua!" (olha para mim e pisca-me o olho...) 

Dia 9.11.2020

Entrada em vigor do 2º período de confinamento em toda a Andaluzia. Cancelamento de transportes públicos terrestres para Portugal.

Dia 13.11.2020

Tento marcar uma viagem aérea Sevilha-Lisboa. Há lugares. Após a reserva, a TAP exige-me o preenchimento de um formulário de "Responsabilidade COVID". Pedem-me, para além dos dados pessoais, o contacto de uma pessoa (nome completo e telefone), para o caso de estar infectado. 

Dia 15.11.2020

Avião: Trajecto Sevilha-Lisboa

Lugares ocupados: 12. Máscara obrigatória.

Aeroporto de Sevilha. Para além do controlo de bagagem, não há qualquer controlo sanitário. 

Aeroporto de Lisboa. Não há qualquer controlo sanitário, para quem chega de países europeus. 

P.S.: Leio, entretanto, que o governo aconselha não sairmos de casa até ao próximo dia 23 de Novembro (fim do 2º período de confinamento). Só quem for trabalhar, o pode fazer. Um vírus selectivo, portanto: só ataca turistas, não ataca quem trabalha... 

2020/11/02

Eleições Americanas: the winner takes it all




Sempre que há eleições nos Estados Unidos, o Mundo "divide-se" no apoio aos candidatos em presença.

Há quem afirme, inclusive, que os europeus deviam poder votar nas eleições americanas, tal a importância do seu resultado para as relações com a Europa. 

Se já era assim no passado, as eleições deste ano ganharam um interesse acrescido, dadas as características dos candidatos concorrentes. 

A pouco mais de 24horas da votação final, Joe Biden (democrata) segue destacado à frente de Trump (republicano), uma tendência constante desde Março último, quando a actual pandemia atingiu os EUA. Um pormenor não despiciendo, dadas as consequências económicas e sociais, que esta crise provocou em todo o território americano.

No entanto, em 2016, Hillary Clinton também chegou ao dia das eleições com 3% de vantagem na popularidade nacional (acabaria por ganhar com 3 milhões de votos de diferença), mas perdeu para Trump no Colégio Eleitoral. Antes dela, Al Gore tinha perdido as eleições para Bush em 2000, ainda que tivesse ganho em votos. Dois resultados recentes, que os Democratas não esqueceram. 

Desde Março deste ano, que Biden está à frente em todas as sondagens de popularidade. Seria, no entanto, um erro pensar que ele vai ganhar. As sondagens de popularidade dizem algo sobre qual o candidato que vai ganhar mais votos, mas não necessariamente as eleições. Isto, porque nos EUA não é válido o princípio do número nacional de votos, mas o princípio "The winner takes it all". O candidato que receber mais de 50% dos votos de um estado, fica com os votos todos desse estado. 

Em finais de Outubro, Biden tinha cerca de 54% das intenções de voto, contra 46% de Trump. Os votos dos Democratas oscilavam entre 6 e 10%, à frente do voto dos Republicanos. 

Os debates, realizados em Setembro e Outubro, não parecem ter influenciado a tendência de voto, manifestada ao longo do ano. Isto, porque 90% dos votantes já fizeram a sua escolha e não foram influenciados pelos argumentos esgrimidos nesses frente-a-frente. Em 2011, Trump tinha 4,6% de votos atrás de Clinton e ganhou. Desta vez, Trump tem menos 8,4%. A diferença, é que Trump e Clinton alternaram nas sondagens, enquanto a diferença para Biden é constante. Os analistas, consideram que, mesmo que Biden venha a perder parte deste avanço, poderá ganhar com uma diferença de 3 a 4%, o suficiente para ficar dentro da "margem de erro". 

Resumindo, o que é importante, não é o número total de votos, mas onde é que esses votos são ganhos. Se um candidato ganhar num estado muito populoso, tem mais hipóteses de ser presidente. Ou seja, as Sondagens Eleitorais dizem mais sobre as hipóteses de um candidato, do que as Sondagens de Popularidade. No dia das eleições, o presidente não é eleito directamente, o que só acontece através do colégio eleitoral. Este colégio é composto por 538 votantes. Um candidato necessita de 270 votos deste colégio para ganhar as eleições.   

Nesta contabilidade, importa reter algumas tendências importantes: os EUA têm 50 estados. Em 15 destes estados (os estados "azuis"), ganham os democratas. A manter-se a tendência, isso corresponde a cerca de 200 representantes no colégio eleitoral. Em 20 destes estados (os estados "vermelhos") ganham os republicanos. Isto, corresponde a cerca de 125 representantes no colégio eleitoral. Restam os chamados "estados oscilantes" (swing states) onde os candidatos surgem empatados e com margens de diferença muito pequenas. São eles, a Florida, North Carolina, Arizona e os estados da chamada "cintura de ferrugem" (rust belt): Pennsylvania, Ohio, Michigan, Wisconsin. O Texas é, tradicionalmente, um feudo republicano, mas este ano pode mudar, pelo que também é considerado um "swing state". Neste universo, e tendo em conta as populações de cada estado, pode dizer-se que quem ganhar a Pennsylvania e a Florida, quase de certeza ganhará as eleições. 

Finalmente: as projecções do passado fim de semana (31/10) confirmam a vantagem de Biden, tanto a nível da popularidade nacional, como a nível do colégio eleitoral. A combinação destes dois factores, é a mais importante. Em 3 dos "swing states" (Michigan, Pennsylvania e Wisconsin) Biden tem uma vantagem de 5% sobre Trump. Isto significa que, a confirmarem-se estas projecções, Biden poderá contar com 343 votos no Colégio Eleitoral, mais do que suficiente para ser proclamado presidente. 

A história, no entanto, pode não terminar aqui. A pandemia actual, que atingiu números impensáveis há alguns meses, já atirou para o desemprego mais de 11 milhões de americanos, muitos dos quais dificilmente voltarão a conseguir emprego. Os desempregados, dependem de um sistema social e de um sistema de saúde, debilitados pelas políticas economicistas, agravadas nos anos de Trump. O actual presidente negou o perigo do coronavirus, rejeitando, inclusive, a opinião de cientistas reputados, entre os quais Fauchi, o principal assessor da casa Branca para a saúde. Ainda há dias, o ridicularizou, após uma entrevista do médico ao "Washington Post", onde este criticava as medidas de Trump para combater o vírus. Junte-se a isto, a queda do PIB norte-americano, em mais de 10%, e a crise social que já atinge mais de 30 milhões de cidadãos daquele país e percebe-se melhor a dimensão desta tragédia, provocada pelas políticas negacionistas do pior presidente da História dos EUA do último século. Não por acaso, mais de metade dos americanos criticam a abordagem de Trump durante a crise do Coronavírus. Biden pode, aqui, ganhar pontos.  

Acontece que, perante a eminência de uma derrota, Trump desvaloriza a contagem dos votos por correspondência e já ameaçou recorrer para os tribunais, caso os resultados não lhe sejam favoráveis. Vale tudo nesta corrida e o "bulling" republicano é constante. Ontem, uma caravana do candidato democrata, foi impedida por apoiantes de Trump de atravessar o Texas. Um dos manifestantes era o filho do próprio presidente (!?). Enquanto tudo isto acontece, a extrema-direita organizada em milícias armadas de "supremacistas brancos", desafia a lei e exibe-se nas ruas das principais cidades, sem que ninguém os impeça. Sem que déssemos por isso, a sociedade norte-americana, caminha a passos largos para o fascismo. 

Também por isso, a derrota de Trump é importante. Biden não será o candidato ideal (que raio, os democratas não arranjavam ninguém melhor?), mas é a única escolha possível. Para os norte-americanos, não há alternativa. Para os europeus, maioritariamente democratas, ele também é o menos mau. Eu, se fosse americano, para que Trump abandonasse a Casa Branca, até no Rato Mickey votava... 


2020/10/25

Cultura, pandemia, gangrena e drinks de fim da tarde



Haverá dúvidas de que a “cultura” é mansa? 

Mesmo depois de tantas “flight cases” plantadas no Terreiro do Paço e na CM do Porto, projecções coloridas em edifícios, e outros protestos murchos, a "cultura" continua em processo de gangrena. As restrições às actividades culturais trazem consequências dramáticas, mas em Portimão parece que estamos noutro planeta. Que diferença para as salas fechadas ou a meia haste que por aí vamos vendo.



Não pretendo aqui fazer uma análise do sector da cultura em Portugal nem estou habilitado para o fazer. Pretendo apenas chamar a atenção para umas tantas incoerências e, sobretudo, para a passividade inacreditável com que o sector da cultura, certamente inebriado pelos drinks de fim de tarde, assiste à crise que se instalou. Com olhar bovino, como o de quem aguarda a vez para entrar no matadouro. 

O sector cultural, face ao valor previsto para a cultura, limita-se a largar, com ar enfadado, uns bitaites e umas queixinhas avulsas nas redes sociais e em entrevistas mais ou menos folclóricas. Não há qualquer organização, não se ouviu uma palavra  dos agentes culturais quanto a um projecto de recuperação deste sector, nem uma ideia para aplicações dos fundos estruturais que aí vêm. Nada. Os portugueses, por seu lado — povo que saca também, sem perceber o que está a fazer, o revólver quando ouve falar em cultura —  aceitam, sem problema de maior, que fechem salas de espectáculo, acabem festivais, produtoras, editoras, que continuem a sair dezenas e dezenas de jovens das escolas de artes, músicos, actores, técnicos, sem que exista perspectiva de trabalho no imediato e sem que existam possibilidades de exercerem as profissões que escolheram no futuro. Não há maneira de os acolher e, no futuro, vai ser pior. Mas eles continuam a sair das escolas. Imagino que, por este andar, os únicos locais onde poderão encontrar trabalho daqui a uns tempos seja nas igrejas... 

É que, aposto, os portugueses serão sensíveis a um outro tipo de reivindicações e o nível da gestão pública que temos não dá para mais. Há dias, a propósito da "crise" em Fátima, o líder parlamentar do PSD, um deputado chamado Adão Silva, e os deputados "sociais-democratas" eleitos por Santarém, vieram reivindicar "apoios sociais e fiscais," chamando a atenção para o facto de a região ter sido atingida pelas consequências económicas da pandemia e exigindo medidas “no âmbito dos impostos, nos apoios vários às empresas e do ponto de vista social”. Em causa está o OE 2021 e mesmo os fundos estruturais. O que os deputados em questão estão a reivindicar é um subsídio a uma crença religiosa, pago, directa ou indirectamente, por todos os contribuintes, acreditem ou não nessa crença. E estamos com sorte por não terem sugerido a obrigação de cada português ir passar o fim de semana a um hotel em Fátima. O que está em causa aqui não é a reivindicação em si. Fazem pela vida. O que aqui parece bizarro é que os deputados se sintam legitimados a fazê-la, enquanto outros sectores, de importância vital e muito mais abrangente para o país o não façam. Como o sector da cultura, por exemplo.

O que se vai vendo no que respeita a este sector é um escândalo. Sem resposta. Os milhões chovem só para um lado, sem que ninguém se indigne com o assunto. As televisões, por exemplo, receberam balúrdios à pala da pandemia. Deveriam ter sido obrigadas a reprogramar as suas grelhas com música, teatro, dança, circo, etc., português. Mas que raio de ideia de cultura tem o Governo? O que é que o PM e o PR vêem para além do namoro aos "artistas" que lhe trazem votos? Conseguirão ter uma ideia de cultura para além do barulho das luzes e dos vapores dos drinks? Se têm, não se vê.

No que diz respeito à cultura, estamos em plena era da pedra lascada. Agora disfarçada com eventos e entretenimento. Anda tudo a dormir. Estou em crer que é a própria “cultura“ que não se leva a sério e não acredita em si. Venham mais umas corridinhas de carrinhos e motinhas!!

2020/10/22

Baile de Máscaras


"Paira um espectro sobre a Europa" e, desta vez, não é o Comunismo, anunciado por Karl Marx e Friedrich Engels, na famosa primeira frase do "Manifesto", publicado em 1847. 

Quando, no início deste ano, fomos alertados para o aparecimento de um vírus na China e, posteriormente, na Europa (Itália), a maior parte de nós imaginou uma "coisa" só possível de acontecer noutros países e, no limite, que seria passageira... Uns comprimidos anti-virais e distanciamento social q.b. para afastar o "bicho" e não teríamos nada a temer. 

Como sabemos hoje, a realidade rapidamente ultrapassou a ficção e bastaram poucas semanas para que a maioria dos países (na Europa e não só) adoptasse medidas restritivas de circulação dos seus cidadãos. Uns chamaram-lhe "estado de emergência", outros "estado de calamidade", outros "intelligent lock-down", outros "imunidade de rebanho" e outros, ainda, optaram por ignorar a pandemia, comparando-a a uma "gripezinha"...

Também já nessa altura (inícios de Março) a China e os países asiáticos circundantes, os primeiros a serem atingidos pelo vírus, alertaram para o perigo do alastramento da pandemia a outros continentes e para uma 2ª vaga de  contaminações, que poderia surgir no Inverno e iria ser bem mais mortífera do que a primeira. Isto, enquanto não for descoberta a "milagrosa" vacina - que não curará ninguém, como é óbvio, mas contribuirá para aumentar a imunidade e, dessa forma, diminuir os contágios. 

Pois bem: a vacina ainda não existe, o Inverno está à porta e a 2ª vaga do Coronavírus já começou. 

Estamos a 22 de Outubro e o "site" da "Worldmeter" (OMS) registra 41 652 322 infectados (1 138 678 mortes) em todo o Mundo. Metade destes números diz respeito a 3 países apenas: EUA, Índia e Brasil. 

Seguem-se países europeus, como a Rússia (1 463 306 infectados/25 242 mortes), Espanha (1 046 641/ 34 366) e, mais atrás, países médios como a Holanda (262 405/6919) ou a Bélgica (253 386/10 539). Portugal está, nesta lista, em 43º lugar, com 109 541 infectados e 2245 mortes, respectivamente.      

Entretanto, a OMS já veio alertar para uma provável duplicação destes números, daqui até ao fim do Inverno, ou seja, após um ano de epidemia global. 

Que fazer? Este é o dilema da maioria dos países democráticos onde grassa uma epidemia sem paralelo (a última grande epidemia - a gripe espanhola - data do século passado) confrontados com a difícil equação entre "confinamento" e "circulação", já que a "economia não pode parar". 

Portugal atingiu, hoje, um recorde absoluto de infectados num só dia (3270), mais do dobro desde o mês de Abril, no "pico" da 1ª vaga. Estes números fizeram soar as "campainhas de alarme" do governo e a adopção de novas medidas sanitárias, ainda que a palavra "confinamento" continue a ser evitada. Desde logo, impondo um "cordão sanitário" a 3 freguesias do Norte, onde se verificou um novo surto e, depois, a proibição de circulação, entre todos os concelhos do país, no período compreendido entre 30/10 e 3/11 próximos. Uma medida extrema, que não acontecia desde a última Páscoa.

Segue-se, amanhã, uma discussão na AR sobre outras medidas urgentes a tomar, que incluem uma proposta do PSD (obrigatoriedade de máscara na via pública) a qual terá uma aceitação pacífica. Menos aceitável, foi a proposta de um "app" obrigatório, por sugestão do primeiro-ministro, liminarmente rejeitada por todos os partidos e pela opinião pública em geral. Compreende-se a preocupação de Costa: limitar danos económicos e sociais (na 1ª vaga perderam-se mais de 100 000 postos de trabalho), mas "apps" obrigatórios, só na China, que é uma ditadura e o "controlo digital" é aceite e está institucionalizado. 

Enquanto isto, continua a discussão do Orçamento de Estado que, à partida, será "chumbado" por toda a oposição de direita, mas está longe de ser aceite pelos partidos de esquerda. Estes exigem mais meios para a saúde, para apoios sociais e para investimentos públicos. Caso votem contra (o que não é expectável) o governo poderia cair e haveria eleições antecipadas em 2021. Até lá, o país poderia ser governado em "duodécimos", um modelo que ninguém deseja em tempo de pandemia. Para já, continuam as conversações e o "esticar da corda", entre o governo e o BE e o PCP, mas ninguém  acredita que este Orçamento de Estado não passe. Em ultima análise, a abstenção dos partidos de esquerda permitirá  a aprovação do OE e a sua discussão na especialidade. Em S. Bento, o baile de máscaras, continua.

2020/10/20

Bienal de Sevilha: Flamenco em tempos de pandemia (2)

 


Andrés Marín (Sevilha, 1969) é hoje um dos "bailaores" mais singulares do chamado flamenco experimental. Juntamente com Israel Galván, que tivemos o privilégio de ver na Bienal de 2018, Marín é um "bailaor" que não teme a inovação, ciente de que esta é a única forma de continuar a tradição. Nem todos os ortodoxos apreciarão o seu estilo, mas os amantes das coreografias ousadas esgotam os seus espectáculos e a crítica não poupa nos elogios. Imperdível, o espectáculo de Marín, que apresentava em estreia o seu último projecto, intitulado "A Vigília Perfeita".   

Lá fomos, pois, para um dos últimos espectáculos desta Bienal atípica, que teve lugar ao longo de seis semanas em salas e anfiteatros ao ar livre. Só era permitida a entrada depois da nossa temperatura ser medida por diligentes arrumadoras, que não poupavam no álcool-gel, nem nas recomendações habituais: máscara na cara durante todo o espectáculo e distância social de 2 metros, no mínimo. As cadeiras (de plástico), estavam agrupadas aos pares, o que facilitava a conversa, mas o frio cortante que fazia na Cartuja (local mítico da Expo Mundial de 1992) não animava a noite, que se previa longa.

"La Vígilia Perfecta", uma maratona de baile, foi dançada entre as 6h. da madrugada e as 9h. da noite e decorreu no Centro Andaluz de Arte Contemporânea (La Antigua Cartuja Santa Maria de las Cuevas de Sevilla) que, no passado, acolheu monges e hoje acolhe obras de arte. Desde as seis da manhã, foram encenados e dançados a solo, pequenos quadros de 8 a 10 minutos, representando as diferentes liturgias da ordem religiosa que por ali passou. Estes pequenos "sets" não tiveram a presença do público que, no entanto, podia segui-los "online". À noite, já com público presente, o "bailaor", acompanhado de 4 instrumentistas e um "cantaor", dançaria todos os quadros cronologicamente, num espectáculo que durou cerca de 75 minutos. 

Que dizer de um dos mais brilhantes dançarinos flamencos da actualidade e de um espectáculo, a todos os títulos, brilhante? Uma epifania, a confirmar tudo o que lemos e ouvimos sobre Andrés Marín, aqui excelentemente acompanhado por Alfonso Padilla (saxofone alto), Daniel Suárez (percussão) Curro Escalante (marimbas e percussão), Francisco López (sonoridades) e Cristian de Moret (cantaor) que estiveram à altura do "mestre". Um espectáculo hipnótico, recriado junto das antigas chaminés do Convento, desta vez envoltas em nevoeiro cénico, ao som do "taconear" e dos movimentos geométricos de Marín, um príncipe da dança actual. 

Ao fechar do pano, uma notícia da última hora, que só poderá encher de alegria os "aficionados" da Arte "Jonda". No decorrer do mês de Outubro, abrirá as suas portas o "Museu Camarón de La Isla" (S. Fernando de Cádiz), uma das grandes figuras do "cante" de todos os tempos. O Museu, que não substituirá a "Casa de Camarón" (esta pode continuar a ser visitada), é um investimento de vários milhões de euros, que sairão de Fundos Europeus, da Junta de Andaluzia e do "ayuntamiento" de S. Fernando, sua cidade natal. Finalmente, o nome maior da renovação do Cante Flamenco, irá ter a "casa" que merece. A Andaluzia, está de parabéns. Mais um lugar de visita obrigatória. Lá iremos.  

        

    


2020/09/24

Bienal de Sevilha: Flamenco em tempos de pandemia

Quando, em finais de Junho, foi anunciada a XXI Bienal de Flamenco, provavelmente a mais representativa Mostra do "estado da arte" no Mundo, muita gente duvidou da sua realização. A Espanha acabava de sair de uma grave crise sanitária e os traumas (provocados por longos meses de confinamento) continuavam presentes na memória de todos que, directa ou indirectamente, foram atingidos pela pandemia. 

Apesar das dúvidas e (justificados) receios, resolvemos arriscar. Consultado o programa, avançámos para a compra dos espectáculos que, à partida, mais garantias davam de uma qualidade testada em anteriores actuações. Acontece que, a pandemia, veio exigir regras mais apertadas, entre as quais a redução dos lugares disponíveis nas salas programadas. Rapidamente, os concertos mais badalados esgotaram e, quando tentámos reservar, era tarde. Perdemos, assim, a oportunidade de tornar a ver a "cantaora" Estrella Morente (filha do grande Enrique), o "bailaor" Israel Gálvan (provavelmente o melhor dançarino da actual geração) e "El Farruquito", neto do mítico Farruco, hoje um um nome maior do "baile". Mas, todos eles vão andar por aí, pelo que não faltarão oportunidades para rever a sua arte. 

Porque a escolha é imensa e a qualidade uma garantia da Bienal, optámos por outros nomes conhecidos de anteriores actuações. Estão, neste caso, a excelente "bailaora" La Choni, cujo percurso acompanhamos desde 2008 e Antonio Canales, um dos maiores ícones do baile flamenco tradicional, que tivemos o privilégio de ver no CCB de Lisboa. Outras escolhas, foram os concertos de Berk Gurman, cantor de origem turca, residente em  Córdoba e do "bailaor" Andrés Marin, outro nome consagrado da dança Flamenca, este programado para o próximo dia 3 de Outubro.

Algumas notas, necessariamente impressionistas, sobre os espectáculos já presenciados:

O concerto "Flamenco, tres culturas: da Anatólia a Andalucía", tinha um título promissor, pese embora o relativo desconhecimento do intérprete, um cantor e guitarrista turco que, há 20 anos, trocou Istambul por Córdoba onde, desde então, prossegue uma carreira artística dividida entre a aprendizagem da guitarra clássica espanhola, actuações ao vivo e gravações regulares do seu repertório, cujo "core", é constituido por textos de poetas turcos e música tradicional da Anatólia. A actuação de Gurman, que se acompanhou à guitarra, decorreu no pátio do pavilhão de Marrocos, oferecido a Sevilha, após a Expo'92.  Ambiente de "mil e uma noites",  onde não faltou a lua mediterrânica a iluminar um palco ao ar livre. Concerto algo estranho, já que a tentativa de fusão entre o tradicional "lamento" oriental e o "duende" flamenco, nem sempre funcionou, pese embora a excelente voz e o dramatismo inerente à tradição turca que, de tão belo, não necessita de tradução para comunicar. Ciente da importância da "mensagem", Gurman - um bom comunicador - teve o cuidado de resumir cada canção e, nesse sentido, não podia ter feito melhor. Já a parte musical, ainda que esforçada, nos pareceu algo repetitiva, quiçás devido à técnica que o cantor/instrumentista utiliza na guitarra flamenca, a lembrar o toque de instrumentos de tradição oriental como "oud"  e o "bouzouki", menos melódicos e de toque mais rasgado que a guitarra espanhola. 

Asunción Pérez, do seu nome artístico "La Choni", é hoje um nome estabelecido no exigente circuito flamenco de Sevilha, onde reside. Acompanhamos o seu percurso, desde 2008, quando a vimos dançar pela primeira vez no clube "Los Gallos", um das mais emblemáticos "tablaos" de Sevilha, onde era "bailaora" residente. Desde então, de Copenhaga (Womex 2009) a Sevilha (Casa da La Memoria, 2011), passando por uma memorável actuação num teatro da provincia andaluza, onde apresentava a "peça" teatral dançada, "Gloria de Mi Madre" (galardoada com inúmeros prémios, entre os quais o "Melhor Espectáculo Dançado" de 2010 e o "Compás de Espera" de 2015), "La Choni" não parou de coleccionar distinções e merecidos elogios. Para a Bienal deste ano, que esteve em risco até ao Verão, criou "Cuero / Cuerpo", uma aposta arriscada, algures entre a dança flamenca clássica, a dança moderna e o teatro, sua imagem de marca. Dividido em quatro "quadros" distintos, a peça procura ser um libelo pela emancipação artística e feminina da intérprete principal (La Choni). Uma peça feminista, no sentido literal do termo, onde a mensagem (por vezes, demasiada explícita) é sublinhada pelos excelentes acompanhantes masculinos da companhia: Manuel Cañadas (Professor da Tradição),Victor Bravo (Mefisto) e Raul Cantizano (Ambientes Musicais). Após um início, algo lento e titubeante, a peça ganha fôlego com a entrada de Cañadas (um príncipe da dança) no papel de professor exigente e castrador, contra o qual a "bailaora-aprendiz" se liberta ao conhecer "Mefisto", que a inicia na dança moderna ("Charleston" e "Swing", no 3ª quadro) e ganhar consciência da sua condição como mulher. O 4ª e último quadro, mostra-nos os três intérpretes em despique e luta, após o que a "bailaora"/mulher se liberta, seguindo o seu caminho, numa (re)interpretação final da tradição, agora inovada. Os ambientes musicais, criados por Raul Cantizano, pareceram-nos aqui e ali algo "deslocados" (uma estridente guitarra electrificada, por exemplo), assim como uma simbologia demasiado explícita (a "mensagem" podia ser mais "distanciada"). Trata-se, no entanto, de um bom espectáculo, onde a soma dos quatro intérpretes (todos magnifícos)  parecem valer mais do que a (história da) peça, a necessitar de alguns afinações, que a rotina de actuações futuras, certamente, trará. 

Finalmente, Antonio Canales, um "monstro" da dança flamenca, que não necessita de apresentações. Vimo-lo num espectáculo memorável, no CCB de Lisboa, vai para dez anos, à época ainda no apogeu da sua arte. Voltámos a revê-lo, numa homenagem prestada em Utrera, em 2019, onde se limitou a dançar uma "seguiriya", acompanhado pela mãe, no fim do espectáculo. Muito pouco para tanta arte. Sabíamos que dificilmente voltaríamos a vê-lo dançar e foi com surpresa que vimos o seu nome anunciado no programa da Bienal deste ano. O espectáculo, intitulado "Canales: Torero & Sevilla a Compás", afinal, eram "dois"...Uma primeira parte, onde um excelente corpo de "baile", acompanhados por "tocadores" e "palmeros", recriou o maior êxito de Canales, "Torero" (1994), num cenário de uma praça de touros; e uma segunda parte, onde o "maestro" foi a figura principal, dançando e citando o poeta Antonio Machado, fio-condutor da história sevilhana que Canales recriou. "Torero", dançada magnificamente por Pol Vaquero (no papel que celebrizou Canales) e por Mónica Fernandez (no papel de "touro"), é uma representação cronológica do ritual da tourada (desde a "extrema-unção" do "matador" nas catacumbas, até à lide na arena, terminando com o apoteótico "corte de orelha" e a saída em ombros do toureiro). O baile seria aclamado pelo público presente na sala do Lope de Vega, com "olés" significativos. Ficámos na dúvida se eram dirigidos ao bailarino ou ao toureiro...Em tempo de "politicamente correcto", um tema claramente datado, ainda que a Andaluzia seja, por definição, a região da "arte" do espeto. Resumindo: grandes dançarinos (solistas e corpo de baile), que honraram o nome de Canales, o "mestre" que, na segunda-parte, tomou conta do palco e, entre passos de dança e poemas de Machado, teve direito aos holofotes que continuam a iluminar uma carreira sem par. 

Sim, o Flamenco está vivo e recomenda-se. Olé!